Angel Mine (1978) de David Blyth
A visão sobre o ponto de felicidade e satisfação idílicos, com todos os seus ingredientes preparados ao mais rigoroso nível, foi (e é) inúmeras vezes o grande motor para a criação de expectativas inexequíveis para es* espectadores. Um misto de prazer pelo relance de uma possibilidade, com o massacre da realização da incapacidade. Uma receita agridoce que toca, em grande parte, no reino das emoções e da sua materialização nas relações interpessoais. Um eco que parte da – e culmina na – construção ideológica do social: uma fórmula que fascina e manipula nesse movimento do estar em si, no ser com outres.
Aquilo que escapa por vezes nesta normatividade (quase) impingida (ou forçada) e de traços (quase) sádicos, num certo tipo de registos da arte da vida da imagem em movimento de abrangência comercial (mas também no nicho, que não escapa, pela sua ‘independência’, ao sistema em que nasce, cresce e existe), é o prazer do assumir da imperfeição. Essa função natural do caminho da vida, do desvio incontrolável, da singularidade da mutação (in)constante.
A representação de extremos, da pintura perfeita em contacto com o corte absoluto do quadro, poderá ser um dos meios para a denúncia da desumanidade da perfeição, um escape para mentes inquietas. Angel Mine (1978) surge-nos nesse lugar. Do pitoresco das paisagens marítimas, para a doçura das paredes de madeira que envolvem duas personagens em relação de raiz matrimonial, entramos nos escombros de um compromisso onde a insatisfação, o medo, a raiva e a incompreensão são sugeridos pelas notas das presenças, das respirações de duas personagens que (pres)sentimos enquanto modelos (f)rígidos, congelados, à beira da ebulição. A disfunção é materializada no campo da oposição, com alter-egos de eyeliner carregado (desenhado no traço do excesso), vestidos de ponta a ponta com (aquele) cabedal que exala sensualidade, sexualidade, desejo e poder.
Existe também nesse campo uma frustração incalculável: uma perseguição que é alimentada pela sede de absoluta destruição dos pedaços (esses também irreais) humanos que circulam no lodo do desprazer pela incapacidade de cumprir com as regras do estabelecido. A loucura da esquizofrenia emocional reflecte-se numa certa aleatoriedade no plano de montagem, que nos leva numa viagem (des)controlada pelos mais diversos universos de uma só (mas sempre múltipla e desviada, dita) realidade narrativa. O absurdo trespassa a qualquer momento: desde a introdução de elementos de publicidade, à personagem da morte (que trata de manter o jardim da casa da tortura perfeita bem aparado), à (bela, leve, despropositada) dança da roupa lavada.
O destino é, à partida, fatal: o ciclo cumpre-se no extravasar do consumo sanguinário. Não estamos perante uma eulogia à animalidade carnal, ao elevar do trono da disfunção, mas sim a um induzir da vontade – a verdadeira apreciação do lado saudável – da quebra, do erro, e, acima de tudo, de um elemento que, por vezes, nes escapa: à tentativa de compreensão pela comunicação. Gestos essenciais do mundano e do extraordinário: uma pulsação frenética que, dentro da sua inconsistência, da sua intransmissibilidade, nes pode saciar da solidão – e do terror – em relação. A libertação almejada está fora da receita: os ingredientes, aqui, medem-se a olho.
*a escrita deste texto segue-se por possíveis estratégias de linguagem neutra. É uma vontade de quem escreve de que tais sejam integradas e incluídas no dito standard de comunicação em português.