West Side Story tem tido um historial de ressalvas.
O filme original de 1961 — considerado um dos melhores filmes musicais de sempre e vencedor de quase todas as categorias principais dos Óscares desse ano — parte de um sucesso da Broadway que reverbera até aos nossos dias, de Arthur Laurents com a triple threat da música de Leonard Bernstein, as letras do recentemente falecido Stephen Sondheim e a coreografia de Jerome Robbins. A primeira ressalva é que apesar deste pedigree, esse texto, apesar de icónico, é imperfeito. Na sua génese é produto de um conjunto de artistas — Laurents, Bernstein e Robbins, com Sondheim a chegar mais tarde ao projecto — que queriam fazer um musical sobre as tensões entre gangs de judeus e irlandeses católicos. Esta ideia acabou por ser deixada de parte e acabaram por se focar em pessoas sobre as quais sabiam pouco e West Side Story tem sido criticado pela superficialidade com que retrata a comunidade porto-riquenha. As ressalvas continuam ao incluir o uso problemático do filme de 1961 de brown face, como no caso da sempre excelente Natalie Wood.
Não apesar de mas em concomitância com, as imperfeições de West Side Story (Amor Sem Barreiras, 1961) não impedem que o filme realizado por Robert Wise e Jerome Robbins seja cintilante e emocionante, quer pelas suas canções, quer pelas representações — com um aceno em particular a Rita Moreno, a Anita do filme original, que também surge, noutro papel, no filme de Spielberg. O que levou a que esta adaptação no século XXI tenha sido vista com trepedição. Se coisas como o casting poderiam oferecer um olhar contemporâneo, como lidar com o facto de se estar a mexer num clássico visual, com imagens e danças mais do que queimadas nos olhos de quem tem carinho por musicais?
Mas o rasgo de génio do filme é a câmara de Spielberg, que transforma as letras de Sondheim e a música de Bernstein em algo transcendente, que lembra a quem possa ter esquecido a palpável magia que o realizador de tantos clássicos da segunda metade do século XX ainda consegue conjurar.
Este revisitar de uma versão nova iorquina de Romeu e Julieta — que coloca em oposição os polacos Jets e os porto-riquenhos Sharks — é mais aguçada mas tão tocante como o original. O argumento de Tony Kushner [que escreveu a peça Anjos na América e colaborou com Spielberg em Munich (Munique, 2005) e Lincoln(2012)] e a câmara de Steven Spielberg conseguem a delicada dança entre o tom clássico do original e o afinamento dos temas sociais do filme, da imigração à violência racial e desvantagem económica — questões que não podiam ser mais actuais no sentido em que se mostram como são: produto da eterna ferida no centro da cultura americana.
Este filme dá mais espaço para os personagens porto-riquenhos, como a própria Maria, Bernardo, Anita e Chino, respirarem, para sabermos mais sobre as suas histórias individuais, dinâmicas sociais e sensação de não-pertença numa cidade que tanto precisa do seu trabalho como ignora a sua humanidade. Para percebermos, também, melhor todo o descontentamento e frustração que assola membros dos Jets, como Riff (Mike Faist quase rouba o filme, não fosse Ariana DeBose ser uma força da natureza como Anita), menos delinquentes e mais “meninos perdidos”.
Nos papéis do Romeu e da Julieta desta Nova Iorque em transformação estão Ansel Elgort como Tony (co-fundador dos Jets e melhor amigo de Riff) e Rachel Zegler como Maria (a irmã de Bernardo, líder dos Sharks, que anseia por se rebelar contra o domínio do irmão). Elgort, conhecido por filmes como Baby Driver (Baby Driver – Alta Velocidade, 2017), é bom o suficiente como Tony. Embora não seja arrebatador, Spielberg usa bem a sua face de expressão tendencialmente inocente, pintando-o como alguém ingénuo sem descurar a vertente lunar deste personagem. Tony é impulsivo e dócil, tal como Maria, e Zegler não poderia transmitir melhor a delicadeza (pelas suas expressões) e a força (pela sua voz) da relação que desenvolve com Tony.
Mas o rasgo de génio do filme é a câmara de Spielberg, que transforma as letras de Sondheim e a música de Bernstein em algo transcendente, que lembra a quem possa ter esquecido a palpável magia que o realizador de tantos clássicos da segunda metade do século XX ainda consegue conjurar. Spielberg é o maestro que, com Janusz Kaminski, filma o plano perfeito que é as sombras dos dois gangs a tocarem-se ainda antes dos corpos dos actores chegarem perto uns dos outros; ou que, com Adam Stockhausen, cria uma mescla potente entre a fantasia do cenário e a realidade das ruas de Nova Iorque. É um mundo elevado, sim, onde se rompe em canção, mas é ao mesmo tempo um mundo táctil, reconhecível, onde poderíamos caminhar também. E Spielberg conduz ainda o coreógrafo Justin Peck que expande ou transforma totalmente sequências de dança, dando-nos, ambos, momentos inesquecíveis como a nova rendição de “Gee, Officer Krupke” na esquadra da polícia ou fazendo “America” (das melhores canções do musical) romper ruas fora, num jogo de cor e emoção que certamente terão feito Jon M. Chu chorar — este realizou In the Heights (Ao Ritmo de Washington Heights, 2021), uma adaptação ao cinema do musical de Lin-Manuel Miranda que nunca chega à sublimação que este West Side Story contemporâneo tem no seu dedo mindinho. Basta ver a forma como a câmara dança em “Tonight” ou o trabalho de luz e cores em “One Hand, One Heart”, um momento de casamento simbólico que usa as luzes de um vitral para produzir, e escrevo-o novamente, magia.
O grande vencedor do filme é, assim mesmo, o realizador, que mostra como ainda se consegue trazer a Broadway ao cinema de uma forma clássica mas contemporânea, fluída e sem câimbras, que captura as emoções à flor da pele do musical, bem como o seu humor, a sua vivacidade e a sua tragédia. Nas mãos de Spielberg, o mundo de West Side Story torna-se estrelado.