Licorice Pizza é o nome de uma cadeia de lojas de discos (a titular roda de alcaçuz) que existiu na Califórnia nos anos 70, década que Paul Thomas Anderson recorda neste filme com a nostalgia própria de quem viveu não só o tempo mas também o espaço que a narrativa habita. O filme leva-nos até San Fernando Valley e resulta, em parte, de memórias do realizador e do seu amigo Gary Goetzman — que nada acidentalmente dá o nome a um dos dois protagonistas. As referências não se ficam pelas memórias de adolescência, mas resgatam também ícones de Hollywood, como no caso do piscar de olhos que é a personagem de Sean Penn, um quasi-William Holden que vive os dias de glória talvez um pouco ardentemente demais.
E se nostalgia é uma palavra que pode ter uma qualidade infantil, aqui é a forma romântica como Paul Thomas Anderson nos apresenta os habitantes do Valley, um local normalmente conotado como pouco glamoroso, sem a coolness de Hollywood, onde prolifera a banalidade em vez da vitalidade. Claro que são precisamente essas as qualidades que o filme concede ao Valley e a quem nele vive, revelando um espírito singular e irresistível.
E é exactamente esse abalo emocional surpreendente, essa veia sentimental por debaixo do sarcasmo, da ironia, da referência ou da coolness que permeia o filme que o torna bem mais rico do que possa parecer à primeira vista.
Parte do charme do filme — que é francamente sedutor — é pegar naquele momento de liberdade teen que se perdeu com a invenção do telemóvel: aquela sensação de passar o dia fora de casa, com os pais distraídos a trabalhar, e ir ter com amigos em busca de aventuras. Outra parte do charme são Alana Haim e Cooper Hoffman (o filho do incrível e saudoso actor Philip Seymour Hoffman, antigo colaborador do realizador). Ambos estreantes mas estrelas instantâneas, são usados de forma eficaz e será difícil chegar ao final do filme sem o espectador se apaixonar um bocadinho pelos dois.
Haim é Alana Kane e Hoffman é Gary Valentine e a história gira à volta de um will they or won’t they que se torna especialmente provocador porque Alana conhece Gary quando este tem 15 anos e ela 25 (ou talvez 28?). Mas não é apenas a química que os une — Gary pode ser um miúdo, mas a confiança que ele exibe em tudo o que faz (incluindo os seus vários negócios, de colchões de água a salões de jogos, que dão algum fio à meada à estrutura solta do filme) é desarmante. Alana parece ser alguém vagamente perdido na vida, como se depois do liceu se tivesse tornado difícil perceber qual era o caminho por onde enveredar. E em Gary vê alguém que, com uma lábia imensa, se vai safando seja como jovem actor seja como jovem empreendedor. E, ao mesmo tempo, Alana sente que consegue deter um certo poder sobre Gary e controlo sobre a relação. Mesmo quando ele é infantil e rezingão, Gary é bastante inocente e, à medida que se vão metendo nas mais diversas peripécias, ambos tomam conta um do outro. Pode ser estranho, mas para eles vai fazendo sentido. Claro que há algo de fantasia masculina na forma como se desenrola a dinâmica, mas é fácil perdoar o élan quando Alana é uma personagem tão complexa e multifacetada, efectivamente dominando o filme.
Paul Thomas Anderson tem mais sentido de humor e é mais sentimental do que pode parecer à primeira vista. Mas o realizador de Boogie Nights (Jogos de Prazer, 1997), There Will Be Blood (2007) e The Master (The Master – O Mentor, 2012) já tinha demonstrado estas facetas em Phantom Thread (Linha Fantasma, 2017) (uma comédia romântica extremamente disfuncional) e Punch-Drunk Love (Embriagado de Amor, 2002). Aqui, explora-as em vinhetas desconcertantes: como quando Gary e Alana vendem um colchão de água a Jon Peters (Bradley Cooper), na altura namorado de Barbra Streisand e um conhecido mulherengo com queda para sandes de manteiga de amendoim, e toda a situação rapidamente descamba; ou no episódio centrado no político protagonizado por Benny Safdie [metade dos irmãos Safdie, que realizou filmes como Good Time (2017) e Uncut Gems (Diamante Bruto, 2019)] que traz inesperada emoção a algo que parecia ser bem diferente do que revela ser.
E é exactamente esse abalo emocional surpreendente, essa veia sentimental por debaixo do sarcasmo, da ironia, da referência ou da coolness que permeia o filme que o torna bem mais rico do que possa parecer à primeira vista. Tal como a vinheta de Jon Peters — inclui um embargo de petróleo que deixa a cidade a salivar por gasolina — que culmina numa inacreditável manobra automóvel nas mãos precisas de Alana, Paul Thomas Anderson faz o incrivelmente proficiente parecer fácil e relaxado, estando sempre a adicionar camadas cheias de intenção, prontas a serem desembrulhadas quando o feitiço termina, sem nunca se quebrar.