No cinema que se fazia em Hollywood naquele tempo a virtude era sempre compensada. Nunca se apresentava um homem de carne no seu combate pela conquista física de uma mulher… No ecrã, ninguém desejava possuir uma mulher fora dos sagrados laços do matrimónio. Tudo tresandava a virtude beata e, ao que parecia, toda a gente estava muito contente com essas historietas que só tinham por fim tranquilizar as pessoas.
Erich Von Stroheim
A última secção de Diálogo de Sombras (2021), perspectiva de Júlio Alves da obra de Pedro Costa e da sua Companhia (exposição em Serralves, no Inverno de 2018), convoca um puzzle, uma valsa de filmes. São nove ecrãs, um quadro de 3×3, um baú da História do século XX, de histórias individuais e colectivas, que junta a velha e autoral Hollywood a disciplinas e afinidades conhecidas, com artistas como Rui Chafes e Paulo Nozolino, dispostas em espaços contíguos das galerias de Serralves. São inúmeras as relações. Há um Charlie Chaplin – City Lights (Luzes da Cidade, 1931), mas podia ser o discurso final de The Great Dictator (O Grande Ditador, 1940), no contraponto com o negrume de Fritz Lang em M (Matou,1931), ainda na Alemanha que emprenhava o nazismo, em filmes dirigidos, então, por emigrantes: Chaplin que fugiu de uma infância de pobreza em Londres, Lang que terá escapado a Joseph Goebbels; no entanto, fiquemo-nos por dois monitores do puzzle, dois exemplares da Hollywood que precedeu a imposição do código Hays: Queen Kelly (A Rainha Kelly, 1932) e Man’s Castle (A Vida é um Sonho, 1933).
Numa paisagem quase infindável de encadeamentos e correspondências entre as imagens de Pedro Costa e as suas electivas companhias, Diálogo de Sombras expõe uma filiação artística, de pendor estético e ético, que o filme de Júlio Alves resolve ao intensificar um espaço contínuo de narrativas, um resgate da tradição humanista do Cinema e da arte, das projecções dos close-ups de Vanda, Vitalina e Ventura, príncipes de uma dinastia perdida, como uma ressonância dos retratos dos desfavorecidos, dos modelos de ética e de humanismo das Companhias.
O cinema de Stroheim, da escola romântica, alimenta-se de contrastes, entre o deboche da corte e a virtude do convento (…)
Queen Kelly começou como um projecto de cinco horas, produzido pela actriz Gloria Swanson, que escolheu o controverso e iconoclasta Erich Von Stroheim para a cadeira de realizador. As extravagâncias de Stroheim foram estancadas pelo estúdio ao fim de três meses, pelo que foi rodado apenas um terço do guião original, o que o tornou num dos objectos míticos, parte do fascínio de Hollywwood, “a arte do desaparecimento”, da metragem cortada ou omissa, como a designou Jacqueline Nacache. O projecto sentenciou Stroheim, que nunca mais dirigiu uma grande produção. O ajuste de contas viria muitos anos depois, com o patrocínio de Billy Wilder, em Sunset Boulevard (O Crepúsculo dos Deuses, 1950), e Swanson a denunciar que ela permanecera grande, os filmes é que se tornaram pequenos (são de Queen Kelly as imagens que vemos projectadas nos aposentos da diva decadente), até descer uma escada orientada pelo mordomo Stroheim: I’m ready for my close-up, Mr. DeMille.
No palco habitual de Stroheim, o da caduca aristocracia na Europa, um filme que cheira a sexo desde a primeira cena, com mulheres que prometem roupa interior a homens que se desafiam em corridas de cavalos, num deboche protagonizado por um príncipe, destinado ao trono por um casamento combinado com a rainha Regina, personagem solitária e louca. Mas, como muitas vezes em Stroheim, o amor contrariará os equilíbrios de um mundo controlado e corrupto: o príncipe cruza-se com um naipe de raparigas educadas num colégio de freiras e apaixona-se por uma jovem de raízes humildes (Swanson), numa sequência que junta uma beleza extraordinária, de planos cobertos de uma luz pura, a uma potente tensão sexual, um fetichismo de pés e mais uma vez de roupa íntima, numa aproximação aos paroxismos de Foolish Wives (Esposas Levianas, 1922) e The Wedding March (A Marcha Nupcial, 1928), exemplares afins da filmografia de Stroheim.
O cinema de Stroheim, da escola romântica, alimenta-se de contrastes, entre o deboche da corte e a virtude do convento, o amor dos protagonistas e o rancor gelado da Rainha, que culminará com um jantar entre os enamorados numa sala do palácio, em que o rosto de Swanson, em close-up, é moldado e enobrecido pelas brandas projecções de luz branca de velas – enquanto o príncipe lhe propõe que sejam rei e rainha por uma noite, de um modo análogo ao utilizado por Costa para iluminar a sua princesa Vanda. Mas, a rainha surpreende-os e castiga-os repetidamente armada de um chicote, imagens ferozes, de um sadismo irrepetível em Hollywood.
Na segunda parte do filme, uma tentativa de suicídio e uma carta de uma tia moribunda atiram Swanson para África, para um bordel, ao invés do dance hall que Stroheim tinha acertado com a protagonista. Mesmo incompleto, o filme resiste, assente na notável apresentação de ambientes: um espaço de diversão, de vício em rostos de mulheres em close-up, gerido por um velho aleijado e corrupto, que brinda com whisky e saliva enquanto mira a recém-chegada sobrinha, emocionada e virgem, aos pés da tia acamada. Enquanto a velha recebe a extrema unção, arranca-se a cortina de uma cama que servirá de véu de noiva. Uma grinalda empalhada é-lhe colocada nas mãos, uma união feita de horror sublinhado pela iluminação: de um lado a podridão e o vício do velho, do outro o pranto na candura de Swanson. Esta degradação total, uma acção da bruxaria, é mais uma oposição ao amor trazido da corte, que num final como um deus ex-machina salvará Swanson e encaminhá-la-á para se tornar…Rainha Kelly. Relações Europa-África, para além de majestades invulgares, talvez o interesse de Costa na exploração dos africanos pelo homem branco, uma corrupção aqui interpretada pelo velho e pela tia de Swanson.
É também de realezas peculiares que trata Man’s Castle de Frank Borzage, protagonizado por um Spencer Tracy aparentado do Charlot de Chaplin, um aristocrata sem pecúlio, um vagabundo com nobreza. Filme insólito, um conto de fadas num bairro de barracas com vista para o rio, desapossados talvez saídos da Grande Depressão, o lirismo das Fontainhas em Hollywood.
Acima de tudo, as colagens e montagens de Diálogo de Sombras sintetizam e dão um rumo às imagens de Serralves, permitindo-lhes formar sinergias que de outro modo permaneceriam por articular.
No primeiro encontro com Loretta Young, Tracy traja de smoking e dá milho a uns pardais no parque. A jovem não come há dois dias e o cavalheiro oferece-lhe um jantar no melhor dos restaurantes. A altivez dele, por entre fumaças de charuto, permiti-lhe lidar com a conta do restaurante, que se recusa a pagar dizendo ao gerente que na América há 12 milhões de pobres (seriam cerca de 10% da população), sendo que muitos deles passam fome. Sem nunca permitir que a humilhação se acerque, Tracy ameaça reproduzir o discurso perante a plateia do restaurante, o que lhe permite sair após vestir de forma pausada o casaco a Loretta. Nessa mesma noite, identificamos o mais recente biscate dele: passear-se ao longo da rua com um reclame luminoso no peito. Enquanto descreve a sua situação, Tracy nunca cede ao sentimentalismo e à autoindulgência, que se estende ao passeio pelo bairro, a um mergulho nocturno no rio, estabelecendo a precaridade como algo benevolente, apetecível, uma evidente paridade com a vida escolhida por Vanda, desprovida de fatalismos, na fantasia de No Quarto da Vanda (2000).
Loretta muda-se para a barraca dele, Tracy prossegue um quotidiano de desenrascanços, ela começa a embelezar o barraco, como se fosse um dos ocupantes das Fontainhas, a colocar-lhe cortinas, a antecipar um lar. Os dois amantes parecem prosseguir, então, em direcções diferentes: o carisma dele a fomentar a ligação com todos, que a ausência de rendimento não consegue tolher, o que contrasta com a ambição de domicílio dela, encantada e iluminada por um belíssimo close-up, quando recebe um novo fogão conquistado a crédito. Um conto de fadas, em que os amantes trocam flores: Tracy arranca uma flor do quintal do vizinho e deixa-a para ser encontrada por Loretta, como as flores que o visitante de Vanda acaba a oferecer-lhe ou as orquídeas brancas que cercam os amantes nos filmes de Stroheim.
E, então, surge o desconcertante conflito. Tracy colocara uma estrutura na cobertura da barraca, que lhe permitia observar o céu quando estava deitado: os vivos devem levantar o queixo, diz ele, fazer valer a sua dignidade, uma elevação de discurso mais uma vez familiar aos heróis de Costa. A certeza de que existem outros lugares é para ele intensificada de cada vez que se ouve o silvo do comboio a atravessar o rio. Mas para ela, as motivações dele, intermediadas pelo assobio da máquina a vapor e aquele céu que se move sobre as suas cabeças, provoca-lhe medo, uma angústia que os rostos em close-up de Borzage elogiam. O desatar do conflito é igualmente lírico. Perante o anúncio da gravidez dela, Tracy participa de um assalto. Ele nunca vira uso para o dinheiro até conhecer a rapariga, até perceber que constituíra uma família. Perante a pressa em escapar à policia, alguém sugere que fujam juntos: na carruagem de mercadorias do comboio soa o silvo e pela primeira vez ela não teve medo.
Diálogo de Sombras devolve a obra de Pedro Costa ao cinema. Queremos com isto dizer que cabe ao filme de Júlio Alves montar as peças do puzzle que em Serralves se encontravam dispersas e dividiam a atenção do espectador. Como todo o cinema, o filme de Júlio Alves representa apenas um olhar, uma tentativa de fazer sentido ou dar coerência. Acima de tudo, as colagens e montagens de Diálogo de Sombras sintetizam e dão um rumo às imagens de Serralves, permitindo-lhes formar sinergias que de outro modo permaneceriam por articular. Ao contrário da exposição de Serralves, que participa no processo de multiplicação e fragmentação das imagens, o filme de Júlio Alves tenta contrariar e combater esta deriva, condensando ideias e concentrando a nossa atenção sobre um único objecto, com uma duração específica. Diálogo de Sombras irá circular num contexto de sala e, possivelmente, em DVD. Ficará, então, para trás, a turbulência produzida pela convergência medial, patente no espaço híbrido de Serralves, e efectivamente parar (ou pelo menos desacelerar) para pensar e sentir as imagens trabalhadas por Júlio Alves, transformadas pelo museu, mas recuperadas para o cinema e para os seus públicos.