Este texto contém spoilers. Recomenda-se a sua leitura só após a visualização do filme.
Creio que é seguro dizer que a nostalgia se tornou numa das principais modas cinematográficas e televisivas da actualidade. Seja por sequelas a sagas já terminadas há quase duas décadas (Matrix), reboots/remakes de desenhos animados (Digimon) ou especiais televisivos de séries (Friends) e filmes (Harry Potter) que deixaram o seu culto, os anos 2000 parecem estar de volta e só podemos especular porquê. A tentação é a de responsabilizar a pandemia: se o presente é assustador e o futuro é incerto, resta o passado como solução mais confortável e eficaz para comunicar com uma audiência. Mas, tendo em conta que mais de metade dos projectos atrás enumerados tiveram génese num período pré-pandémico, só a adesão das pessoas a esta tendência fica clarificada, não o que a motivou. Seja qual for a justificação, não restem dúvidas: Spider-Man: No Way Home (Homem-Aranha: Sem Volta a Casa, 2021) faz parte do fenómeno.

Comece-se por aí, por referir que é bonita a experiência de vê-lo em sala pelas reacções entusiastas obtidas, ao redor, diante o desfile saudoso de vários convidados reconhecíveis. Uma rapariga, uns lugares ao meu lado, deu um grito de autêntica exultação – idêntico àqueles comumente associados a concertos musicais – com a entrada de Andrew Garfield. E não foram poucos os suspiros saudosos que acolheram Tobey Maguire. Se isto não chega, procure-se pelas versões CAM disponíveis na Internet e ouvir-se-ão aplausos nestes instantes específicos. A relação filme-espectador aqui criada é o equivalente cinematográfico daquelas vivências sociais ou pessoais onde o passado nos cai em cima: uma reunião de jantar com os colegas da primária, um reatamento de laços cortados com uma antiga ex-namorada, uma chamada telefónica com o nosso melhor amigo da adolescência afastado pelo tempo. Há emoção, há saudade, há memórias, e, como acontecia de modo literal com Bruce Willis no Disney’s The Kid (Nunca É Tarde, 2000), há um confronto com uma parte de nós que há muito tínhamos esquecido.
Andemos um pouco na máquina do tempo retórica. Faz, este ano, duas décadas desde que estreou um blockbuster de super-heróis, género então semi-incipiente e que só mais tarde se iria revelar um gigante esfomeado, voraz e ubíquo: Spider-Man (Homem-Aranha, 2002). Era sobre um trepador de paredes justiceiro, cujo disfarce vermelho e azul se iria repetir ad nauseam em épocas carnavalescas? Se alguém assim o pensava, o tempo ensinou-lhe melhor.
O principal mérito de No Way Home está em ser um filme de aprendizagem, não de super-poderes, mas do lado mais trágico, doloroso e nobre do Homem-Aranha, redescobrindo a sua essência.
Como alguém perspicaz já escreveu, aquilo que define as estórias do Homem-Aranha pode ser ilustrado pelo seguinte cenário: um vilão ameaça a cidade, mas Peter Parker tem que levar um remédio à tia. Se salvar a cidade, arrisca a vida da tia; se salvar a tia, arrisca a segurança da cidade. Independentemente da escolha, um resultado é certo: a sensação de culpa. Daí que, de todos os super-heróis, o Homem-Aranha seja o mais existencialista, aquele que mais se auto-questiona (é bastante frequente o emprego dos balões de pensamento nos seus comics), reflectindo sobre o seu lugar no mundo e o peso das suas decisões. Para ele, a máscara é um fardo, um gatilho de crises identitárias, um obstáculo forçoso entre si e uma existência tranquila (ou, pelo menos, uma vida pessoal normal). Que isto aconteça ao que aparenta ser um bom rapaz acarreta uma enorme força narrativa e envolvimento emotivo. Não é, então, de admirar que o Homem-Aranha seja o super-herói mais lucrativo de sempre: as suas motivações, hesitações, sacrifícios e dilemas dão à personagem uma espessura humana de ressonância universal.
É por isso que, apesar de todas as imperfeições apontáveis, a saga de Raimi (ou, no mínimo, dois terços dela) continua a ser a mais positivamente recordada. O seu segredo era o das BDs de Stan Lee: não ser sobre o Homem-Aranha, mas sim sobre Peter Parker. Não sobre um semi-deus que andava de leggings a balouçar pelos prédios nova-iorquinos, mas sobre um jovem de pequenos meios e grande coração que vivia atormentado pela dúvida, medo e culpa, tentava ajudar a tia a pagar as contas ao fim do mês, e sujeitava-se às abnegações e responsabilidades da máscara que secretamente vestia. Trocem do fato do Duende Verde do primeiro volume, salientem a divergência entre as teias orgânicas ao invés de laboratorialmente sintetizadas, recordem mil e um pormenores insignificantes que falaciosamente convençam das divergências entre a trilogia de Raimi e a banda-desenhada. Estas foram as adaptações mais bem-sucedidas dos comics porque foram as mais fiéis ao seu espírito. Não eram cenas a abarrotar de pirotecnia que prevaleciam, mas sim os planos fechados com o rosto inocente de Tobey Maguire, esse actor extraordinário dotado de olhos azuis capazes de exprimirem a alma inteira. Era a cara de uma boa pessoa que espelhava toda a gravidade marcante da personagem de Stan Lee. Por isso, na saga de Raimi, sob a musculatura do blockbuster, era um coração de filme indie que batia.
Esquivo-me das tentativas olvidáveis de Andrew Garfield para falar da razão pela qual detestava a iteração de Tom Holland. Spider-Man: Homecoming (Homem-Aranha: Regresso a Casa, 2017) e Spider-Man: Far from Home (Homem-Aranha: Longe de Casa, 2019) não foram nada do que atrás referi. Quando não estavam a ser uma teen comedy para geeks, limitavam-se ao excessivo entusiasmo de um pirralho em querer juntar-se aos Avengers e em usar fatiotas topo de gama. Como tantos pastelões típicos da Marvel, revelavam-se longas e entediantíssimas campanhas de marketing para o merchandising associado, assim como estratégias dissimuladas de cross-selling para outros objectos do MCU, renegando o miolo psicológico, espiritual e emocional do mais amado dos super-heróis. Tinha-se perdido, enfim, o “homem” para ficar a “aranha”, e uma muito mecanizada.
É por isso que, mais do que a nostalgia proporcionada, mais do que a estimável colectânea de actores recolhida, o principal mérito de No Way Home está em ser um filme de aprendizagem, não de super-poderes, mas do lado mais trágico, doloroso e nobre do Homem-Aranha, redescobrindo a sua essência. É uma obra que olha para trás, mas que pretende caminhar em frente, fornecendo epílogos dignos que atem as pontas soltas das sagas precocemente encerradas de Maguire e Garfield, enquanto aproxima a de Holland das palavras “perda”, “sacrifício” e, claro, “responsabilidade”.
Não é dizer tudo sobre as suas qualidades. É impressionante como os argumentistas aparentam ter estudado as sagas anteriores, remendando alguns dos seus defeitos – veja-se o novo guarda-roupa do Duende Verde a dar uso total às expressões faciais de Willem Dafoe, infinitamente mais inquietantes que o capacete imutável da indumentária original – assim como aprofundando as suas virtudes – a exploração de Doc Ock como figura paternal substituta. Mais importante ainda, atente-se na qualidade formal da obra: a mise en scène de alguma inteligência em certos momentos, caso daquele plano-sequência doméstico transmissivo do nervosismo de Peter em explicar à família a revelação noticiada da sua identidade; ou então a montagem, capaz de aglomerar vídeos de variegados tipos de câmara (de cinema, de telemóveis, de noticiários, de vigilância) sem prejudicar o ritmo fluido do seu todo. E, finalmente, tal como a DC havia conseguido em Wonder Woman 1984 (Mulher-Maravilha 1984, 2020), eis um filme do género que acredita na reabilitação dos antagonistas, contornando o tradicional desfecho aniquilador de super-vilões para escolher a hipótese do perdão.
Certo, não é a obra-prima que foi Spider-Man 2 (Homem-Aranha 2, 2004). Mas o final, invernal e emocionalmente satisfatório, parece provar que, graças à nostalgia (e, suspeito, à influência da Sony), foi possível reencontrar o espírito identificável desta personagem, resultando algo acima da média e diferenciado da uniformização frustrante em que a maioria dos filmes de super-heróis recaiu nos últimos anos. Em suma, com No Way Home, aprendeu-se a recolocar a tónica no “homem” e não na “aranha”. Esperemos que a Marvel não volte a esquecer a lição.