Tudo começa com “When shall we three meet again?”, a primeira linha de Macbeth. No ecrã surge a primeira palavra, “When”, escrita a branco sobre fundo negro, numa fonte tipográfica semelhante à Futura. O texto corre, cavalgante, por essa torrente palavrosa que caracteriza a obra de Shakespeare. A palavra escrita cessa e ficamos apenas com a palavra dita, sobre fundo negro. Será que Joel Coen, na sua estreia “a solo”, se fez um João César Monteiro, lançando-nos ao silêncio das imagens? Ou será que este será um “verdadeiro cinema literário” como So Is This (1982), de Michael Snow?
Depois da primeira cena, das três bruxas, que em The Tragedy of Macbeth (A Tragédia de Macbeth, 2021) são só uma (numa referência provocadoramente invertida da santa trindade, aqui feita profana trindade), o negro faz-se branco, puro e reluzente. Os olhos, apesar do pequeno ecrã (sim, este filme só está disponível em streaming, na Apple TV+), reagem, em choque, à diferença de luminosidade. À medida que a íris se adapta à brancura, os contornos da imagem começam a surgir. No ecrã de 16:9 surge, afinal, um quadrado branco, em formato de academia – 1:1.37 de cantos arredondados – e, aos poucos, o branco ganha texturas nevoentas.
Por entre esses matizes de cinza surge uma ave. Ela rodeia a objetiva num círculo perfeitamente centrado com a proporção quadrada da imagem. Há algo de estranho nessa perfeição. Junta-se à ave uma outra, e outra depois. São três (uma para cada bruxa) e o texto da segunda cena da peça começa a ser debitado. A névoa começa a dissipar-se e aquilo que parecia um plano contrapicado, que olhava os céus com deslumbre, é afinal o inverso, o ponto de vista dos anjinhos. Subitamente uma das aves encaminha-se contra a câmara e percebe-se que a estranheza resulta, no fim de contas, do facto de tudo ser um efeito digital.
Esta adaptação de Macbeth, realizada por um solitário irmão Coen, é uma espécie de Sin City (Cidade do Pecado, 2005) com pedigree cultural. Tudo foi filmado sobre fundo verde. O preto-e-branco suaviza e reforça (alternadamente) a artificialidade, e os cenários e paisagens digitais servem apenas como grandes telões monocromáticos onde se podem depositar as palavras do dramaturgo inglês. Claro que se poderia referir L’Anglaise et le Duc (A Inglesa e o Duque, 2001), de Éric Rohmer, como precedente nessa estratégia de recuperar a estética dos fundos pintados do cinema de estúdio em versão digital, mas isso implicaria que houvesse uma equivalente reflexão sobre a desdramatização do texto. Ela não existe. De facto, isto aproxima-se mais da bidimensionalidade dos quadradinhos animados de Robert Rodriguez.
As palavras são mastigadas e cuspidas como se já não quisessem dizer nada, porque toda a emoção se encontra nos rostos e em toda a circundante diegese.
Esta artificialidade parece ter outros propósitos, um interessante, os outros circunstanciais. O primeiro, prende-se com aquilo que parece ser a construção digital do espaço à exata medida do texto. Isto é, sendo possível construir qualquer castelo de qualquer forma (por se tratar de um modelo 3D, feito à vontade do freguês), dá a sensação que cada corredor e cada escadaria foram desenhados segundo o tempo que os atores demoram a percorrê-los enquanto recitam as suas deixas. Essa possibilidade, que só o digital permite, dá forma, por via dessa ínvia arquitetura projetiva, a um espaço literalmente textual, onde cada divisão e cada passagem surgem como forma de acomodar, ao milissegundo, o texto.
Claro que esta sensação, que uma ou outra sequência me deram, parte de uma caridade interpretativa da minha parte. Isto porque as outras razões circunstanciais, que justificam esta opção, são o facto de ser mais barato e de encher facilmente o olho (as simetrias são sempre muito aliciantes – vide Wes Anderson – e este look minimal-opressivo com laivos de filme noir chama muito a atenção; só que este noir nada tem da sujeira clássica, tudo está impecavelmente higienizado, com as golas engomadas e o lustre dos botões puxado).
De facto, The Tragedy of Macbeth é uma transliteração exaltada e pomposa da peça de Shakespeare, que prefere sempre o vistoso à subtileza. Veja-se, a esse propósito, a direção de atores, que acredita que a escolha inclusiva de diferentes tons de pele sobrevém à dispersão de tons interpretativos. Cada ator puxa para seu lado, cada qual no seu delírio. Talvez o facto de não haver um espaço físico que os condense dê origem a esta espécie de alienação dramática. São todos muito louváveis no seu esforço, é certo – cada um à espera de uma estatueta doirada -, mas isso só acentua, mais ainda, o postiço do projeto.
Arrebanhado por uma qualidade pretensamente “visionária” (como agora é costume dizer-se nos trailers – se George Miller é um “visionary director”, então esse adjetivo perdeu, de vez, o seu significado), o filme afirma a linguagem de Shakespeare em toda a sua poética anacrónica – o que é refrescante – mas fá-lo através de uma entusiasmo muito hollywoodesco, sempre no limite da indiferença. As palavras são mastigadas e cuspidas como se já não quisessem dizer nada, porque toda a emoção se encontra nos rostos e em toda a circundante diegese. É uma opção que afirma a palavra enquanto a descarta (passando ao lado – vários metros, diga-se – da essência recitativa do texto).
Agustina Bessa-Luís, que muito amava a obra do dramaturgo (especialmente as comédias, é claro), descreveu, uma vez, o seu método de escrita como “um triunfal garfo de palavra, porque ele falava como se comesse de muitos pratos ao mesmo tempo, como se trincasse assados, debulhasse camarões, bebesse Málaga, Porto e cidra fina (…)”. Na versão de Joel Coen as palavras de Shakespeare são um sensaborão puré, sem textura, sem sal, sem cor, nem cheiro. Apenas algo substancial, que eventualmente servirá de argamassa para tapar os buracos desse reino de papelão 3D.