Um nome estimado para todos os cinéfilos, e alguém que provavelmente para muitos de nós serviu como janela de descoberta de New Hollywood e de muitas obras, com os seus diferentes papéis de realizador, actor e escritor, produtor e crítico, Peter Bogdanovich é um dos nomes maiores do cinema americano das últimas décadas, nas suas diferentes formas. Os walshianos reúnem-se para prestar a homenagem devida a alguém que, acima de tudo, vivia para o Cinema.
Os meus Bogdanovichs? Tantos. Targets (Alvos, 1968), The Last Picture Show (A Última Sessão, 1971), What’s Up, Doc? (Que Se Passa Doutor?, 1972), Paper Moon (Lua de Papel, 1973) (terá existido mais algum realizador cujos 4 primeiros filmes sejam todos obras-primas?) e aquele que era o seu predilecto: They All Laughed (Romance em Nova Iorque, 1981). Mas Bogdanovich não era só um grande cineasta, era também um cinéfilo titânico, uma daquelas personalidades truffautianas memoráveis que ingeria filmes com uma fome pantagruélica, vertia em cada texto e conversa um romantismo cinéfilo contagiante, acreditava piamente no que a realidade poderia aprender com a arte (nomeadamente, a sétima), em suma, fazia do cinema autêntico propósito existencial.
A minha escolha para este adeus colectivo recai, portanto, não num filme, mas em 3 livros, todos eles constituídos por entrevistas do realizador aos nomes mais sonantes da era dourada de Hollywood (e da qual foi o mais legítimo herdeiro), experiências que descreveu como “uma escola de cinema única que tinha ao seu dispor os grandes cineastas como professores”. A importância histórica destes diálogos constituiria já motivo robusto para recomendá-los. No entanto, o que quero mesmo salientar são as introduções apaixonantes que Bogdanovich escreveu para cada um deles, sempre alicerçadas numa prosa agridoce onde a nostalgia anda de mãos dadas com a mais sincera devoção. Pouca literatura sobre cinema haverá tão bonita como aquela assinada por ele sobre a derradeira despedida de Ford e Hawks em John Ford, a dança conquistadora de Welles ao luar em This is Orson Welles, ou as análises atentas dedicadas a alguns dos seus heróis em Who the Devil Made It. Pois não restem dúvidas: a pena de Bogdanovich era tão memorável como a sua câmara, estando em ambas presente um olhar totalmente cativado e embevecido pela História do cinema. É, sobretudo, esse olhar saudoso, inteligente, culto, generoso e sempre inspirador o que mais falta nos vai fazer.
Duarte Mata
Cada um dos filmes realizados por Peter Bogdanovich diz de maneira diferente e renovada o seu amor pelo cinema. Se o começo da sua carreira de cineasta coincide com a sua descoberta da Nouvelle Vague francesa e com o despontar da New Hollywood, que vêm revolucionar artística e politicamente o edifício do cinema americano e mundial, é sobretudo ao imaginário colectivo do período clássico ou “era dourada” de Hollywood que a obra de Bogdanovich continuamente faz referência e presta homenagem. Isto é particularmente evidente nos seus primeiros filmes entre o final dos anos 60 e o início dos anos 70, os quais não só navegam entre diversos géneros cinematográficos — da ficção-científica [Voyage to the Planet of Prehistoric Women (1968)], à screwball comedy [What’s up doc? (1972)], passando ainda por um documentário biográfico sobre um dos seus mestres, Directed by John Ford (1971) —, como entrelaçam memória cinéfila e eventos da história recente dos Estados Unidos da América: assim, ao confronto, central à intriga de Targets (1968), entre um ícone do cinema de terror (Boris Karloff) e um veterano do Vietnam, tendo por palco um cinema drive-in, segue-se The Last Picture Show (1971), onde uma sala de cinema nos anos 1950 serve de refúgio a uma geração de jovens sem rumo e prefigura o declínio da pequena cidade do Texas onde habitam; poderíamos ainda referir Nickelodeon (O Vendedor de Sonhos, 1976), cujo título convoca assumidamente o berço das salas de cinema modernas e nos transporta para a infância dos filmes mudos nos anos 1910.
Deixei para último lugar Paper Moon (Lua de Papel, 1973), filme pelo qual tenho um carinho especial, por ter sido o primeiro de Bogdanovich que vi, e por ser a ele que mais vezes regresso. Nesta longa-metragem, os “espaços de vida” do cinema enquanto instituição são substituídos por outros meios de evasão da sociedade americana durante a Grande Depressão dos anos 1930: rádio, diners, feiras populares. Mas uma certa nostalgia do cinema não deixa de insuflar a atmosfera do filme, constituindo mesmo o seu principal contra-campo invisível: obras como The Kid (O Garoto de Charlot, 1921), It Happened One Night (Uma Noite Aconteceu, 1934) de Frank Capra, ou o mais tardio Bonnie and Clyde (1967) de Arthur Penn servem igualmente de matriz a este road-movie em torno de uma dupla improvável — Moses, um vigarista passando por vendedor de Bíblias, e Addie, uma miúda órfã de 9 anos —, com uma química infalível — não fossem os atores principais, Ryan e Tatum O’Neal, pai e filha na vida de real. No filme, o laço familiar é fortemente sugerido mas nunca confirmado: presente no funeral da mãe de Addie, prostituta com quem terá tido um breve relacionamento, Moses é coagido a acompanhar a criança até à morada de uma tia, se bem que a sua intenção seja apenas ficar com o seu dinheiro e livrar-se dela o mais rápido possível; porém, Addie revela-se tão perspicaz quanto pespineta, fazendo tudo para se manter ao lado de Moses e tornando-se uma aliada indispensável nas suas vigarices. Se a aparente ingenuidade e leveza da intriga de Paper Moon encaixam facilmente na tradição de um cinema popular e familiar, a realização de Bogdanovich é marcada por uma irreverência formal claramente moderna, próxima da linguagem cinematográfica de Orson Welles: aliada à sublime fotografia a preto e branco de László Kovács, a variação dos enquadramentos e o trabalho da profundidade de campo tanto orquestram efeitos cómicos garantidos como abrem espaços de respiração e de ambiguidade no tecido do filme. Ao colocar a fragilidade e a rebeldia das personagens em pé de igualdade, Bogdanovich oferece em Paper Moon um dos retratos da infância mais belos e justos da história do cinema.
Bárbara Janicas
Em The Last Picture Show (1971), Peter Bogdanovich juntava as peças numa América interior na década de 50, em que ao fim de um tempo, que coincide com o fecho da sala de Cinema da cidade, se associa a uma desagregação da comunidade, na separação de um bando de jovens inadaptados, alguns a responderem às convocatórias para a Guerra da Coreia, que para o espectador do início dos 70’s ligava o interruptor da guerra injustificada, sem fim à vista, no Vietname, uma carnificina que chegava aos lares americanos através da televisão. Neste retrato melancólico, Bogdanovich empurrava a Nova Hollywood para a filiação, homage ao cinema clássico, no enterro de “Sam the Lion”, o fordiano Ben Johnson, e instalava Cybill Shepherd na paisagem da nossa memória: aos 20 anos, estreava-se como Jacy Farrow, a rapariga popular e rica da pequena cidade, inquieta por um quotidiano familiar hipócrita, paredes meias com o adultério e o alcoolismo, enquanto se questionava a quem entregar a virgindade.
Três anos depois, Bogdanovich levou Cybill Shepherd à Europa do século XIX, para ser a Daisy Miller (1974) de Henry James. A primeira parte, passada num hotel termal na Suíça, serve tanto para apresentar as personagens, como para afirmar o primeiro confronto entre a velha Europa e o novo mundo, a América. Frederick (Barry Brown), americano a estudar na Europa há vários anos, fala de Victor Hugo, Daisy responde com barcos a vapor. A tia de Frederick designa os elementos da família americana como rudes e vulgares e Daisy começará desde logo a atacar as convenções quando decide visitar com Frederick um castelo do outro lado do rio, sem a companhia da mãe. Um castelo degradado, uma ruína com a solenidade e a rigidez do cada vez mais europeu Frederick; mas ele está encantado com a rapariga, pela maneira como ela se insinua, desconcertado pela sua beleza e franqueza, e dir-lhe-á – “I had the time of my life”.
Essa primeira porção de Daisy Miller lembra uma screwball comedy dos 40’s ou o seu What’s Up, Doc? (1972) – em que o par Barbra Streisand/Ryan O’Neal jogava com a nossa memória, ela deitada sobre o piano a pedir-lhe “play it again, Sam” -, com diálogos que se acotovelam, situações indefinidas e comportamentos por aclarar; progressivamente após a chegada dos personagens a Roma, Bogdanovich abdica da comédia solarenga para entregar o filme a um tom nocturno e melancólico, a antecipar o destino de Daisy. Perante uma sociedade que contempla com horror a desfaçatez, a conduta imprópria da rapariga americana, Frederick vai afrouxando o estatuto de intermediário entre os dois mundos, escolhe o conforto e a cobardia da carruagem da senhora Walker, que condenara Daisy à ruína, e vale a pena lembrar que é pelos olhos dele que vemos Daisy Miller. Só demasiado tarde Frederick solucionará o mistério, já depois da contaminação de Daisy pela febre romana nas ruínas do luar do Coliseu, uma mescla de malária com uma mancha definitiva na reputação. Afinal, a rapariga imprudente, era inocente de espírito, apenas culpada pela sua beleza de juventude, pela honestidade e por fazer o que bem entendia, sem temer pela reputação, de quem preferia um chá frio a um conselho.
Vítor Ribeiro
É difícil escrever sobre alguém que admiramos tanto sem que nos apeteça unicamente dizer, “vejam tudo!”. Não só porque a obra de Bogdanovich merece ser vista, como sobretudo revista por todos aqueles que sempre menorizaram o seu trabalho. Porque ao contrário do que uma certa crítica bafienta afirmou – sempre trocista para com os directores da Nova Hollywood, como se estes fossem um conjunto de copistas e trapaceiros dos clássicos –, Bogdanovich não foi apenas um herdeiro desse cinema, como ousou colocar-se ao lado dos maiores. Mas é claro que esta ousadia lhe saiu cara, assim como a todos os outros (Coppola, Cimino ou De Palma), que viram as suas carreiras truncadas depois de sucessivos flops de bilheteiras, dinheiro esbanjado em produções ruinosas e um cinema muitas vezes incompreendido ou ignorado pela crítica da época. Bogdanovich, apesar de ter somado alguns sucessos ao longo da década de 70, com o maravilhoso Last Picture Show (1971), What’s Up Doc? (1972) ou ainda Paper Moon (1973), a carreira deste realizador, desde o seu primeiro filme Targets (1968), foi marcada por sucessivos fracassos, alguns absolutamente catastróficos, como foi caso do extraordinário They All Laughed (1981), que desbaratou por completo a sua fortuna, quando este decidiu assumir os custos da distribuição do filme. Mas tal como a queda de muitos magníficos realizadores, como foi o caso de Orson Welles, com o seu The Magnificent Ambersons (O Quarto Mandamento, 1942), ou de Francis Ford Coppola, com One From the Heart (Do Fundo do Coração, 1981), também Bogdanovich caiu de forma esplendorosa. Dentre essas quedas esplendorosas, gostaria de assinalar Daisy Miller (1974), At Long Last Love (Amor eterno, 1975), Nicklodeon (1976), Saint Jack (Noites de Singapura, 1979), Illegaly Yours (Ilegalmente Tua, 1988), Texasville (1990), The Thing Called Love (O Grande Sonho, 1993), The Cat’s Meow (O Miar do Gato, 2001) e ainda She’s Funny That Way (Ela é Mesmo… o Máximo, 2014), todos eles, filmes que nunca obtiveram a devida atenção e que no entanto, demonstram a enorme injustiça cometida contra Bogdanovich.
Mas centremo-nos em Targets. Se é certo que Bogdanovich é conhecido pelas suas screwball comedies, e o papel preponderante que Hawks teve no seu cinema, Targets marca o início de carreira através de uma lente hitchcockiana. Tal como De Palma um dia afirmou, apesar do inegável culto que há hoje em torno da figura de Hitchcock, foram poucos os realizadores que continuaram o seu legado à época. No entanto, ao longo da década de 70, tal como Targets, filmes como Obsession (Obsessão, 1976), de Brian de Palma, ou ainda Someone’s Watching Me (Alguém anda a espiar-me, 1978), de John Carpenter, revelam o traço profundo que Hitchcock deixou na história do cinema. No entanto, se podemos reconhecer de certa forma Rear Window (Janela Indiscreta, 1954) como a matriz deste filme, há a evidente referência ao cinema de Roger Corman. Porque enquanto o olhar analítico e tensional de Hitchcock molda o modo como o sniper vai friamente executando os seus crimes, o lado grotesco, porém trágico, é a Corman que ele vai buscar (tão presente em The Tomb of Ligeia (O Túmulo de Ligeia, 1964) ou X: The Man With the X-Ray Eyes (O Homem Com Raio-X nos Olhos, 1963). Os monstros de Corman são como animais acossados que ao longo do filme vão dando mostras da sua condição humana através da trágica história pessoal. É óbvio que a presença do actor Boris Karloff em Targets – o expoente máximo do horror –, nos remete para o universo de Corman, contudo, Karloff não é o monstro, mas antes a vítima do monstro (do sniper). Nesta parábola americana, algo ao qual o cinema de Bogdanovich foi sempre muito sensível (há sempre um evidente retrato da América e da sua gente), o horror não está no cinema e nos monstros que este constrói, mas antes na vida e naquilo a que a sociedade americana engendra. E nada melhor que a figura do sniper para contar esta história de horror, porque o sniper é por excelência a figura silenciosa, oculta e solitária do crime. Desde o sniper de Dmytryk [The Sniper (1952)] ao sniper de Don Siegel [Dirty Harry (A Fúria da Razão, 1971)], que esta figura é sempre retratada deste modo, mas Bogdanovich vai além do mero suspense que a sua acção provoca, para nos fazer pensar sobre o próprio cinema. De certa forma, toda a carreira de Bogdanovich é meta-cinematográfica, estando o seu cinema constantemente a reflectir sobre os feitos e efeitos do cinema na sociedade. Não é por acaso que Targets termina num drive-in, talvez o lugar mais icónico americano onde os filmes são projectados. Estou certo de que a perda de Bogdanovich não foi a mera perda do realizador, escritor ou actor, mas também (e sobretudo), de alguém que dedicou toda a sua vida ao cinema, dentro e fora do ecrã, e esse amor incomensurável, é certamente algo que a todos os cinéfilos irá fazer falta.
Bernardo Vaz de Castro
Quando a vida proporciona o encontro com algo de tão maravilhoso, dá vontade de ligar o coração à boca para dizer que Saint Jack (1979) é o mais belo filme de sempre; que Peter Bogdanovich é o melhor realizador da história do cinema; que Ben Gazarra é o maior actor de todos os tempos; que Robby Müller deixa todos os outros directores de fotografia na sua sombra; e que nunca houve secundário tão comovente como o Denholm Elliott deste filme. Saint Jack é bem um filme do seu tempo. É um filme de uma Singapura que não existe mais como era ali. Bogdanovich filma os ecos do período final da presença americana no Vietnam. Jack “Flowers” (entre parênteses porque o apelido pode sugerir ser alcunha) surge impecavelmente vestido nas suas camisas floridas e ocupa-se de um negócio de prostituição numa mansão colonial cheia de flores de carne-e-osso, e rodeada de vegetação igualmente exuberante.
Mais tarde, quando a concorrência das tríades lhe destrói o negócio, Jack é mantido num curto cativeiro e os carcereiros encarregam-se de lhe encher os braços com tatuagens com frases obscenas. Jack irá disfarçar essas inscrições tatuando flores por cima. E a partir desse momento não mais o veremos de camisas floridas, antes camisas lisas de alguém que perdera o brilho exterior do início. A saída para Jack será reconverter o seu negócio, dirigindo-o para um hotel de prazer e lazer ocupado pelos soldados americanos que gozam de uma pausa da guerra. Mas a situação não durará muito tempo e para manter o seu estilo de vida Jack será confrontado com uma proposta de trabalho que testa os limites da sua moral. Ele que tinha sido mostrado como uma presa alvo da cobiça das organizações criminosas concorrentes (mas sem um pingo da sua classe, integridade e bonomia), vai converter-se no caçador que aceitará pôr em prática um esquema que visa chantagear um político norte-americano inconveniente.
Saint Jack consegue o compromisso de dar a sensação de que mantém a estrutura literária do romance de Paul Theroux que lhe serve de base, e ao mesmo tempo deixar-se impregnar pelos espaços e o espírito de um período que chegava ao seu termo. É um filme de um romantismo à quinta-casa, e trata-se igualmente de uma enormíssima obra-prima.
Ricardo Gross
O travelling en arrière sobre o cemitério e a cova de Daisy Miller é dos arremates mais arquetipicamente elegíacos da obra de Peter; é como se Daisy devesse morrer necessariamente, segundo o esquema de Girard que inextricavelmente relaciona romanesco e morte [e este é um grande filme romanesco, como Sanshô dayû (O Intendente Sansho, 1954), Il gattopardo (O Leopardo, 1963), L’enfant secret (1979), Heaven’s Gate (As Portas do Céu, 1980)], mas para tanto a distância etérea deste travelling de evanescente deslize no-la entregasse numa urna funerária em cujo centro repousa o seu retrato oval, de que Narboni sobre Viver a vida já tirou para nós, relendo Poe com Godard, todas as implicações funestas para a heroína romanesca deste imbróglio, até certo ponto trágico mas também até certa reta venal e irônico, pelo fato de que aquele que pinta exaltante de êxtase o retrato da mulher apaixonada é também o que, como no conto de Hawthorne, vai acabar por assassiná-la – aqui no reino do inconsciente e do simbólico é claro – pois na economia fantasmática da obra Frederick Winterbourne não avisa a Daisy sobre a malária que paira pelo ar ensolarado de Roma, o que indiretamente suscita o seu desaparecimento. Não há testamento sem Morte, e toda grande obra de arte (as pequenas são antes obituários de nota de pé de página de jornal) trata das exéquias de seus honoráveis defuntos.
Daisy, neste caso em particular, é sempre também esta parvenu desajeitada como uma marionete masoquista de Punch and Judy (há no filme, aliás, um destes espetáculos em que suspeitamente a inocência acaba por ser punida pelas bastonadas do Outro, seu carrasco e senhor na arena do Desejo segundo o esquema kojeviano da fenomenologia), espécie de musa com mais espectadores que camarins, marionete em nada dolosa de um jogo social de que, como Visconti e Cimino, Bogdanovich nos dá as coordenadas fantasistas de planos de conjuntos magníficos de cabeças transversais e limiares suntuosos de entradas em cena. Esta musa a quem o público apedreja, portanto, não tem espaço cênico no salão da Restauração italiana, onde mal cabe com todos os chapéus, ademanes e clins d’oeil cuja necessidade e funcionalidade ela e sua mãe desconhecem: Daisy não sabe adequar corretamente a máscara à própria cara, anfractuosidades e reentrâncias de rugas da cartolina contadas nesta operação de embalsamamento da aparência pelo Codex social.; a ela só resta a máscara fúnebre de gesso, portanto. Para mim, é um dos seus filmes mais refinados como um escrínio de ourives tardio, o que, com exceção dos filmes de Cimino, é avis rara na nova Hollywood, mas também obra de indizível melancolia (porque sustentada pelo masoquismo e pelo Desejo mortuário associado ao romanesco), como o desastre comercial felizmente bem o mostrou.
Luiz Soares Júnior