Um dos aspectos técnicos mais secundarizados em algum cinema português é a montagem. Salvo certas excepções, parece ter-se validado a opinião de que a identidade do “grande cinema português” das últimas décadas passa por um maior investimento na composição do enquadramento, na direcção de fotografia e na recitação de textos densos, deixando a montagem numa condição inerte onde, não raras vezes, esta se limita a facultar transições entre um “plano belo e longo” e outro. Mas cineastas colossais como Abel Gance ou Orson Welles compararam a montagem à música, e um dos prazeres no cinema está no seu lado manifestamente musical. Isto é, a selecção e ordenamento dos planos, assim como a manipulação da alternância e duração de cada parte do fluxo de imagens criado, sempre tendo em vista a criação de ritmo e da procura de uma força expressiva inexistente nos diversos fotogramas isolados. Como uma sinfonia polifónica onde os instrumentos de corda emitem uma melodia, os de sopro outra, e os de percussão mais uma, é dessa sinergia dissonante, propulsora de uma coabitação forçada entre vários elementos divergentes, que nasce a verdadeira harmonia e beleza musical. Infelizmente, uma opção comummente adoptada em parte do nosso cinema é a de colocar todos os instrumentos na mesma direcção – as mesmas notas, as mesmas escalas, os mesmos tempos – resultando numa sinfonia monótona que, independentemente dos seus méritos estéticos, rejeita qualquer risco e variação. Tudo isto para dizer: se queremos ver o cinema nacional progredir, ao invés de procuramos filiações com os deuses do olimpo cinematográfico lusitano, elevar a montagem a um nível de relevância primacial parece ser um bom ponto-de-partida como outro qualquer. Razão, então, para discutir essa componente em 28 ½ (2020) de Adriano Mendes.
É um retrato geracional sobre tantas das preocupações dos actuais jovens licenciados (suspeita-se que o título desvele a idade nunca explicitada da personagem principal, Teresa) que descobrem um país incapaz de corresponder às suas ambições mais modestas: trabalho seguro, casa na capital, estabilidade económica para criar uma família. Entre o tic-tac asfixiante dos ponteiros da rotina, cada dia é passado entre entrevistas de emprego e pequenos biscates, um ciclo improfícuo de acções repetitivas que induzem a estagnação, impotência e frustração do limbo existencial millennial relacionado com tantos assuntos da nossa actual paisagem política, da gentrificação massiva à imigração de jovens qualificados, passando pelo inverno demográfico. Este estado de irrealização pessoal e profissional está plasmado desde a primeira cena, com o olhar descontentado de Teresa sobre Lisboa, introduzindo, com essa simples expressão, o pequeno aglomerado de temas explorados no filme inteiro: a sensação de alienação, de incomunicabilidade e da falta de pertença.
Falemos, então, na montagem de Pedro Filipe Marques e Adriano Mendes. Compare-se, por exemplo, a cena de entrevista de emprego com a da venda de uma estante em 2ª mão. Na primeira, temos planos de conjunto com as 3 personagens da cena, two shots só com os entrevistadores, um médio para captar a linguagem corporal de Teresa, e um fechado do seu rosto. Na segunda, a cena inteira resume-se a um two shot com a protagonista e o comprador, sem um único corte. Ambas são cenas semelhantes, mas uma está mais editada, desviando a atenção da audiência para diferentes aspectos naquele diálogo (a comunicação gestual da personagem, a expressão facial quando ouve que poderá não ficar com o cargo derivado de um pormenor burocrático, etc.), enquanto a outra é mais relaxada e democrática, permitindo ao espectador escolher onde quer focar a sua atenção. Eis um filme que quer dar um papel verdadeiramente activo à montagem pelas suas variações, sabendo quando esta deve interferir e quando deve apenas testemunhar a acção. Mais ainda, há que mencionar os cortes elípticos (dados de modo discretíssimo) da cena do jantar, onde uma mudança de ângulo de 30º faz com que se salte do prato principal para o fim da sobremesa e outros que tais, conferindo a impressão de um jantar completo condensado naquela meia-hora a decorrer em tempo real e sem afastar a audiência da refeição.
No dia em que alguém fizer uma lista dos 100 melhores momentos de montagem do cinema português, a cena do comboio de 28 ½ terá de constar num dos 10 primeiros lugares.
E, claro, não há como não o referir. No dia em que alguém fizer uma lista dos 100 melhores momentos de montagem do cinema português, a cena do comboio de 28 ½ terá de constar num dos 10 primeiros lugares. Os desafios são imensos: manter a tensão, aumentar o conflito dramático, dar a ilusão de continuidade e capturar as reacções dos viajantes, sempre do ponto-de-vista de Teresa. É notável o uso de reaction shots dela, onde, pelo efeito kuleshoviano, conseguimos adivinhar as emoções que a atravessam, à medida que o assédio sobre passageiros vai decorrendo: surpresa, indignação, medo e, finalmente, determinação. Não só isso, como temos verdadeiro suspense. É conhecida a explicação que Hitchcock deu a Truffaut sobre a diferença entre “suspense” e “surpresa”: a de saber que uma bomba está debaixo duma mesa enquanto, sobre esta, decorre uma conversa, ou a de ver apenas uma explosão a acontecer sem esse conhecimento prévio. “No segundo caso, demos ao público quinze segundos de surpresa no momento da explosão. No primeiro, fornecemos quinze minutos de suspense.” A cena de kickboxing exposta minutos antes, num ginásio à luz do dia, é a apresentação da bomba de 28 ½. Porque, com essa cena estrategicamente colocada num instante anterior, ao vermos o momento do comboio em que Teresa fica indecisa entre reagir ou não, compreendemos que ela tem capacidades físicas para deixar os assediadores indefesos, sendo levantada uma questão fundamental no espectador: “Irá ela intervir?” Sem a cena de kickboxing, teríamos meramente uma surpresa, para além de discutível sobre até que ponto a acção está coerente com a caracterização da personagem.
Finalmente, a última cena. Foi Coppola quem disse uma vez que a essência do cinema é a montagem: “É a combinação do que podem ser imagens extraordinárias, imagens de pessoas durante momentos emocionais, ou simplesmente imagens no sentido geral, mas colocadas juntas num tipo de alquimia. Um número de imagens unidas de dada maneira tornam-se em algo acima e para além do que elas são individualmente.” Em jeito de remate, digamos que a força do campo-contracampo final diz tudo sobre essa alquimia da montagem, da força imagética transcendental que com ela advém e do que tudo isso representa: cinema na sua essência mais pura.