Em Tout s’est bien passé (Correu Tudo Bem, 2021) François Ozon transpõe para o cinema o livro homónimo da romancista Emmanuèle Bernheim, sua amiga próxima e colaboradora em diversos argumentos dos seus filmes, tais como Sous le sable (Sob a Areia, 2000), Swimming Pool (2003), 5×2 (5×2: Cinco Vezes Dois, 2004) ou Ricky (2009). Trata-se de um romance com carácter autobiográfico, relatando a relação da autora com o pai que, após ter sido vítima de um AVC, lhe pede ajuda para morrer.
Ozon não doura a pílula. É bonito envelhecer, sim, mas não há nada de bonito na doença e na degradação do corpo. E não há também nada de fácil no esforço de simultaneamente ter ao seu lado esses dois seres – a pessoa que conhecemos e a pessoa doente. É um caminho tortuoso feito de pequeníssimos e fugazes triunfos – o feito de o pai passar a ser capaz de sentar-se numa poltrona, ainda que por apenas uma hora, ou a data de um concerto que parece ser desculpa para o pai cancelar o fim que parecia já certo.
Naquele dia 15 de Setembro em que abre o filme, quando acompanhamos Emmanuèle (Sophie Marceau) na sua corrida precipitada para o hospital, vemos o seu olhar turvo contemplando as escadas, porque na pressa as lentes de contacto tinham ficado esquecidas no balcão da casa de banho. E vemos o ritual de pôr as lentes de contacto, de retirar as lentes, e mais tarde também o mimetizar do olho descaído do pai. Todos os olhares parecem perturbados ou duplos, já que também a irmã Pascale usa óculos, o mesmo sucedendo com Raphaël, o filho de Pascale. A visão 20/20 parece estar reservada para os mais velhos, para os doentes. Desde logo André, que no restaurante consegue mesmo ver suficientemente bem para brincar com a nova palavra que surge na porta depois de caída uma letra. E igualmente a mãe Claude (Charlotte Rampling), que era capaz de ver uma infinidade de cores no cinzento. A doença manifesta-se, justamente, na depressão, que se traduz em apenas ver cinzento em toda a infinidade de cores que a rodeia.
O lado matreiro de Ozon está sempre à espreita, poupando-nos também às agruras de um filme asséptico e bonitinho sobre um “tema difícil”.
A proximidade da morte é representada, não como uma ideia abstracta e adiada, mas como algo de presente, que interfere com a aura de significado dos objectos, dos espaços, da música. É toda uma valsa que vai percorrendo o filme de ponta a ponta, a forma como Emmanuèle vai lidando com um pedaço de sandwich descartada pelo pai, ainda com a marca da sua dentada, um item que vai sendo progressivamente transferido do lixo para o frigorífico, para depois ser enterrado numa espécie de caixão de plástico no congelador, para, num momento de raiva, voltar ao caixote do lixo.
Paradoxalmente, aquilo que parece alimentar o entusiasmo do pai ou, se quisermos, o que favorece um certo apego à vida, é o planear da sua morte. André, que foi um coleccionador de arte, é incapaz de demostrar interesse por novas obras, possíveis aquisições para a sua colecção. Na verdade, a arte torna-se algo de ridículo face à doença e à morte, o que transparece no desconforto que sentimos quando Emmanuèle descreve as interpretações filosóficas presentes num conjunto de obras ilustradas num catálogo de exposição. Há uma perfeição na arte – sobretudo na música que pontilha o filme – que está a anos-luz daquilo que é uma rotina de enfermidade. Schubert existe para a vida ou para o depois da morte, mas não para a fealdade da doença, da degradação.
Mas o que fica então do potencial terapêutico da arte? Temos a arte gastronómica que congrega o desejo final de André, o desejo de uma refeição perfeita no seu restaurante favorito, partilhada apenas com quem deve ser partilhada. Trata-se de um apego à vida de que as duas irmãs, Emmanuèle e Pascale, tomam parte – o partilhar de um copo de vinho, da comida, o momento de pausa e elo entre duas vidas paralelas, a vida que continua a correr e a vida do hospital. Essa partilha é antídoto para o desgaste resultante de uma vida nova feita de cuidados médicos, aspectos financeiros, questões burocráticas, cuidar dos outros.
Será que este papel curativo da arte existiu também na criação do romance de Emmanuèle Bernheim? Recordemos que estas personagens que aqui vemos são imagens de pessoas reais, a família e os próximos de Emmanuèle Bernheim. Pessoas que o próprio François Ozon conheceu pessoalmente, pelo menos várias delas (Serge, o companheiro de Emmanuèle retratado no filme, é Serge Toubiana, outrora director da Cinémathèque française). Emmanuèle Bernheim chegou a trabalhar com Alain Cavalier numa adaptação do seu romance, mas ela acabaria por morrer em 2017, vítima de cancro, não tendo tido qualquer envolvimento no filme que saiu das mãos de Ozon. Desengane-se, porém, quem achar que a proximidade de Ozon a Emmanuèle Bernheim, sua colaboradora de longa data, propicia uma visão mais cândida da parte do realizador. O lado matreiro de Ozon está sempre à espreita, poupando-nos também às agruras de um filme asséptico e bonitinho sobre um “tema difícil”.
São vários os momentos em que André é gélido nas suas palavras. Quando interroga a filha quanto aos custos do suicídio assistido e questiona como podem os pobres pagar 10.000 euros por esse serviço, a filha diz-lhe que aos pobres resta esperarem pela morte. Ao que ele responde simplesmente “les pauvres!” (os pobres, os coitados). Mas as coisas não são melhores para o lado de Emmanuèle. Ela, a filha preferida do pai, que sempre a privilegiou face à irmã, de forma descarada, até mesmo na morte. Ela confessa que gostaria de ter tido o pai como amigo, não como pai (o favorecimento do pai nunca foi, afinal, isento de crueldade). Mas o comportamento do pai face a Pascale é perpetuado pela própria Emmanuèle, de forma mais ou menos consciente. Ela consegue, afinal, ser mais cruel do que o pai.
É quase uma ideia que “polui” o filme, até mesmo na sua derradeira cena. O telemóvel de Emmanuèle toca, do outro lado quem fala é a celestial Hanna Schygulla, a dame suisse, que liga para relatar aqueles que foram os últimos momentos de vida do pai. Apesar do pedido de Pascale para que a irmã coloque o telemóvel em alta voz, para que também ela possa ouvir o que haja a ser dito sobre os últimos minutos de vida do pai, Emmanuèle ignora-a simplesmente, colocando o telemóvel junto do ouvido, guardando para si o relato, e limitando-se a resumir tudo num “ela diz que correu tudo bem”. Tout s’est bien passé.
É verdade que todas as personagens de um filme estão condenadas a um tipo de morte muito delas – a que resulta do cair do ecrã negro que antecede a entrada dos créditos finais. Mas quando a morte de André passa a ser uma certeza, algo que acontece um ou dois minutos antes daquela morte a que estão votadas todas as personagens do filme, será difícil não sentir algo mais do que esse lamento habitual pelo apagar de todas as personagens. André é feito de excentricidades, de caprichos e teimosias, de paixão e desprezo, severo e terno, austero e pleno de humor. E porque toma uma forma tão real, toda uma complexidade humana criada em cerca de duas horas, a sua ausência não nos deixa indiferentes. E para estas ausências não existe paliativo, nem solução categórica.