Someday, I’m gonna be a real boy!
Pinocchio
A sequência de abertura de Tomboy (Maria-Rapaz, 2011) — segunda longa-metragem realizada por Céline Sciamma, quatro anos depois de Naissance des pieuvres (2007) e sete antes de Portrait de la jeune fille en feu (Retrato da Rapariga em Chamas, 2019) — introduz a personagem principal do filme de uma maneira que lhe reserva toda a sua ambiguidade e liberdade infinita de ser. Os primeiros planos apenas revelam uma criança, empoleirada na janela do tejadilho de um carro, de quem inicialmente só vemos a nuca coberta de cabelos curtos, os ombros nus e o braço erguido como quem afaga o ar; descobrimos de seguida o rosto andrógino e angelical da atriz Zoé Héran, então com onze anos, que, de um olhar azul cristalino, tão deslumbrante quanto deslumbrado, observa o espaço difuso que a envolve, de onde ressaltam o verde da vegetação, múltiplos reflexos luminosos e o chilrear de pássaros sob o zumbido grave e constante do automóvel em andamento.
O desenrolar da sequência confronta de imediato os espectadores com o seus estereótipos, nomeadamente quanto à identificação do género da criança no ecrã: vêmo-la sentada ao colo do homem ao volante que a ensina a conduzir (interpretado por Mathieu Demy, filho de Agnès Varda e Jacques Demy) e, antes mesmo que o diálogo revele o grau de parentesco, interpretamos a “dupla” como sendo pai e filho. As cenas seguintes, já no interior da nova casa para onde acabaram de se mudar a esposa/mãe grávida e a filha/irmã mais nova, vêm ilustrar o quotidiano cúmplice das duas crianças durante os últimos dias das férias de verão, numa atmosfera simultaneamente lânguida e sufocante que lembra o filme La Ciénaga (O Pântano, 2001) de Lucrecia Martel.
Mas o chamamento do exterior e o desejo de novas aventuras rapidamente se faz sentir pelo mais velho dos irmãos: assim, à primeira criança do bairro que lhe pergunta o nome (neste caso, uma rapariga, Lisa), este responde-lhe “Mickaël”. E apesar de todas as pistas corroborarem esta identidade — o facto de o vermos conduzir um carro ou do seu novo quarto ser em tons de azul, bem como as roupas largas e discretas que veste —, há algo de estranho e impenetrável no modo como Mickaël parece ponderar as suas ações quando vai brincar com os outros miúdos ou na forma como examina o seu corpo pré-adolescente nos espelhos da casa. Deste modo, da primeira vez que a mãe o chama pelo nome e que o espectador descobre o seu corpo nu à saída do banho, quase não nos sentimos surpreendidos ao perceber que Mickaël se chama, na verdade, Laure, e que é uma rapariga.
Esta revelação não constitui de modo algum um spoiler, mas trata-se sim do ponto nodal da intriga. É certo que todas as ideias pré-concebidas quanto à maneira como as aparências e as atitudes de Mickaël fazem dele um rapaz só funcionam para um espectador que não saiba à partida do que fala o filme, ou que não esteja minimamente familiarizado com a filmografia de Céline Sciamma, na qual os temas do feminismo, da sororidade e da homossexualidade feminina são frequentemente abordados. Para a maioria, basta o título, Tomboy (em português traduzido para “maria-rapaz”), para perceber que esta criança esconde um segredo que a obriga a levar uma vida dupla, devendo ser uma rapariga sob o olhar dos adultos, mas sentindo-se rapaz no seu íntimo e perante os seus pares.
Uma vez estabelecido que Mickaël é Laure, e que Laure é uma rapariga, continuamos a acreditar nele: é quando Laure se “faz passar” por Mickaël que ela/ele é mais convincente, mais autêntica/o, mais livre; talvez por isso mesmo, o espectador não se sinta nunca enganado e se torne até um cúmplice dos seus “jeux interdits”. Nesse sentido, a realização de Céline Sciamma reveste-se de uma fascinante dimensão meta-reflexiva, na medida em que muito do seu trabalho consiste em “pôr em cena” uma série de situações banais e minimalistas em que Laure/Mickaël, longe do olhar dos pais mais diante dos espectadores, deve encenar e interpretar ela/ele própria/o a persona que outros lhe atribuem ou aquela com que se identifica. Para além disso, do mesmo modo que “Laure” rejeita os códigos que fazem dela uma rapariga perante a sociedade (simbolizados por um porta-chaves com um laço rosa que a mãe lhe oferece e um vestido que é obrigada a usar em público), vemos “Mickaël” esforçar-se constantemente por imitar os comportamentos dos seus pares para que estes o aceitem como “one of us” (por exemplo, urinar de pé, tirar a camisola durante um jogo de futebol, ou até simular o volume do seu pénis com plasticina sob os calções de banho).
A realização de Céline Sciamma respeita a indeterminação de Laura/Mickaël e concede-lhe todo o tempo e espaço fílmicos para que ela/ele própria/o experimente e descubra o que quer ser.
A questão da identidade de género (experiência interna e individual do género de um indivíduo, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído à nascença) não é abertamente enunciada no filme como fazendo parte de um qualquer programa ou manifesto social e político que a cineasta pretende defender (embora a sua implicação nestas lutas seja bem conhecida), mas inscreve-se, da maneira mais simples e humana, como pano de fundo do dilema íntimo vivido pelo protagonista. Laure/Mickaël teme o início das aulas, pois sabe que na nova escola a mentira será desmascarada e que a sua identidade enquanto rapariga será restabelecida, mas não podemos dizer ao certo que a personagem tenha consciência do que está em jogo no que diz respeito ao seu direito à autodeterminação. Independentemente disso, ao sugerir uma relação de intimidade crescente entre Laure/Mickaël e Lisa, o filme de Sciamma carrega ainda um discurso sobre a não-binariedade e uma crítica à cisnormatividade, tornando-se assim uma referência para a comunidade LGBTQIA+. Curiosamente, a interação mais marcante entre as duas crianças não é o momento em que se beijam, mas a cena em que Lisa maquilha Mickaël como se este fosse uma rapariga.
A realização de Céline Sciamma respeita a indeterminação de Laura/Mickaël e concede-lhe todo o tempo e espaço fílmicos para que ela/ele própria/o experimente e descubra o que quer ser. Para isso, a cineasta filma à altura das crianças, dá-nos a ver sensivelmente o mundo como elas o vêm, muitas vezes omitindo dos planos a presença dos adultos. Esta maneira de filmar, para além de facilitar a identificação e empatia dos espectadores com a personagem principal, convida-nos a considerar o questionamento do género através do ponto de vista de Laura/Mickaël, sem qualquer julgamento prévio ou obrigação de encontrar uma resposta definitiva.
À semelhança do processo de auto-descoberta de Laura/Mickaël, a temporalidade do filme é difusa e maleável, por vezes concentrando toda a sua energia em torno de um micro-evento e, outras vezes, perdendo-se em durées mais introspectivas e contemplativas, à procura dos “momentos de verdade” do quotidiano. A própria cineasta terá comparado, numa entrevista de 2014, o tratamento dado ao tempo em Tomboy à temporalidade abstrata e universal característica dos contos para crianças ou à própria plasticidade da percepção do tempo durante a infância. Já os espaços em que a ação do filme se desenrola são organizados segundo uma lógica dicotómica que contribui para estabelecer uma moldura concreta para a intriga : ao novo apartamento, espaço confinado e opressivo, sujeito às regras impostas pelos adultos, opõe-se a floresta, espaço do jogo, da fantasia e de aventuras.
Dez anos após Tomboy, Céline Sciamma regressou ao universo das crianças com o subtil e luminoso Petite Mamam (2021), ainda sem difusão em Portugal. Nesta “curta longa-metragem” (1h12) para todas as idades, encontramos muitos dos elementos explorados em Tomboy: uma história de “coming-of-age” contada e filmada do ponto de vista de crianças, onde o vaivém entre um espaço natural e um espaço doméstico permite o encontro de duas temporalidades incompossíveis. Se, no filme de 2011, a cineasta se propusera a levar a cabo uma produção com a simplicidade com que as crianças brincam aos seus jogos de faz de conta, dispondo de um mínimo de recursos materiais e humanos, já o projeto de Petite Maman nasceu da urgência de filmar sentida após o primeiro confinamento, na Primavera de 2020, com o objetivo de dar voz às vivências e ao luto das gerações mais novas, tantas vezes esquecidas durante a crise sanitária. Deixo aqui uma sugestão à Cinemateca Júnior e outras salas de cinema do país para que programem este filme e para que revisitem com mais frequência o cinema “para miúdos e graúdos“ de Céline Sciamma.
Tomboy passa no próximo dia 15 de Janeiro, sábado, no Salão Foz da Cinemateca Júnior, às 15h.