O fabuloso in memoriam escrito pela walshiana Inês N. Lourenço, para o Diário de Notícias, diz tudo e de maneira muitíssimo eloquente. Portanto, só venho aqui frisar as suas palavras: Sidney Poitier (1927-2021) foi, de facto, um dos príncipes da Hollywood clássica. Poucos actores da sua geração – brancos, negros ou de outra cor qualquer, que isso não interessa nada, e viremos de vez a página à porcaria e imbecilidade do racismo – foram como ele: de uma presença on screen que imediatamente prendia o olhar e conquistava a nossa atenção, com os ouvidos, sim, porque a imponência – como conta a Inês N. Lourenço – também vem da entoação da sua voz, do corpo e presença que empresta a cada palavra. É um actor solene, que parece feito de pedra, mas, espantem-se, também representou muitas vezes uma espécie de um nada duro “porto de abrigo”, na qualidade de confidente, amante, tutor ou amigo. Poitier é um poço de respeitabilidade e de força incorruptível. Não vacila nos seus papéis, tornando, aliás, a imbecilidade supracitada numa absoluta indignidade, qualquer coisa de impronunciável quando uma personagem, não importa quem, está diante dele. Acredito que partiu muito dele o facto de termos visto, pela primeira vez no grande ecrã, um actor negro em que a cor da pele nem é uma questão. Se não partiu decisivamente dele – e eu acho que partiu também -, a massa de que era feito permitiu que o cinema americano desse esse salto, abrindo caminho a uma geração admirável de actores negros, em que se destaca, naturalmente, Denzel Washington.
Posto isto, em Roma, sê romano: o À pala de Walsh destaca o filme-grito do Ipiranga de Poitier, em que a raça ainda é uma questão, de facto, mas já aqui é reduzida a pó ante a sua presença. Falo de Band of Angels (A Escrava, 1957), obra-prima tardia de Raoul Walsh, com Clark Gable (latifundiário do Lousianna), Yvonne de Carlo (a “escrava livre”, para citar o título francês desta obra de Walsh, uma mulher-mercadoria com “sangue negro”) e o nosso príncipe (escravo “domesticado” pela personagem de Gable, em confronto com as suas origens num face-a-face com este fazendeiro com um passado manchado pelo negócio ignominioso do tráfico de escravos) a tomar conta de cada cena em que entra.

Band of Angels, porventura o filme mais desmesuradamente romântico e melodramático de Walsh, é também uma das suas obras mais ambiciosas, ao elevar bem alto – mais alto do que em qualquer outro filme que vi do realizador norte-americano – a dimensão épica da sua narrativa, sendo esta impulsionada por três actores/personagens com uma força dramática imparável: Yvonne de Carlo, Clark Gable e Sidney Poitier. Se para as personagens masculinas, basta a presença carismática desses dois poços de masculinidade – e, no caso, basta o sorriso característico ou a gestualidade aristocrática de Gable para transmitir toda a mensagem do que é, foi e se tornará “a força” da sua personagem -, na personagem feminina, Yvonne de Carlo, na pele de Amanda Starr, a “escrava livre” do oximórico título francês do filme, introduz na narrativa a determinação feminina que, ao contrário do que acontece em boa parte do cinema de Walsh, não nos surge atravessada por um traço neurótico moralmente “desorientador”.
O escravo culto, magnificamente interpretado pelo quase sempre genial Sidney Poitier, também lida diariamente com a indefinição da sua identidade: acarinhado e cultivado por Gable, mas, ao mesmo tempo ou por causa disso, preso, ainda mais preso a ele do que por norma está um escravo ao seu senhor.
Nesse aspecto, De Carlo é “mais mulher” do que qualquer outra mulher num filme que tenha visto de Walsh, mesmo comparando-a com Jane Russell em The Revolt of Mamie Stover (Mulher Rebelde, 1956). Apesar disso, Starr, como Stover, vive as angústias típicas do herói – ou da heróina, enfim – de Walsh: “é aquilo que não é”. Com efeito, ela é uma mulher com a educação de uma rapariga branca, administrada por um fazendeiro muito rico, mas com “sangue negro” a correr-lhe nas veias, que a tornará uma “escrava livre” nas mãos de outro homem (Gable), a segunda figura paterna, desta feita, um homem que lhe conquistará o coração, depois de arrematar, num leilão, o seu corpo-mercadoria.
Gable vive perseguido (pursued) pelo seu passado – que não revelarei aqui, para não estragar a surpresa – tal como Starr luta em permanência com a sua condição de mulher branca (livre), filha de uma mãe negra (escrava). Ele diz-lhe, antes de a beijar, que não podemos fugir do nosso passado ou pensar que o que fomos é separável de o que somos. O escravo culto (tão negro quanto branco?), Rau-Ru, magnificamente interpretado pelo quase sempre genial Sidney Poitier, também lida diariamente com a indefinição da sua identidade: acarinhado e cultivado por Gable, mas, ao mesmo tempo ou por causa disso, preso, ainda mais preso a ele do que por norma está um escravo ao seu senhor – é o carinho (kindness) que tanto o revolta, ao mesmo tempo que o subordina mais e mais ainda ao seu amo.

Walsh não vai pelo caminho mais fácil, não mostra um fazendeiro terrível, que maltrata os seus escravos, nem torna Starr uma mulher negra sujeita a todas as desumanidades do sistema esclavagista, que imperava com violência nas vésperas da guerra civil norte-americana. Quem estiver a ler este meu texto agora, decerto estará a pensar no recente Django Unchained (Django Libertado, 2012). De facto, como Vasco Câmara aponta na sua análise ao filme de Tarantino, Band of Angels apresenta vários pontos de contacto com esse filme, nem que seja por ambos situarem a sua acção no mesmo período histórico ou por também complexificarem a definição identitária das suas personagens, mostrando (ou caricaturando, no caso de Tarantino) figuras como o “traficante de escravos negro” ou o empregado negro (Samuel L. Jackson) mais racista que qualquer homem branco… A própria sequência em que a personagem de Gable abre uma caixa onde estão dois revólveres e, com toda a serenidade e coolness do mundo, convida o seu principal rival a um duelo mortal em nome da sua amada parece prefigurar o que veio a ser o típico “set piece” tarantinesco – a diferença aqui é que só nessa sequência Band of Angels dá uma tareia de todo o tamanho a Django Unchained.
Olhando para trás, para filmes como Desperate Journey (Jornada Trágica, 1942), parece que se fecha um círculo aqui, nomeadamente porque aquilo que defino como uma tendência em Walsh para os jogos de papéis, ou melhor, “as trocas de pele”, atinge neste filme a sua literalidade histórica, política e psicológica máxima. Band of Angels, além de conter toda a potência heróica e épica de Walsh, é também um filme formalmente perfeito, com cores e cenários “intoxicantes” e situações dramáticas – magnificamente rendilhadas – de grande intensidade, a começar pela tempestade que empurra Gable até aos lábios de De Carlo (eis o novo “anjo da história” benjaminiano!) e acabando na despedida final entre Poitier e o seu mestre – um duelo com pistolas? Não, um duelo pulverizado pelos sentimentos de dois homens igualmente bigger than life.