A acompanhar a sequência inicial de Viaggio in Italia (Viagem a Itália, 1953), ouvimos a música napolitana «O paese d’ ‘o sole», cujos versos falam de uma terra onde todas as palavras, doces ou amargas, são de amor, num contraponto à crise matrimonial que os protagonistas do filme e da viagem, Katherine e Alex Joyce, atravessam.
Cobertos de roupa e resguardados no interior de um carro inglês, com o volante do lado direito, primeiro dos desencontros que marcam o filme, adentram-se na mancha solar do campo italiano. Vieram ao sul por causa da morte do tio Homer, o primeiro de muitos mortos que tentam falar com eles, e da necessidade de tratar da vila herdada, onde ficarão alojados antes de a vender. Os dois são como convidados, estranhos na sua própria casa, que conhecem tão mal quanto tudo aquilo que os rodeia.
É sobre o contraste entre a luz do exterior, associada a uma certa aridez, e a obscuridade de sítios onde medram flores que grande parte do filme se constrói.
Fleumáticos, são constantemente confrontados com que lhes parece ser a violência daquele lugar, que se manifesta frequentemente de modo bem prosaico: o barulho, o vinho, a comida pesada, o calor que os entorpece, o tumulto de Nápoles. Aquela é uma força telúrica, o mesmo ardor que repousa no interior do Vesúvio, que avistamos ao longe em vários planos.
É sobre o contraste entre a luz do exterior, associada a uma certa aridez, e a obscuridade de sítios onde medram flores que grande parte do filme se constrói. Pensemos na sequência em que Alex vai pedir algo de beber à criada e é levado aos espaços escuros e baixos da casa, onde se guarda o vinho, onde patrões e empregados descansam, irmanados na hora da sesta. Essa vida subterrânea, e a sua riqueza, está vedada ao casal de protagonistas.
Será Katherine o canal de acesso possível àquela vida. As suas incursões a Nápoles – aos museus, às ruas, às catacumbas – constituem o cruzamento de uma fronteira. São explorações dos limites entre vários reinos: a vila pacata do tio inglês e a agitada cidade italiana, o conhecido e o desconhecido, a vida e a morte, que encontrará nas suas expedições. Recostada naquela tarde ao lado de Alex, recita versos de um amigo desaparecido, Charles Lewington, que dão conta do contraste entre o diáfano e o terreno: “Temple of the spirit/ No more bodies/ But pure ascetic images/ Compared to which mere thought seems/ Flesh, heavy, dim”.
O afecto de Katherine por Charles irrita Alex, numa repetição do dispositivo do conto de James Joyce “The Dead” (1914), que inspira a sequência. A brancura da neve do conto é substituída pela claridade insuportável que rodeia os corpos do casal no enorme terraço, tornados quase translúcidos. Desconsiderando a presença de Alex, Katherine deixa-se conduzir por um homem sem corpo e pelas suas palavras sem livro, ditas de memória, que a levam à sua primeira peregrinação (assim lhe chama Alex) a Nápoles.
Vai procurar no Museo Archeologico Nazionale as figuras descritas no poema, mas o que lá encontra não são corpos ascéticos, platónicos, mas estátuas com volume, inteiras, maciças. Aquele é o seu primeiro encontro consciente com a materialidade da realidade napolitana, que lhes vai sendo vedada, ou que eles não procuram, uma revelação da vida em movimento. É, à primeira vista, curioso que esse encontro não tenha lugar no exterior, no meio dos habitantes de Nápoles, como acontecerá mais adiante no filme, mas que se passe no interior de um museu quase deserto.
Contra esse domínio da imobilidade, a sequência combina diferentes formas de animar objectos inanimados, tornando as galerias tão agitadas quanto as ruas. Por um lado, temos as palavras do guia, que transforma estátuas impassíveis nas protagonistas de aventuras excepcionais. Por outro, temos a própria découpage da sequência e a mobilidade da câmara, que circunda as estátuas com uma inesperada fluidez e as enche de vida. Por outro ainda, a composição musical que acompanha a sequência cobre-as com um sopro divino, criando um paralelo entre a criação daquelas estátuas e o próprio trabalho do filme, que descobre para elas uma nova forma, um novo percurso e as inventa, assim, uma segunda vez. É o olhar assombrado de Katherine o centro desse percurso, é a partir dele que a sequência se constrói, como propõe André Bazin.
Num texto intitulado “Defesa de Rossellini”, o autor retoma uma caracterização do neo-realismo, cunhada por Amédée Ayfre, enquanto “uma descrição global da realidade por uma consciência global”. Bazin fala de Viaggio e da visão que este oferece de Nápoles como sendo “filtrada pela consciência da heroína”. A Nápoles do filme, diz, não é falsa, “mas é uma paisagem mental, simultaneamente tão objectiva como uma pura fotografia, e tão subjectiva como uma pura consciência”. Esta proposta de Bazin permite rever algumas assunções acerca do seu “realismo ingénuo” (Horton, 2013) e ver este filme como uma contaminação constante entre interior e exterior: aqui a psique da personagem e a realidade objectiva, mente e matéria.
Na esteira destes exemplos, a contaminação entre dentro e fora tem no filme manifestações interessantes, nomeadamente o modo como o exterior manifesta aquilo que se passa no interior ou como o interior gera o exterior (…) o invisível tornado visível.
Viaggio foi, na altura do seu lançamento, atacado por várias razões (é contra essa crítica que o texto de Bazin surge). Uma delas seria a sua inaptidão narrativa. É engraçado que esta acusação recaia sobre um filme que se relaciona com, que cita e que incorpora uma série de obras literárias. Engraçado, mas não injustificado, já que o filme aprende com aqueles textos outras coisas que não enredos: deles toma emprestados, sobretudo, formas possíveis de relação com a realidade – o centro do texto de Bazin.
Pensemos no conto de Joyce, já mencionado, em que os vivos têm ciúmes dos mortos: o imaterial suplanta o material. Pensemos na escritora francesa Colette, em cujo romance Duo (1934) Viaggio se teria inspirado. De Colette recordo a este propósito Le blé en herbe (Verdes Anos, 1923), sobre dois adolescentes, Phil e Vinca, feitos da mesma matéria, tornados próximos por um companheirismo e amor quase visceral, afastados depois pela chegada à idade adulta (no caso de Katherine e Alex, é o casamento que os afasta). Nesse romance de Colette, e é isso que aqui me importa, acontece algo de semelhante ao que Bazin descreve sobre Rossellini: a paisagem surge como reflexo exuberante das personagens. Pensemos, finalmente, na obra de Johann Wolfgang von Goethe, Italienische Reise (Viagem a Itália, 1816-1817) cujo título Rossellini retoma.
O livro, composto a partir das observações diárias do autor durante a sua viagem a Itália entre 1786 e 1787, da geologia à botânica, é também uma reflexão acerca da impossibilidade de distinguir aquilo que é observado do seu observador. João Barrento, no prefácio à sua tradução do livro, sugere que “o objecto real da Viagem a Itália é Goethe, não é Itália” (15), o que nos conduz a um loop irresolúvel se considerarmos a passagem de uma carta de Goethe a Charlotte von Stein que o tradutor recupera: “Não faço esta bela viagem para me iludir a mim próprio, mas para me conhecer melhor a partir de objectos que contemplo” (13). Se Goethe procura conhecer-se através da observação daquilo que lhe é exterior, Viagem a Itália seria então sobre a Itália também.
Em Pompeia, o assombro da personagem é reacção àquele vislumbre de morte, mas é também fascínio pelas formas que vê surgir, magicamente, à frente dos seus olhos, num trabalho de revelação do que se esconde sob a superfície (…)
Na esteira destes exemplos, a contaminação entre dentro e fora tem no filme manifestações interessantes, nomeadamente o modo como o exterior manifesta aquilo que se passa no interior ou como o interior gera o exterior: o cone prometeico do vulcão, o volume genesíaco que as grávidas de Nápoles carregam, alterações na superfície causadas por uma actividade ou uma vida subterrânea: o invisível tornado visível.
A par da cena do museu, existe uma outra frequentemente lida como central para o filme –aquela em que Katherine e Alex visitam Pompeia, acompanhando uma equipa de arqueólogos. A certa altura, os arqueólogos encontram uma área de solo oco, que supõem corresponder à localização de corpos de vítimas da erupção do Vesúvio de 79 d.C.. Aquilo que fazem é encher, através de perfurações feitas na superfície, esse espaço vazio com gesso. Esse enchimento tornará visível a forma de dois corpos, que, reconstituídos, encontram novamente a luz do dia.
Perante a visão daquelas figuras, presumivelmente um casal, Katherine é acometida por uma visão da sua própria mortalidade e da inutilidade das suas constantes discussões com Alex, que, em face da ameaça da morte, não parecem mais do que disparates de crianças. Mas, à semelhança do que vimos acontecer na sequência do museu, o espanto de Katherine não parece ser causado apenas pelas histórias que o guia conta, mas pela própria existência das estátuas, pela sua verticalidade de caule. Em Pompeia, o assombro da personagem é reacção àquele vislumbre de morte, mas é também fascínio pelas formas que vê surgir, magicamente, à frente dos seus olhos, num trabalho de revelação do que se esconde sob a superfície, como no epíteto que um catálogo da Cinemateca Portuguesa atribui ao trabalho de Rossellini: “o cinema revelador”.
Na sequência final do filme, que culmina num milagre, Katherine sugere a Alex que o grande problema do casamento dos dois talvez seja a falta de um filho. Em Viaggio, a capacidade de dar forma às coisas parece corresponder a uma manifestação de amor, como n’O Banquete, de Platão, em que Sócrates e Diotima discutem a natureza do amor, físico e espiritual, e esta o coloca em paralelo com a poesia, definindo ambos em função da acção de engendrar, gerar, de fazer existir. Lembro-me aqui da concepção a que assistimos num outro filme de Rossellini, Il miracolo (O milagre), integrado num díptico intitulado L’amore (O amor, 1948), congénere do gesto insuflador revelado nas barrigas napolitanas.
Bazin atribuía à visão de Katherine uma “rara pobreza espiritual”, descrição que tenho dificuldade em acolher, por ver Viaggio como um filme sobre o modo como, constantemente, formas desaparecem e reaparecem, sobre os processos que para isso contribuem, da fertilidade à aridez, da decadência ao florescimento. Não pode permanecer pobre o espírito da personagem que é a principal testemunha desses processos: escrever e esquecer versos, soterrar cidades e fazer estátuas, cozinhar e comer esparguete, rezar pelos mortos e gerar um bébé, encher e esvaziar uma garrafa de vinho.
Referências
Bazin, André (1955). «Defesa de Rossellini». O que é o cinema?. Lisboa: Livros Horizonte, 1992.
Colette. Duo. Paris: Ferenczi, 1934.
(1923). Verdes anos. Mem Martins: Europa-América, 1982.
Goethe, Johann Wolfgang. Viagem a Itália: 1786-1788 (1813-1817). Lisboa: Bertrand, 2016.
Horton, Justin. «Mental Landscapes: Bazin, Deleuze, and Neorealism (Then and Now)». Cinema Journal, vol. 52, n. 2, 2013, pp. 23–45.
Joyce, James (1914). Dubliners. Lisboa: Relógio d’Água, 2012.
Oliveira, Luís Miguel e Neva Cerantola (org.). Roberto Rossellini e o cinema revelador. Lisboa: Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 2007.
Platão. O Banquete. Lisboa: Edições 70, 1991.
As aulas de António Reis na Escola de Cinema giravam em torno de uma lista de filmes que Reis e Margarida Cordeiro tinham como essenciais. Viaggio in Italia é parte dessa lista.