Durante muito tempo, Jonas Mekas foi para mim um desses cineastas que sabemos de antemão arrebatadores e incontornáveis, mas cuja obra eu teimei em “contornar”, demovida pela longa duração dos seus principais filmes [como as cinco horas do seu magnum opus As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty (2000)] e pela cisma de querer vê-los apenas em sala de cinema, nas condições ideais para ser devidamente “arrebatada”. Por um lado, fiz bem em esperar: em janeiro de 2018, na sala Georges Franju da Cinémathèque Française, tive o privilégio de descobrir Lost Lost Lost (1976) na presença do próprio Jonas Mekas, que não só apresentou o filme com um genuíno entusiasmo como ficou connosco na sala durante toda a projeção (e sabemos o quão raros são os cineastas que o fazem, que não se dizem fartos ou desiludidos com os seus filmes uma vez terminados). Por outro lado, essa seria eventualmente a última, e única, oportunidade para um tal encontro: a 23 de janeiro de 2019, no seu apartamento em Brooklyn, Jonas Mekas pousava definitivamente a sua câmara, apenas um mês após celebrar 96 anos — e, coincidência agridoce, no mesmo dia em que eu festejava os meus 26.
Nesse dia, fui desencantar, num arquivo do meu computador, uma fotografia que me lembrava de ter tirado na exposição sobre os Velvet Underground, na Philharmonie de Paris, em junho de 2016. Se a imagem em questão fazia referência à curta-metragem To Barbara Rubin With Love (2007), homenagem de Mekas a uma das figuras lendárias da cultura underground americana dos anos 60 [a quem supostamente devemos o encontro entre Andy Warhol e o grupo de Lou Reed, bem como uma provocante instalação para dois ecrãs em torno de uma orgia, intitulada Christmas on Earth (1963)], aos meus olhos esta fotografia cristalizava in fine a promessa da dádiva que os filmes de Mekas viriam a significar para mim.
Desde então, guardo sempre um momento do meu dia de anos para lembrar Mekas e oferecer-me um dos seus “lampejos de beleza”, por mais breves e ocasionais que sejam. Este ano, decidi partilhar a minha homenagem aqui no À Pala de Walsh, pois 2022 será também o ano do centenário de Jonas Mekas – e espero que a efeméride crie, enfim, a ocasião de (re)descobrir os seus filmes em sala. Tenho, no entanto, de admitir que continuo sem nunca ter visto na íntegra As I Was Moving Ahead… ou até Walden (Diaries, Notes and Sketches) (Walden. Diários, Notas e Esboços, 1969) – ainda que por vezes tenha a impressão de já conhecer de cor (literalmente, “por intermédio do coração”) algumas das imagens destes filmes. Talvez por isso, a minha escolha veio a recair sobre uma obra tardia e menos conhecida, de certa forma concebida como o “avesso” de todos os filmes que Mekas realizou ao longo de mais de cinco décadas: Out-Takes From The Life of a Happy Man (2012).
É desnecessário dizer que o “happy man” mencionado no título não é outro senão Jonas Mekas, que nunca deixou de sorrir – e de (nos) fazer sorrir – com os múltiplos “momentos de graça” capturados pela sua câmara. Porém, o optimismo radiante e inabalável que o próprio reivindica surpreendem qualquer pessoa que conheça um pouco do seu percurso de vida. Forçado a fugir do seu país natal aquando da invasão da Lituânia pela União Soviética, e após vários anos à deriva na Europa do segundo pós-guerra, tendo mesmo passado por campos de trabalho forçado (vivências relatadas na autobiografia I had nowhere to go, publicada em 1991), Jonas Mekas foi exilar-se em Nova Iorque, juntamente com o seu irmão Adolfas, em 1949.
Os primeiros anos nos Estados Unidos foram vividos quase sempre no limiar da pobreza, orbitando entre a comunidade de imigrantes lituanos e os círculos boémios e artísticos da cultura underground, realidades que desde cedo documentou com a sua câmara Paillard – Bolex 16 mm, adquirida pouco tempo depois de chegar à “Big Apple”. Tendo elegido a crítica de cinema como principal ganha-pão, e a prática fílmica amadora como o hobby de todas as horas, Mekas rapidamente se tornou num dos principais líderes do New American Cinema Group, próximo de Peter Kubelka, Stan Brakhage, Marie Menken e Andy Warhol. A ele devemos a criação de várias instituições míticas do cinema independente e experimental americano, como a revista Film Culture (1953), a Film Maker’s Cooperative (1961) e a Anthologie Film Archives (1970), da qual foi diretor até à data da sua morte.
Recusando-se a falar das imagens dos seus filmes como memórias do que viveu e foi perdendo com o passar do tempo, Mekas pretende emancipá-las do passado ao qual remetem, e celebrá-las no presente em que existem, e em que continuarão a existir a cada projeção do filme.
Migrando para o vídeo, no final dos anos 1980, e experimentando a instalação multimédia (“expanded cinema”, nas suas palavras), a partir de 2000, Jonas Mekas nunca deixou de nutrir um carinho especial pelo suporte analógico. Em 2012, convidado pela Serpentine Gallery de Londres a realizar um filme para ser exibido na mesma galeria, o cineasta então com 90 anos decide dar um fim à sua série de filmes-diários em 16 mm, iniciada nos anos 50 (em inglês, “diary films”, expressão a não confundir com o título da sua crónica para o Village Voice, entre 1958 e 1975, “Movie Journal”). Consciente da deterioração inevitável a que a película estava sujeita, Mekas concebeu um projeto provisoriamente intitulado “My Fading Film”, em que se propunha a recuperar parte do material por ele filmado e acumulado ao longos dos anos.
De uma seleção de takes falhadas e de footage inutilizado nos seus filmes anteriores, Mekas fez emergir uma montagem caleidoscópica entrelaçando fragmentos de home movies em torno da sua família (a mulher Hollis Melton e os filhos do casal, Oona e Sebastian) e amigos (reconhecemos os escritores Allen Ginsberg e William S. Burroughs, bem como os cineastas Ken Jacobs e Peter Kubelka), que com ele partilharam a vida em Nova Iorque, escapadas na natureza e várias viagens ao estrangeiro.
A este material do foro íntimo e privado, Mekas juntou ainda breves sequências de imagens contemporâneas gravadas em vídeo com uma câmara Sony, documentando o processo de fabricação do filme. O confronto entre os dois suportes torna-se palpável na montagem: as imagens filmadas em película são janelas abertas e luminosas sobre o mundo em redor, enquanto que os segmentos sombrios em vídeo se debruçam sobre a solidão do artista que trabalha enquanto a cidade dorme.
Late at night, late at night, the city is sleeping, everybody is sleeping. Only the filmmakers are awake, working late, late into the night. (…) Here I am, with my film, this film, which is just images. Images with no purpose, for no purpose, just for myself and a few friends. (…) Some fragments of this world, of my world, which is not so different from any other, anybody else’s world.
Presentes desde o início de Out-Takes From The Life of a Happy Man (Mekas debruçado sobre a mesa de montagem, dando à manivela da sua velha moviola), os barulhos mecânicos associados ao cinema analógico prolongam-se durante o primeiro de uma série de intertítulos sob a forma de haikus, o qual evoca o rumor das folhas agitadas pelo vento — afinal, para o cineasta, movimentos da natureza e imagens em movimentos constituem uma e a mesma paixão. Estas passagens auto-referenciais surgem repetidas vezes na montagem, constituindo um ponto de ancoragem para a reflexão que Mekas desenvolve a partir do material recuperado.
Intercalada ao crepitar ensurdecedor da moviola e às melodias melancólicas improvisadas por Auguste Varkalis ao piano, a voz de Jonas Mekas faz-se ouvir longamente em quatro momentos distintos do filme, numa espécie de ladainha que retoma várias vezes as mesmas ideias até regressar ao ponto de partida (assim, as primeira e última intervenções do cineasta são idênticas, concluindo o filme novamente com a evocação da figura do artista em ação enquanto a cidade dorme). Esta dimensão de ritornello assumida pela voz off casa perfeitamente com o tempo allegro que pauta o estilo de montagem praticada pelo cineasta: para além da distância entre o tempo do discurso e o tempo das imagens, a própria natureza fragmentária do material presta-se a uma exploração puramente rítmica da montagem em torno dos efeitos visuais e cinéticos puros sugeridos pelas formas, cores, linhas e luzes, que deslizam, chocam, vibram e dançam no ecrã.
Paralelamente ao despertar do seu fascínio pela poesia sensível do mundo, Mekas via nascer o desejo de partilhar as suas experiências com os outros (…)
Recusando-se a falar das imagens dos seus filmes como memórias do que viveu e foi perdendo com o passar do tempo, Mekas pretende emancipá-las do passado ao qual remetem, e celebrá-las no presente em que existem, e em que continuarão a existir a cada projeção do filme. O gesto criativo do cineasta que “recicla” footage descartado não deve ser entendido como uma tentativa de recuperar o paraíso perdido da sua vida familiar, ou de salvar do esquecimento a efervescência criativa dos primeiros anos em Nova Iorque. Ao contrário, trata-se de afirmar que todos os momentos merecem ser vividos, que todas as imagens têm valor em si mesmas.
Assim, quando Mekas observa e manipula a película sobre a mesa de montagem, é-lhe impossível aceitar que as imagens inscritas nos fotogramas são apenas vestígios do passado, pois elas estão lá, presentes e reais, reais porque presentes, mais reais até do que as memórias que se foram desvanecendo com o tempo. E contudo, é nestas mesmas imagens que o peso inelutável do tempo mais se faz sentir, através das mãos enrugadas do cineasta a manusear a película; estes planos tornam-se ainda mais tocantes quando confrontados com os vários momentos do filme em que vemos o próprio cineasta no auge da sua vida adulta e boémia, através do olhar de amigos e de familiares que o filmaram.
Who cares about memories? No, I don’t care about my memories, but I like what I see, what I recorded with my camera, and now it comes back there, and it’s all real. Every detail, every second, every frame… is real. And I like it! I like what I see.
Se Mekas afirma “não querer saber das [suas] memórias”, é menos por um completo desapego ao passado, do que pela alegria de descobrir que, décadas mais tarde, as imagens que captou continuam a cristalizar uma beleza que não só lhes é inalienável, como é impermeável ao tempo. De um certo modo, são imagens-cristal no sentido de Gilles Deleuze, nas quais confluem passado, presente, e até futuro. Por outras palavras, o sentimento de nostalgia que as imagens veiculam surge associado a uma espécie de esperança, já que a “saudade” que Mekas sente face ao que perdeu o torna ainda mais insaciável por aproveitar o que ainda está ao seu alcance (como escreveu Álvaro de Campos: “E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase, e a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa”).
Every detail of that day, I sang to my father with such intensity, such involvement in it… I was completed transported into this kind of recreation of the day to the very, like, essencial details of the day. I remember it so clearly, and I know that all I’m doing now, all I have been doing since, is trying to reach, to regain that kind of intensity, that kind of closeness to reality.
O único momento de rememoração que o cineasta se autoriza diz respeito a uma memória da sua infância: com apenas cinco anos, Jonas Mekas vinha sentar-se na cama do seu pai à noite para lhe contar – ou cantar, como diz –, nos mais ínfimos detalhes, tudo o que fizera, vira e ouvira durante o dia. Paralelamente ao despertar do seu fascínio pela poesia sensível do mundo, Mekas via nascer o desejo de partilhar as suas experiências com os outros, com o mesmo envolvimento e intensidade com que as vivera pela primeira vez.
É difícil não ver em Out-Takes From The Life of a Happy Man uma espécie de momento mori, sobretudo tendo em conta que, na prática, esta viria a ser a última longa-metragem que Mekas pôde realmente partilhar com o seu público [o seu filme seguinte, Requiem (2019), nunca chegou a ser exibido com o cineasta em vida; contrariamente ao que poderíamos pensar, o título não faz referência à aproximação da morte, já que Mekas havia pensado este filme simplesmente como uma homenagem ao Requiem de Verdi, a ser projetado em acompanhamento dos concertos onde esta missa fosse tocada]. Por isso, prefiro pensar em Out-Takes From The Life of a Happy Man como um último filme que paradoxalmente recusa os finais fechados e prolonga ad infinitum a pegada de Mekas no mundo do cinema, incitando-nos a mergulhar mais fundo na sua filmografia.
E por fim, gosto de pensar que Jonas Mekas morreu um homem feliz…