Preparo uma estação bem diferente
de quantas teve o tempo, para ver-te;
uma nova mistura, sabiamente,
de névoa, tempestade, e sol ardente
em chão de primavera inverno dentro.
António Franco Alexandre, em Poemas
A preciosa distinção utilizada por Peter Bogdanovich entre filmes que se admiram e filmes que se amam[i] ― cuja aplicação, no seu caso, ditava que “eram os filmes dos mestres do passado aqueles que eram vistos e amados” ― é aquela que também me serve a mim para, em preito à sua memória, eleger desta vez para fazer parte Do álbum que me coube em sorte o seu filme The Last Picture Show (A Última Sessão, 1971).

Tendo este filme tido a sua estreia comercial entre nós em 1975, em finais do mês de Janeiro mais precisamente, ano em que a Escola de Cinema do Conservatório Nacional, depois de um ano fechada, retomaria a sua actividade regular em Setembro, e fazendo eu parte da geração de alunos que então passaram a frequentá-la e dos primeiros que aí viriam a concluir o respectivo curso, The Last Picture Show constituiu para mim objecto de predilecção muito particular e Peter Bogdanovich tornou-se, de entre os mais, um mestre para “ver os clássicos”.
À distância a que agora examino as coisas, supondo que tal contribui para determinar “um ponto em que devemos situar-nos para olhar em frente ou para trás”[ii], vem daí, talvez, a minha convicção de que a “missão permanente” (ou se quisermos, inactual) de uma escola será, antes de qualquer outra, no caso do cinema, ser onde se aprende a “reconhecer o lugar na genealogia” de um clássico que precedeu outro clássico.
o facto de na narrativa ocorrer uma última sessão precedendo o fecho definitivo de uma Sala de cinema, (…) poderá ter contribuído para ver em tal circunstância um indício indesmentível que levaria a antecipar o próprio fim do cinema tal como o conhecemos
Juntando-se a tantos outros europeus que fizeram a travessia do Atlântico para se tornarem nomes cimeiros do cinema clássico produzido em Hollywood, também Peter Bogdanovich ― em resultado da fuga dos pais ao nazismo em rápida ascensão na Europa (o pai, um sérvio cristão ortodoxo, e a mãe, oriunda de uma abastada família de judeus austríacos, eram ambos artistas) ― pouco antes do início da deflagração da Segunda Grande Guerra, fizera essa travessia, ainda no ventre materno, vindo a nascer em Nova Iorque a 30 de julho de 1939, “o ano de ouro do cinema hollywoodiano”.
Formado em Arte Dramática, é como crítico que realiza a sua maior paixão, “escrever sobre cinema para ver filmes à borla”, segundo confissão do próprio, antes de poder dar asas ao seu maior sonho ― visitar Hollywood e conhecer pessoalmente muitos daqueles realizadores com os quais veio a trabalhar (Ford, Hitchcock, Wawks, Welles) e a sobre eles escrever monografias de referência editadas pelo MoMA, podendo afirmar-se que ele sozinho entrevistou, escreveu biografias e analisou criticamente o trabalho de mais cineastas clássicos do que qualquer outro da sua geração. A passagem pela “linha de produção” de Roger Corman terá constituído a última credencial, a juntar à sua cuidadosa preparação e seriedade demonstrada nos primeiros trabalhos feitos como realizador, a ser considerada pela Columbia Pictures quando lhe confiou a realização de The Last Picture Show.
O filme foi um êxito enorme, de crítica e de bilheteira e, para além disso, justificou certamente a posterior associação de Peter Bogdanovich com Francis Ford Coppola e William Friedkin na Director’s Company, companhia de vida curta, mas que fez destes “marginais” os expoentes maiores da emergente “Nova Hollywood” do cinema americano.
O filme, contudo, não foi um mero êxito de bilheteira, pois relativamente à primeira sessão, dispomos do testemunho de um espectador privilegiado, Francis Ford Coppola, deixado nas palavras de homenagem reproduzidas no Deadline: “… Jamais esquecerei ter estado presente na sessão de estreia de The Last Picture Show. Lembro-me que no final todo o público à minha volta se levantou explodindo em aplausos durante 15 minutos pelo menos. Nunca esquecerei, embora sentisse que eu próprio nunca experimentara uma reacção como essa, que Peter e o seu filme mereciam”.
Ainda que não saibamos o que passava pelos “ânimos desses espectadores” aquando dessa sua manifestação na “fronteira do entusiasmo” ― não sendo de descartar a hipótese de tal acontecer por se tratar de um filme que “para quem o vê se torna um clássico à primeira vista”, para usar uma fórmula que é de Michael Ventura ― o facto de na narrativa ocorrer uma última sessão precedendo o fecho definitivo de uma Sala de cinema, sendo que a mesma terá constituído um refúgio sem igual numa cidade de província em inexorável declínio, poderá ter contribuído para ver em tal circunstância um indício indesmentível que levaria a antecipar o próprio fim do cinema tal como o conhecemos.
Uma década mais tarde, em 1982, num momento, aliás, em que a própria carreira de Peter Bogdanovich já conhecera alguns desaires, como o catastrófico fracasso comercial do seu mais amado They All Laughed (Romance em Nova Iorque, 1981), Michael Ventura, ao decidir entrevistá-lo, começa por revelar o que o move: “Dirigi-me a Bogdanovich porque ele é o herdeiro consciente de tudo o que há de melhor nos filmes americanos. E porque me parece que a crise no cinema americano agora ― e com a produção cinematográfica americana caindo para metade este ano, e os valores da produção americana tornando-se cada vez mais medíocres, não é menos do que uma crise ― é principalmente uma crise de ordem técnica”[iii].
No momento da produção do filme (1971), estando já em marcha a restauração Nixoniana e a revisão do sonho da revolução geracional dos anos sessenta, é necessário tornar enxuta a visão do passado, do início dos anos cinquenta, sem concessões.
Segundo o diagnóstico desta “crise de ordem técnica” feito por Peter Bogdanovich, há dois motivos que estão na sua origem. O primeiro diz respeito à drástica mudança na forma de conceber a découpage no cinema ou, se quisermos, o acto de enquadrar; o segundo tem a ver com a falta crescente de um fito para fazer filmes. Sobre o primeiro motivo, Bogdanovich faz uma demonstração de uma clareza arrasadora, tomando como pretexto a situação em que alguém se propõe filmar “três páginas” ― uma cena simples centrada na conversa entre um entrevistador e um entrevistado. Há os que voltejam, apesar de não haver lâmpada de azeite ou, mais literalmente, andam à nora, e filmam as “três páginas”, do princípio ao fim e de seguida do fim para o princípio, de sete ângulos diferentes e usando a inteira escala de planos, deixando a questão, isto é, o ponto de vista para depois. Algo semelhante ao que acontece aos que evitam a questão, “What is the point of making pictures? What is the point of doing anything?” que, apesar das variantes na sua formulação ao longo da entrevista, se poderia, para começo de tradução, atirar que se aí é que bate o ponto, nos foquemos no propósito. E, se para fugir ao eventual galicismo tivéssemos de renunciar ao uso da locução “a propósito”, ainda assim não seria de dar crédito aos impertinentes (os que agem sem propósito ou a despropósito se agitam), “Because this is real” e esses jamais serão capazes de pô-lo diante dos nossos olhos.
Porque para propor é preciso estar, se bem entendo aquilo a que José Tolentino de Mendonça, na evocada interrogação de Lourdes Castro “E há outra maneira de estar?”, atribui o valor de um testamento: “Para Lourdes Castro, a arte nunca foi simplesmente um fazer. A arte era um intransigente pensamento sobre o estar. Por isso, não deixa apenas obras que podemos ver nos museus de arte contemporânea. Ela deixa uma visão.”[iv]
O vento sopra inclemente desde o início da panorâmica com que abre A Última Sessão até à sua réplica, em sentido inverso, que fecha o filme, e a estrada poeirenta da Anarene “precisa de ser varrida” ― disso se encarrega Bill (Sam Bottoms), a toda a hora, até vir a ser atropelado mortalmente, perto do final. Sam “O Leão” (Ben Johnson), para além de manter aberto o cinema Royal, é a referência comunitária, mas partira primeiro, pelo que já não lhe coube a ele fazer mais um luto.
De forma mais precisa do que no romance original, Peter Bogdanovich situa a acção do filme entre 1951 e 1952 e, assim, como quem olha duas décadas para trás, pôde tornar a sua visão crítica mais crua e, como amante dos clássicos, não enjeitar, julgo eu, fazer seu o propósito de Dante quando diz em Rimas Pétreas: «Portanto em minha fala quero ser áspero / como é nos atos esta bela pedra» [Cosí nel mio parlar voglio essere aspro / com’è ne li atti questa bella petra][v].
Levando em conta a sugestão de Larry McMurtry (autor do romance original e co-argumentista do filme) e fortemente encorajado por Orson Welles, a opção de Bogdanovich (a que o produtor Bert Schneider deu anuência) de filmar a preto e branco[vi], contribuiu, com grande justeza, para esse fim. Perante as novas condições de produção e da iniciativa de produtores independentes dispostos a experimentar fórmulas novas, Bogdanovich antecipando-se à moda nostálgica, toma outras distâncias críticas. No momento da produção do filme (1971), estando já em marcha a restauração Nixoniana e a revisão do sonho da revolução geracional dos anos sessenta, é necessário tornar enxuta a visão do passado, do início dos anos cinquenta, sem concessões.
O vento empurra e o frio enregela. O melhor refúgio é o cinema Royal e o Café. Para o bando juvenil, a família clássica e tradicional está totalmente ausente, pais e mães ficam fora de campo e já não contam. No melhor dos casos, há os de substituição, Sam e Genevieve (Eillen Brennan). Entre a perda da inocência e a perda da virgindade, falidos estão também os modelos.
Ou, então, a manifestação das inquietantes “falências” será bem mais complexa. Nas suas variadas encarnações ― em diferentes personagens do filme, particularmente, em Jacy Farrow (Cybill Shepherd) ― a mulher parece ter sido acometida, de modo estranho mas repetido, por uma forma de imobilidade (cuja compreensão não poderá ser alcançada recorrendo à velha oposição activo/passivo), de paralisação ou mesmo de petrificação a que todas parecem condenadas.
Volto às Rimas de Dante: «Senhor, tu sabes que pelo gélido frio / a água se torna cristalina pedra /lá onde, sob a tramontana, é intenso o frio, / e o ar sempre em elemento frio / ali se converte, tal que a água é mulher / naquela parte por causa do frio» [Segnor, tu sai che per algente freddo / l’acqua diventa cristallina pietra / là sotto tramontana ov’è il gran freddo, / e l’aere sempre in elemento freddo / vi si converte, sì che l’acqua è donna / in quella parte per cagion del freddo][vii].
Há, em A Ultima Sessão, duas rememorações do passado, temporalmente desencontradas, feitas a meio do filme por Sam e quase no final por Lois Farrow (Ellen Burstyn) sobre a relação que os dois mantiveram quando jovens, num tempo em que Sonny (Timothy Bottoms) ainda não andava por ali, mas a quem cabe agora conjugar essas revelações. Já então os casamentos não batiam certo. Contudo, ele, que também no fim sabe que foi Lois Farrow que deu a Sam a alcunha de “O Leão”, e que, deixado em testamento por ele, tem o Cinema como herança, é talvez o que melhor poderá compreender, por entre as dores de lutos que são bem suas, o alcance da transformação que o doce tempo trouxe a Ruth Popper (Cloris Leachman).
«Do mesmo modo, essa nova mulher / está gelada como neve à sombra, / que não a demove senão como uma pedra, / o doce tempo que reaquece as colinas» [Similemente questa nova donna / si sta gelata come neve all’ombra, / che non la move se non come pietra, / il dolce tempo che riscalda i colli][viii].
Como Bogdanovich o faz com o fundido-encadeado da panorâmica final:
«Vê a vida com a mulher que amaste» [ix]
Esse é o seu quinhão.


[i] João Bénard da Costa, «Peter Bogdanovich», em Escritos sobre Cinema (Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 2018), 400.
[ii] Italo Calvino, Porquê ler os Clássicos?, trad. José Colaço Barreiros (Lisboa: Teorema, 1994), 12.
[iii] Michael Ventura, «Peter Bogdanovich: “What Is the Point of Making Pictures?”», em Peter Bogdanovich: interviews, ed. Peter Tonguette, [ L.A. Weekly , May 28–June 3, 1982] (University Press of Mississippi, 2015), 84.
[iv] José Tolentino de Mendonça, «E há outra maneira de estar?», Público, 9 de Janeiro de 2022, 11578 edição.
[v] Dante Alighieri, «Rime Petrose / Rimas Pétreas», trad. Débora Berté, [n.t.] Revista Literária em Tradução Ano IX-1, n. 16 (Junho de 2018): 88; Dante Alighieri, «Rime», em Opere Minori [Vita Nuova, De vulgare eloquentia, Rime, Ecloge], ed. Giorgio Barberi Squarotti et al., Classici UTET, vol. I (Torino: Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1983), [46], 281.
[vi] Gordon Gow, «Without a Dinosaur», em Peter Bogdanovich: interviews, ed. Peter Tonguette, [Films and Filming, June 1972] (University Press of Mississippi, 2015), 17–26.
[vii] Dante Alighieri, «Rime Petrose / Rimas Pétreas», 86; Dante Alighieri, «Rime», [45], 278.
[viii] Dante Alighieri, «Rime Petrose / Rimas Pétreas», 84; Dante Alighieri, «Rime», [44], 274-275.
[ix] Frederico Lourenço, trad., «Eclesiastes», em Biblia – Os Livros Sapienciais, vol. IV, Tomo 1 (Lisboa: Quetzal Editores, 2018), [IX:9], 43.