Há uma pizza que (se) promete nestas linhas. Cheia de anchovas e alcaparras. Alcaçuz? Nem vê-lo. Dois walshianos trocam impressões sobre – e cortam às fatias – o misterioso título do filme de Paul Thomas Anderson, mas esse é só um ingrediente entre muitos, numa conversa açucarada, cheia de ups and downs, como a relação com este filme em particular e com a obra de PTA em geral, como, aliás, a paisagem deslizante do vale chamado Los Angeles. Uma tentativa de agarrar uma experiência que nos fugiu por entre os dedos, que se revelou um prato inesperado, uma correria histórica/histérica algo desenfreada, que não estava no menu das nossas expectativas, para o bem e para o mal. De qualquer das formas, avisamos: nesta crítica epistolar, há um walshiano mais entusiasta deste PTA em LA, chamado Ricardo Vieira Lisboa, e outro quase, quase a desfazer-se em lágrimas, qual bebé chorão, chamado Luís Mendonça.
Bom domingo Luís,
Espero que estejas bem.
Depois de duas semanas a adiar a ida ao cinema (por causa de todas as restrições), lá fui finalmente assistir ao Licorice Pizza (2021), do Paul Thomas Anderson. Depois desse período de protelamento, em que se somavam as múltiplas laudas ao filme e ao seu realizador, chegar finalmente ao cinema e sentar-me na poltrona foi tanto um gesto de honesta curiosidade cinéfila, como o resultado de uma longa e conflituosa luta interna, contra a sombra funesta das expectativas. Já se sabe que é impossível ver um filme “em branco”, a não ser, talvez, à estreia (caso as pessoas do marketing já não tenham inundado as vias de comunicação com factóides). Mas neste caso senti que vi Licorice Pizza através de uma névoa cultural que me turvava, um pouco, as vistas. Não sei se terás sentido o mesmo.
De qualquer modo, o simples facto de se ver um filme do PTA traz consigo uma certa carga: não é uma operação leve; não é um visionamento solto. Mais ainda quando se começa a tornar claro, que os filmes que o Mr. Anderson realiza oscilam entre dois pólos. Um, aquele que lhe trouxe a aclamação crítica e os galardões, mais sério, mais dramático, mais centrado em homens “maus”, violentos e manipuladores, numa estrutura narrativa de ascensão e queda – penso, naturalmente, em There Will Be Blood (Haverá Sangue, 2007), The Master (O Mentor, 2012) e Phantom Thread (Linha Fantasma, 2017). O outro, é aquele que tendo garantido a sua popularidade inicial, lhe vem granjeando alguma incompreensão recente, a sua veia humorística, meio tola, tão romântica quanto pateta, que se dispersa por múltiplas personagens e se organiza segundo um certo modelo coral, onde uma ou duas figuras centrais se fazem rodear por uma panóplia de sui generis secundários, cada qual com a sua cena – refiro-me a Boogie Nights (Jogos de Prazer, 1997), Punch-Drunk Love (Embriagado de Amor, 2002) e Inherent Vice (Vício Intrínseco, 2014). Magnolia (Magnólia, 1999), por sua vez, parece ocupar uma posição intermédia, neste xadrez bipolar. E, claro, estas oposições são apenas uma forma simplista de dar uma qualquer forma a uma obra que, não sendo extensa (realizou apenas 10 longas metragens em 25 anos), é das mais desafiantes do cinema dos estúdios americanos das últimas décadas (só equiparável, talvez, à de James Gray).
Licorice Pizza poder-se-á integrar, facilmente, neste último pólo: pelo seu humor, pela sua ginga, pelos seus “cameos” caricaturais, pela história de amor adolescente. E, pelo menos, foi assim que a névoa publicitária mo vendeu.
A perversidade de fazer um filme aparentemente imberbe sobre “um merdas” surpreendeu-me.
Só que nem tudo é o que parece neste filme… É isso que tenho estado a remoer desde que saí da sala. Este é um filme aparentemente doce, aparentemente romântico, aparentemente cândido. Em boa verdade, tudo aqui (ou ali – talvez me sinta engolido pelo filme) compõe mais um andersoniano retrato de um “homem mau”, manipulador e cruel, só que no momento em que tudo isso está ainda a despontar. A perversidade de fazer um filme aparentemente imberbe sobre “um merdas” [“eles (os homens) são todos uns merdas” diz-se a certa altura no filme – e não era preciso dizê-lo, já se tinha percebido] surpreendeu-me. Isto porque Punch-Drunk Love era um filme genuinamente romântico, achei que este não seria diferente. Mas é.
Todo o “romantismo” de Licorice Pizza é, como tudo em Gary (o protagonista), uma trapaça, uma forma de esconder uma segunda intenção. Gary será como o ator autocentrado que só sabe falar através de linhas de diálogo decoradas (Alana comentará que, ao telefone, ele usa expressões feitas), será como o cocainado conquistador baboso que só consegue ver o mundo a partir de um par de seios, será como o político, cheio de ideias “boas para o mundo”, mas igualmente cheio de incoerências pessoais, etc. Todos os adultos são ridículos e Anderson terá, certamente, dado direções que reforçam as interpretações excessivas de todos eles. Pensando agora nisto, talvez seja para aí que eles correm incessantemente: para uma vida adulta onde terão que, ou aceitar as suas frustrações e carregá-las no rosto triste ou, inversamente, tomar como a sua identidade um sucesso postiço feito de ilusões (o caso dela, o caso dele, respetivamente). Haverá coisa mais triste do que aquele “I love you Gary”, do plano final? Não é essa dedicatória apaixonada o fim-de-linha de uma rapariga que só consegue imaginar o seu futuro através de homens falhados?
Roubando o título do famoso livro de Joyce, este é um A Portrait of the Con Artist as a Young Man. E, por essa via tortuosa, acaba por ser, também, um retrato do próprio PTA, ou pelo menos do seu modo ardiloso de construir situações e personagens.
Não me queria alongar demais, por isso, antes de botar mais faladura, gostava de te ler. Diz-me o que achaste.
Um forte abraço,
Ricardo
Caro Ricky Spanish,
Acompanho-te em muito do que escreves. O “raio-X” que fazes à carreira curta mas muito preenchida – um “balão” cheio de emoções, socos no estômago e jorros de brilhantismo como houve poucos no cinema americano recente – é de facto brilhante. Sobretudo quando chegas a Punch-Drunk Love, o filme romântico “para aqueles que nem adoram PTA”, obra de culto, um culto cada vez maior, crescente desde o dia em que passou em Cannes até ao dia de hoje. É que fui revê-lo ao Nimas, ainda “perturbado” pelo primeiro contacto com Licorice Pizza e pude, digamos assim, “lavar a alma” da desilusão que tive.
Antes de mais, devo dizer-te: Licorice também foi, para mim, um regresso, há muito desejado, à sala escura. Foi mais do que isso, na realidade: foi “o regresso” a uma excitação que não sentia há anos em relação a um filme. Vi e revi obsessivamente o trailer deste novo filme de PTA vezes sem conta. Brincava quando ia ao cinema, dizendo, às vezes somente para os meus botões: “o filme já vai valer a pena pois haverá antes essa obra-prima que é o trailer do novo PTA”. Voltando à metáfora do balão, acho que enchi o balão da minha expectativa como já não fazia desde os eufóricos tempos de descoberta adolescente do cinema, que, já agora, foram também os tempos em que fui colhido pelo cinema de PTA, começando em Magnolia e, depois, recuando até Boogie Nights e Hard Eight (Passado Sangrento, 1996).
Não sei bem de onde vem o título, mas acho que a ideia de PTA em contar este boy meets girl de maneira tão esparsa, acidentada, “às fatias”, resulta num progressivo distanciamento do espectador em relação àquilo que, bolas, deve municiar e nos elevar num filme como este: o mundo interior das personagens e aquilo que as liga entre si.
Posto isto, penso que fui devorado pela minha própria expectativa. Há um ritmo, muito do PTA, que aqui funciona como uma espécie de grande vendaval de situações. É justo compará-lo a Once Upon a Time… in Hollywood (Era uma Vez em… Hollywood, 2019), de Tarantino, mas até acho que PTA foi mais papista que o papa (também acho que ele é melhor a contar uma história, mesmo com muitas personagens, do que estórias, narrativas regidas menos pelos mundos das personagens do que por situações), dedicando-se tão intensamente à reconstituição histórica da LA dos seventies que perdeu as personagens pelo caminho. Não digo as personagens per se, mas aquilo que supostamente é o objecto principal deste filme: o amor que as une – caramba, por muito acidentado ou retorcido que seja (sim, o “I love you” final é intrigante e tem o seu quê de fascinante…), trata-se de uma história de amor! Concordo contigo na comparação que fazes com Punch-Drunk Love, digamos assim, “pela negativa”, porque, sim, este não é o mesmo tipo de história de amor.
É, quase, um filme oposto, em certo sentido. Quando saí da sessão, senti que parte da minha decepção se prendia muito com o facto de ter, no fundo, achado que o PTA “tentou demasiado” distanciar-se do amor romântico; esforçou-se demasiado em não ser cute e em produzir, ao invés, uma espécie de documentário burlesco sobre uma cidade, fazendo do grande vale acidentado de Los Angeles metáfora dos ups and downs da vida entrelaçada dos dois protagonistas. Mas, de facto, os protagonistas acabam ultrapassados por todo um rol de situações…
Não sei bem de onde vem o título, mas acho que a ideia de PTA em contar este boy meets girl de maneira tão esparsa, acidentada, “às fatias”, resulta num progressivo distanciamento do espectador em relação àquilo que, bolas, deve municiar e nos elevar num filme como este: o mundo interior das personagens e aquilo que as liga entre si. Por exemplo, sinto que tudo em Punch-Drunk Love nasce das personagens e daquilo que as liga ou que as desliga entre si (recordo o vilão sumptuoso interpretado por Philip Seymour Hoffman, aqui talvez comparável a Bradley Cooper, que encarna uma personagem igualmente intensa e interessante, mas que não creio sobreviver à pura caricatura clownesca, decididamente sem o mesmo pathos do madman interpretado por Hoffman).
Não sei se isto não se resume muito ao que dizes logo no início, em jeito de alerta: este não é um visionamento solto. E, acrescento, o visionamento solto que talvez o trailer, erradamente – enganadoramente, acrescento eu – tanto prometia. Confesso que cheguei a sentir, ao ver o trailer pela enésima vez, que este poderia ser o Summer of 42‘ (Verão 42, 1971) do PTA. No entanto, é bem verdade: a realidade é outra, já que o o filme resiste à empatia fácil, combate a nostalgia (mesmo sendo um retrato tão ou mais completo da LA dos anos 70 quanto o é o filme do Tarantino)… é, em certa medida, um filme em permanente contradição interna, com medo de ser o que se espera que seja. E até, lamento dizê-lo, com medo de ser um solto boy meets girl tirando máximo partido do carisma (que está lá, claro, mas nunca se cumpre, a meu ver) dos seus dois protagonistas improváveis, “encontrados”, interpretados pelo filho de Philip Seymour Hoffman, Cooper Hoffman, e Alana Haim (duas descobertas que, parece-me, PTA não quis, mais até do que “não soube”, celebrar convenientemente).
A equação desta decepção, como vês, é algo complexa e tem contornos tão épicos quanto o filme e o retrato de época… Enfim, ainda digiro esta pizza quatro estações, com alguns óptimos ingredientes mas massa mole da Telepizza…
Abraço,
Luís Mendonça
Exmo. Dr. Luís,
Folgo em lêr-te e muito me agrada descobrir algumas passagens da tua missiva. Puxando pelo novelo das tuas deixas, agarro na dúvida quanto ao enigmático título, Licorice Pizza.
A opção de não tradução por parte do distribuidor português é bastante compreensível: Pizza de Alcaçuz seria um título terrível. Parece-me que, ainda assim, o título é muito revelador do tom e dos intentos do filme e até serve como comentário à personagem principal masculina, o Gary (não tinha percebido que o miúdo era o filho do Hoffman – mas agora tudo faz um pouco mais de sentido…). Pizza e Alcaçuz são dois alimentos tipicamente adolescentes: um, salgado, gorduroso, cheio de pastoso queijo escorregadio e enchidos fatiados, o outro, doce, de textura próxima à do caramelo que se cola aos dentes, e com um aroma herbáceo, ao mesmo tempo amargo e enjoativamente açucarado.
PTA procura identificar como essa náusea tomou de assalto uma cidade, uma indústria do entretenimento e uma certa ideia de “masculinidade”.
Esta improvável junção de opostos, doce e salgado, mas ambos no contexto dos interesses pubescentes, parece-me traduzir, em jeito de comparação (nem chega a ser metáfora) a relação de Gary com Alana – ainda que fique por perceber qual deles é o salgado e qual o doce. Mais, o título transmite, também, essa tensão que muito bem identificas, entre o meloso e o adstringente, entre o comfort food e ácido. Por fim, e talvez aqui se encontre o dito comentário ao protagonista: um restaurante com pizzas de alcaçuz seria um dos possíveis negócios mirabolantes do nosso imberbe vigarista, igualmente condenado ao fracasso, mas que teria, certamente, um mesmo entusiasmo inicial por parte dos seus púberes clientes. É curioso reconhecer, neste obscuro título, as várias matizes e paradoxos que revestem todo o filme, onde a aparente guloseima infantil se revela, afinal, uma insustentável forma de encarar a idade adulta. Para o palato juvenil, esses contrastes são uma iguaria, mas cedo se tornam em inqualificável náusea vomitiva. Parece-me que, no filme, PTA procura identificar como essa náusea tomou de assalto uma cidade, uma indústria do entretenimento e uma certa ideia de “masculinidade”. Até que ponto não é este filme uma alegoria à viragem adolescente de Hollywood, reduzida a filmes de super-heróis de collants?
Pegando noutra das pontas soltas desse novelo desiludido que me deixaste, e dando continuidade ao que acabo de escrever, de facto este Licorice Pizza é “uma espécie de documentário burlesco sobre uma cidade” – e sublinhe-se o burlesco. Enquanto assistia ao filme fiquei estarrecido pela sequência do camião. Construída, na parte final, em total silêncio, entre sons de pneus rangentes e de travões guinchantes, é um puro gag clownesco, que me fez pensar, em direto, no famoso gag do piano nas escadas, do Laurel e Hardy, vulgo, Bucha e Estica (que era, também, à sua maneira, “uma metáfora dos ups and downs da vida entrelaçada dos dois protagonistas” a partir dos desníveis topográficos de LA). Só que, se para o duo mudo o risco era partir alguns dedos do pé, estragar o móvel, ou abalroar um transeunte, aqui trata-se da morte aparatosa dos vários passageiros menores dessa carrinha de mudanças, e o estrepitoso choque com outro automóvel ou algum edifício. E há qualquer coisa de dupla cómica entre Gary e Alana. Ele, Gary/Hardy, espalhafatoso, confiante, inconsciente, apalhaçado, ela/Laurel (dos palhaços silenciosos, Stan Laurel guarda o recorde de maior número de cenas travestidas), moderada, inocente, insegura e séria. Será que Hardy é a pizza e Laurel o alcaçuz?
O certo é que, sem ser PTA, só mesmo o Blade Edwards se interessou por atualizar e convocar a dupla Bucha e Estica para a Los Angeles dos anos 1960/1970 (Edwards, em direto, PTA em diferido). Penso, claro, em The Great Race (A Grande Corrida à Volta do Mundo, 1965), que é uma ode ao trabalho desse duo, e não seria um ótimo título para este Licorice Pizza? Não estava bem à espera deste “descaminho” cómico do PTA, mas o certo é que ainda não me consegui posicionar perante o filme, e o visionamento já foi há uma semana…
Um abraço cheio de dúvidas,
Ricardo
Caro Mestre Ricky,
Pois, mas olha que esta troca de missivas já me fez bem ao espírito e, em certa medida, fez-me “dominar” um pouco essa desilusão que apontava para muitos lados ao mesmo tempo, mal saí da sala e me pus a reflectir sobre o que havia sentido ou sobre o que não havia sentido. É engraçado que fazer sentido e produzir sentimento sejam coisas não necessariamente convergentes. O camarada Vasco Baptista Marques contava que teve uma reacção ao filme talvez não muito diferente da tua: demorou a processar aquela “corrida” toda (é bem citado o título do Edwards e acertas em cheio com a desconstrução burlesca do filme do PTA). Portanto, talvez seja mais um The Master: filme que sobrecarreguei com a minha própria (e desmesurada) expectativa, para depois me “espetar” com uma desilusão das grandes. No entanto, à medida que o tempo passava, reflectia e lia sobre o filme (por ex., lia o magnífico texto do Guillaume para o Dossier Fotograma, Meu Amor), a minha percepção mudava e começava a ponderar uma revisão acompanhada de uma bela reavaliação, aberto a ter de dar o braço a torcer no fim. Quem sabe, Licorice não é mais um desses filmes cujo sentido – e o sentimento – eu só apanho à medida que ele “cresce em mim”, fazendo como estou a fazer agora contigo: falando sobre ele, percebendo os sentidos contrários que suscitou em mim…
Não me senti, para citar o título português de Punch-Drunk Love, embriagado de amor ao assistir a esta história que resulta, de facto, numa grande correria rumo a não se sabe bem o quê.
Voltamos à tua verificação justa: não é um visionamento solto. Não é, sequer, a meu ver, o filme fácil e consensual que muitos poderão achar que seja (não o tendo visto ainda). Um alerta prévio talvez faça bem ao espectador incauto ou demasiado embriagado com altas expectativas.
Há um aspecto que queria ainda trazer para esta conversa: a sensação de que, como num filme de Hal Ashby [pensei muito no Shampoo (1975)], a trela dada aos actores foi muito longa e que esses mesmos actores – face à sua natural “impreparação”, ou amadorismo – não souberam sempre dar conta do recado. Sinto essa “falta de escrita” na direcção dos actores, ausência perniciosa do lado mais romanesco presente nalgumas obras-primas de PTA, tais como Magnolia, There Will Be Blood, Punch-Drunk Love e Phantom Thread. Por exemplo, esperava outro cuidado na escrita de diálogos – não sei quanto espaço foi dado à improvisação, mas sinto que foi demasiado, sobretudo para actores tão “verdes”. Um filme mais “romanesco” permitiria talvez fortalecer a tal ligação entre os protagonistas, torná-los mais eloquentes, à falta dos recursos que apresentam neste momento (porque, repito, o carisma dos dois está lá, mas não é suficientemente “canalizado” em benefício da tal química amorosa). Não me senti, para citar o título português de Punch-Drunk Love, embriagado de amor ao assistir a esta história que resulta, de facto, numa grande correria rumo a não se sabe bem o quê; rumo à sensação de que o filme “nos passou ao lado”, foi como uma corrente de ar. Ou, enfim, uma pizza fast food.
Mas arrisca aí falar um pouco do deve e haver na tua relação com o filme e como o “posicionas” na obra do PTA, no que ela já te deu e pode vir a dar.
Abraço doutorado ao mestre da culinária fílmica,
Luís M.
Desiludido Luís,
Na verdade, acho que a minha relação com quase todos os filmes do PTA tem tido sempre construída em partes iguais pela experiência em sala e pela experiência “exterior”. Isto é, se bem me recordo, todos os filmes se modificaram na minha memória à medida que ia refletindo sobre eles, a posteriori. Por exemplo, Phantom Thread é um filme de uma extraordinária complexidade e perversidade que um olhar rápido não consegue descortinar completamente. O mesmo com The Master. Acho-o um realizador sobremaneira inteligente e tudo aquilo que pode, num primeiro impacto, parecer despropositado, acaba por se revelar, num segundo momento, como algo bastante revelador sobre a própria natureza das personagens, da narrativa, ou do filme enquanto construção formal. Este Licorice Pizza não me parece diferente, ainda que talvez seja feito de maiores subtilezas ou tudo está, afinal, ainda mais bem camuflado do que é costume. Como te digo, o retrato de Gary é de uma (apenas) aparente doçura: tudo é, no fim de contas, cruel.
Toda aquela correria (que na sequência final ganha uma dimensão quase vídeo-ensaística) assemelha-se àquele extraordinário vídeo para o Daydreaming dos Radiohead: uma sucessão de portas e corredores, percorridos num contínuo infinito e labiríntico, que atravessa lugares, tempos, estações e paisagens.
À medida que vou refletindo sobre o filme, fico com a sensação que aquilo que produz um efeito de camuflagem mais perfeito é a cobertura envernizada que PTA aplica sobre a superfície do filme, dando-lhe um ar açucarado de pastelaria. Sendo que essa camada brilhante é, no fundo, uma importação, para para o seu cinema de ficção, daquilo que vem sendo a sua prática no videoclipe. Toda aquela correria (que na sequência final ganha uma dimensão quase vídeo-ensaística e autorreflexiva) assemelha-se àquele extraordinário vídeo para o Daydreaming dos Radiohead: uma sucessão de portas e corredores, percorridos num contínuo infinito e labiríntico, que atravessa lugares, tempos, estações e paisagens.
Mas aquilo que dizes sobre os atores terem demasiada trela é muito justo. Por acaso li ontem uma crítica do grande Vincent Canby, para o The New York Times, sobre o Madame Bovary (1991), do Claude Chabrol, com a Isabelle Huppert. Ele escreveu, sobre esse filme, algo que se aplica muito a este: a presença estoica e exuberante da atriz não coincidia com o drama e as fragilidades da personagem. Em Licorice Pizza creio que também a Alana Haim é demasiado despachada, resolvida e solta (de novo esse adjetivo) para que Alana Kane (a personagem) seja tão dependente dos homens (e rapazes) que a rodeiam. Como se costuma dizer, não bate a bota com a perdigota. À força de querer fazer um retrato de uma jovem mulher emancipada, constrói-se uma contradição fundamental na natureza da personagem. Só que – e é isso que talvez seja mais perturbador em PTA – esse aparente paradoxo talvez seja um comentário sobre a superficialidade desse discurso feminista, em plenos anos 1970.
Não me parece que acabar com uma visão tão negativa das coisas seja um bom remate para esta nossa troca, por isso chuta aí um balázio.
Um forte abraço do bi-mestre ao senhor professor,
Ricardo
Caríssimo Curador Lisboa,
O que dizes define e ultrapassa este sabor tão chato a desilusão com que fiquei… Porque é isso que dizes: por muito que mergulhe a fundo, tentando perceber o que me fez reagir mal a esta experiência, mais sou reenviado às superfícies, que são, como é hábito no seu cinema, muitíssimo sedutoras. E essas superfícies dizem respeito, claro, ao próprio grão (à luminosidade e cores do filme), mas também aos corpos dos actores, que resistem sempre ao absolutamente caricatural, que parecem gritar uma espécie de frescura ou jovialidade (pura energia cinética) que é tão, mas tão rara no cinema americano de hoje em dia… Acho que há uma sedução, que não morre de facto, pela possibilidade que o filme encerra, cena após cena, mas também sobrevém um sentimento de que essa promessa reluzente nunca se materializa ou causa verdadeiros abalos – falavas do ingrediente magnífico da “perversidade” no Phantom Thread, pois é esse “ingrediente mágico” que sinto em falta nesta épica e vertiginosa correria histórica e histérica (algo saturante)… e vagamente sentimental chamada Licorice Pizza.
Sim, eu queria mais cuteness, queria mais harmonia narrativa (saudoso “efeito Altman” no cinema do discípulo PTA), queria mais ritmo e música nas imagens, integrada, blended in.
Também percebo bem o que dizes sobre a linguagem do videoclipe, citando o magnífico Daydreaming dos Radiohead. No entanto, nada no filme é “harmonioso”. Recapitulando, o filme não quer ser cute, não quer ser só doce, porque também gosta de sabores amargos e estranhos, e, voilà, também acho que não chega a ser um filme musical – o próprio papel da música é algo subsidiário e… confuso. Se comparares a maneira como a música do Jonny Greenwood, dos mesmos Radiohead, entra neste filme com a banda sonora original da sua autoria em Phantom Thread encontras, creio, pistas sobre o seguinte: a música de Phantom Thread serpenteia o filme de maneira tão intensa e erótica… Complementa e intoxica a história que é contada, com as tais pitadas sirkianamente magníficas de perversidade…
Ora, em Licorice Pizza temos um “jukebox movie”, em que a música “serve” cenas de transição histórica, sem que propriamente se saiba “misturar” com as imagens e fazer implodir o grão da imagem. Agora que revia Punch-Drunk Love, sentia de maneira poderosíssima esse sentido de unidade imagem-música, uma perfeita harmonia desarmoniosa – anti-videoclipe – já que a música “emana” do mundo da personagem “muito Blake Edwards”, na realidade. A música de Jon Brion tem corpo e é incrivelmente disruptiva (temperamental e actuante), qual personagem no tecido do filme, “entretecendo-o” de maneira ritmada mas também inconstante, muito imprevisível – o papel da colaboradora/namorada Fiona Apple, tenho a certeza, não foi despiciendo ali.
Posto isto, sim, eu queria mais cuteness, queria mais harmonia narrativa (saudoso “efeito Altman” no cinema do discípulo PTA), queria mais ritmo e música nas imagens, integrada, blended in. Tudo isto, em suma, num mundo emanado das personagens e não num mundo onde as personagens estão à solta, rodeadas e, enfim, esmagadas por décors – e o seu “texto histórico”… – que se elevam algo indiferentes à sua passagem.
Abraço açucarado,
Luís Mendonça
Querido Luís,
A vida é mesmo assim, não como uma caixinha de chocolates, mas como uma caixa de pizza. Quando a recebes do entregador nunca sabes, ao certo, o que tem dentro. Umas vezes trazem-te a desejada pizza com anchovas e alcaparras, outras vezes enganam-se e metem-lhe alcaçuz. Cabe-nos comer e… não calar. Continuemos esta conversa à mesa, um dias destes. Conheço uma pizzaria ótima.
Um abraço,
Ricardo
Man,
Adoro anchovas e alcaparras!
I’m in. Pagas tu, ok?
Abraço,
LM
[Actualização do dia 28 de Janeiro] O leitor não se deve apoquentar com a preguiça dos nossos walshianos, que não se deram ao trabalho de “googlar” o significado do título do filme de PTA. Aliás, já haviam sido devidamente avisados pelo atento e informado editor walshiano, João Araújo, sobre “o verdadeiro” significado do título: “Do que li, parece que a origem do título para o PTA é uma private joke, que “licorice pizza” é uma espécie de alcunha para long play (LP abreviado), um álbum de música em vinil, por ter a mesma forma (preto como o alcaçuz, e redondo). Private joke também porque era o nome de uma loja de discos que ele frequentava em miúdo.” Pois é, mas a troca de cartas é genuína tal como a ignorância dos correspondentes, nessa altura, sobre a verdade verdadeira dos factos. Fica a interpretação gastronómica tão falsa e pouco fiável quanto a promessa de Ricardo Vieira Lisboa de levar Luís Mendonça a jantar numa óptima pizzaria. Deliciosa invenção, ainda assim.