No livro que Martin Amis dedica à vida de Joseph Stalin, Koba, o Terrível (2002) podemos ler: “No dia do funeral de Estaline vastas multidões, extasiadas de falso desgosto e falso amor, acorreram a Moscovo em densidades perigosas. Quando, numa multidão cerrada, os movimentos individuais são tolhidos e as pessoas se debatem para respirar, uma compreensão simples e penosa penetra através do pânico (…) o que estavam eles todos a fazer ali? A chorá-lo? Nesse dia, muito mais de uma centena de pessoas morreram por asfixia nas ruas de Moscovo. Portanto, Estaline, embalsamado no seu caixão, continuou a fazer aquilo em que era realmente bom: a esmagar russos.” O documentário de Sergei Loznitsa não nos irá mostrar a tragédia mencionada pelo escritor britânico, procurando até, de certa maneira questionar a ideia de que as multidões que vemos estão possuídas por um “falso desgosto” e “falso amor”.

Loznitsa quer inverter a propaganda do regime comunista. Por ocasião da morte do líder soviético, em março de 1953, seis realizadores foram contratados para supervisionar a captação de imagens, um pouco por toda a União Soviética, das cerimónias fúnebres. O resultado foram 300 bobines, ao qual Loznitsa acedeu recentemente no Russian State Film e Photo Archive em Krasnogorsk. Parte destas imagens haviam sido montadas num filme de propaganda The Great Farewell (1953) que, reza a história, terá sido exibido apenas uma vez nesse ano e depois proibido pelo regime. State Funeral (Funeral de Estado, 2019) é um filme que se irá apropriar destas imagens, desfocando-se do rosto impassível, boca selada e caixão vermelho de Estaline – o centro do filme de 53 -, observando antes aqueles a quem lhes tiraram a razão de vida e inspiração, o povo soviético.
State Funeral é um filme que procura investigar os rostos e suas profundezas (…) uma espécie de Shirin (2008) sobre a aura em torno do estalinismo.
Mas retorna a questão: que espécie de coreografia nos dá a ver Loznitsa com estas imagens? Imagens de pessoas de olhos tristes, cabeça baixa, algumas a chorar, do Cáucaso à Sibéria, de Kiev a Moscovo; a massa que avança em longas e lentas filas pelas largas ruas de Moscovo para se despedir do pai do regime. Por um lado, é verdade que a multidão, enquanto personagem colectiva que marca o cinema soviético, tem aqui uma correspondência numa dimensão abstracta destas imagens: um ritual semi-burocrático, onde a geometria, as formas, volumes e cores (sobretudo, a poesia do vermelho) predominam nessa encenação da dor – como víamos em Riefenstahl – no qual os corpos se diluem na espera e são embalados pela voz dos altifalantes que vão lembrando, de forma lírica e literária, da grandeza sobrenatural do homem que havia partido. Mas, por outro lado, State Funeral é um filme que procura investigar os rostos e suas profundezas. Um filme como D’Est (Do Leste, 1993) de Chantal Akerman contém algo dessa espera, de rostos nos quais lemos toda uma vida e geografia. Mas é noutro lado que é possível encontrar mais certeira filiação. State Funeral é uma espécie de Shirin (2008) sobre a aura em torno do estalinismo. Se no filme de Kiarostami tínhamos um conjunto de mulheres-espectadoras que olhavam um espectáculo, aqui são centenas de rostos que desfilam diante da câmara e do espaço onde se encontra o corpo de Estaline. Em ambos se fala deste poder invisível que se exerce sobre as pessoas e que lhes fica cravado na cara.
E o que deixam ver estes rostos? Muitas coisas. Em alguns casos, a surpresa da câmara, noutros, como escrevia Amis, o “falso desgosto” e a encenação colectiva; mas ainda também – e aqui reside talvez a chave do sucesso do regime – a dor autêntica e verdadeira. Uma dor que, podendo provir de uma máquina que a fomentou e construiu, tem uma dimensão absolutamente individual. Estamos longe dos rostos “tipados” de Sergei Eisenstein, numa verdadeira dialética entre o todo e a parte, um espectáculo grandioso ou um pesadelo real que são verdadeiras imagens do poder.
Se a oposição mais evidente da obra de Loznitsa é o preto e branco e a cor, cuja leitura mais evidente é a remissão para um passado e um presente – como se todo um país tivesse “caído” da vida para uma realidade sem cor e sem sentido, há uma outro choque também ele muito interessante. Entre o peso do povo e a imortalidade do líder, entre o corpo do regime e a sua alma agora finada. Não é por acaso que é na direcção da transcendência da voz sem corpo provinda dos altifantes que as pessoas se viram, olham e escutam. E, sobretudo, não é por acaso que numa das sequências finais do filme, um retrato de Estaline é elevado no ar por uma grua. State Funeral é sobre a morte e a partida de um Deus. Um exorcismo, um ir para longe, que Loznitsa filmou como processo material e mental de desestalinização da URSS.