Just say that you were happy, as happy would allow
And tell yourself that that will have to do for now
Paddy McAloon
Esta é uma crítica em dois capítulos e um epílogo.
Capítulo I
Julie (Renate Reinsve) é uma jovem inteligente, excelente aluna, qua acabou de entrar para o curso de Medicina. Não tardará muito até que ela perceba que não é isso que verdadeiramente quer. Decide então optar por Psicologia. A experiência é mais recompensadora, mas ainda assim insatisfatória, não correspondendo inteiramente às aspirações de Julie. Chega então à conclusão de que aquilo que verdadeiramente quer é ser fotógrafa. Passado este rol de hesitações, recusas categóricas e buscas de novos desafios o resultado acaba por ser este: Julie encontra trabalho como empregada numa livraria.

Não há aqui nada de dramático, trata-se de uma orientação geracional, hedonista q.b., impulsiva (sendo certo que não podemos desconsiderar o facto de que o desafogo económico da sociedade norueguesa possibilita certas liberdades que não estarão ao alcance de todos). Esta é uma Miss Julie para o século XXI. A liberdade para determinar o seu próprio destino é algo a aproveitar ao máximo. Uma outra geração não equacionaria sequer a possibilidade de abandonar o curso de Medicina, mas Julie tem essa liberdade. É dessa mesma liberdade que ela desfruta nos seus relacionamentos. Como normalmente acontece nestes casos, o feitiço volta-se contra o feiticeiro, sendo justamente quando o companheiro casual de uma noite mostra um total desapego, que ela acaba por perceber que mordeu o isco.
Na economia narrativa espartana que abre Verdens verste menneske (A Pior Pessoa do Mundo, 2021), o encontro entre Julie e Aksel (Anders Danielsen Lie) rapidamente passa para a partilha de casa. Os caixotes das mudanças são carregados ao som de Billie Holiday cantando The Way You Look Tonight, num piscar de olho a Woody Allen, que sempre teve muito a dizer-nos sobre casais deste tipo. Embora a diferença de idades não seja absolutamente notória, existe uma enorme distância entre Julie e Aksel. Ele tem 44 anos, é autor de banda desenhada, com uma carreira consolidada. Depois de ter vivido demasiadas relações, é inevitável sentir receio de um novo compromisso. Mas. assumido esse compromisso, sente mesmo que é já o momento de ter filhos. Este é um ponto que, inicialmente, parece poder causar um dissenso inultrapassável, acabando, porém, por ir sendo desconsiderado, resolvido de forma pragmática. Problemas latentes, ainda que não letais, daqueles que existem em todas as relações.

Apesar da aparente estabilidade da relação, Julie tem nela uma ânsia, uma perene curiosidade das outras escolhas disponíveis. Assim é ela conduzida a uma experiência de “não-traição”, em que joga com um estranho um jogo de sedução sem chegar à traição propriamente dita, mas partilhando com ele a intimidade, o que será talvez uma traição ainda maior. É um encontro cativante, sentimos a tensão da tentação, há um laço que vai sendo criado entre Julie e Eivind (Herbert Nordrum), nós envolvemo-nos com eles. Eles não são pessoas más, são pessoas que estão a deixar que as coisas sigam o seu curso sem fazerem nada contra isso. E a sua separação é bela e feita de inevitabilidade, porque se a separação não chegasse a verificar-se, quebrava-se o encanto. A separação acontece em plena alvorada, numa esquina vazia em tudo igual ao ponto de encontro abandonado pelos amantes de L’Eclisse (O Eclipse, 1962).
O que Julie descobre com este interlúdio é que, afinal, ele não foi tão inconsequente quanto ela poderia pensar, minando a sua relação com Aksel. A separação é feita not with a bang but a whimper, filmada demoradamente, como poucas vezes vemos acontecer no cinema. Aksel consegue ver até ao fundo da alma de Julie, ama a sua vivacidade, ama-a completamente, e por isso não consegue conceber a ideia de perdê-la. Mas, nada pode ser feito, a separação concretiza-se, é também uma separação de coisas (a “desmudança”, o voltar ao que era), restando apenas uma ténue esperança de uma reunião futura. A procura de novos arrebatamentos por Julie mata pelo caminho uma relação, a possibilidade de deixar cair as máscaras, ser ela própria. Algo que ela crê encontrar na relação que se seguirá, para depois reconhecer que tinha já existido no seu relacionamento com Aksel.
O modelo de vida produto acabado, vendida como sabonete – a profissão certa, o companheiro certo, a idade certa para ter filhos – é algo que Julie rejeita liminarmente. A dada altura, Julie decide consagrar-se à escrita (aproximando-se assim de outras personagens da filmografia de Joachim Trier). Aliás, a presença da escrita faz-se sentir desde logo na organização do filme – um prólogo, doze capítulos, um epílogo – e também na presença da narração, existindo, contudo, uma fluidez que contraria aquela estrutura aparentemente rígida, uma certa liberdade para deambular nos meios habitados pelas personagens e pelo tempo, com a cronologia a sofrer pequenos recuos ao passar o enfoque de uma para outra personagem. Apesar de o artigo de que é autora, com o título “Sexo oral na era do #MeToo”, se tornar viral, a escrita parece ser apenas mais uma paixão fugidia de Julie. Ela sente uma vontade forte de se exprimir, de se fazer pessoa, não encontrando, no entanto, os caminhos certos para o fazer. Curiosamente, também aqui reconhecemos outras personagens femininas da filmografia de Woody Allen, essas mulheres com uma vontade tenaz de “dizer a vida”.

Capítulo II
Proposta alternativa: num segundo ensejo, olhemos agora para o filme adoptando uma outra perspectiva, deixando por momentos Julie em segundo plano, e chamando à boca de cena Aksel, a personagem desempenhada por Anders Danielsen Lie. Temos razões para desconfiar do protagonismo de Julie, uma vez que já anteriormente vimos em Joachim Trier uma habilidade para desviar enganadoramente o nosso olhar. Era o que sucedia em Louder than Bombs (Ensurdecedor, 2015), onde a nossa atenção era direccionada para o irmão mais novo, Conrad (Devin Druid), que afinal estaria apenas a atravessar uma crise mais aguda da adolescência, demonstrando, todavia, no final, uma capacidade admirável para resolver os seus próprios dilemas sem grandes mazelas sentimentais aparentes. Concomitantemente, Jonah (Jesse Eisenberg), ia habitando o filme tentando sempre disfarçar tudo aquilo que falhava na sua vida, num périplo de mentiras e dissimulações que começavam na dificuldade em lidar com as circunstâncias da morte da mãe e terminavam na crise do seu relacionamento com a mulher e o filho.
Em Verdens verste menneske, há a promessa do fim de um caminho, de decisão final, que talvez não seja mais do que mera resignação. A resposta é que não há resposta.
A cidade de Oslo não será certamente o único elo de ligação entre Reprise (2006), Oslo, 31. august (Oslo, 31 de Agosto, 2011) e Verdens verste menneske, os filmes que compõem a chamada “trilogia de Oslo”. Anders Danielsen Lie foi o protagonista em Reprise e em Oslo, 31. august e vai envelhecendo com esses filmes – Phillip tinha vinte e poucos anos, Anders tinha 34 anos, Aksel tem 44 anos. Será Aksel uma falsa personagem secundária? Será então este um filme sobre a agrura dos 40?
Essa eventual agrura está inteiramente condensada na conversa entre Aksel e Julie que ocorre no jardim do hospital, perto do final do filme. Aksel fala melancolicamente de um outro tempo, da sua adolescência e juventude, feito de algo material, concreto: os discos, os DVDs, os livros, as lojas de rua. É um apego ao passado, a algo de palpável, aos objectos. Objectos que eram suporte de memórias, de cultura. Estará esta geração dos quarenta mal apetrechada para viver no mundo do volátil, estará condenada à melancolia? E será que esta incapacidade tem reflexos também nas relações humanas? É que esse mundo não parece assim tão distante… Mas o fosso entre esta geração e a geração dos millennials é, efectivamente, enorme.
E, recuperando o título do ensaio de Julie, como ficam as relações, o amor, a busca de uma comunhão de almas, na era do #MeToo? Entre os problemas do coração, os problemas do primeiro mundo e a maldita culpa que se torna sufocante? Eivind afirma algo resignadamente que, apesar de todas as suas “falhas”, não se sente a pior pessoa do mundo. É um mundo de obstáculos que parece pré-determinar que todos sairão perdedores. Anders oferece, pois, como derradeiro presente a Julie, uma singela e preciosa afirmação: “és uma boa pessoa”.
Epílogo
Regressemos então à figura feminina do filme, num filme que é feito de vozes femininas – a voz da protagonista, a voz da narração, a voz do filme. Julie tornou-se fotógrafa de cena, a sua câmara focada naquele momento numa actriz, num dia em que o seu desempenho ficou aquém do desejado, perto das lágrimas, gerando-se entre as duas uma empatia quase imediata. Julie obriga-nos a olhar para aquele rosto, imaginar o mistério que nele reside. E a nele descobrir, em camadas, diversos rostos – a personagem do filme que é actriz, a actriz que representa a personagem do filme que é actriz, o autor do filme, talvez nós mesmos. São sobreposições que acontecem também noutros pontos do filme, particularmente na cena passada numa incrível casa de férias que se estende à nossa frente como um ecrã de vidro em generoso CinemaScope, oferecendo a possibilidade de uma vida projectada para Julie e que ela rejeita.
O final de Verdens verste menneske parece fazer uma rima perfeita com o final do recente Les choses qu’on dit, les choses qu’on fait (As Coisas Que Dizemos, As Coisas Que Fazemos, 2020), de Emmanuel Mouret, uma contemplação serena de um “e se?” quanto a diversas outras vidas que podiam ter acontecido. Uma Julie nascida uma década mais cedo, que não teria desistido do curso de Medicina só porque sim. Ou uma Julie que tivesse tido o desejo de ter filhos com Aksel. Ou uma gravidez que afinal não fosse falso alarme. Ou uma Julie que, simplesmente, tivesse ficado sozinha, como acontece naquele momento. Por outro lado, será inevitável concluir que Julie, com a sua sede de novidade, de entusiasmo renovado, não será a candidata ideal para uma relação estável, feita de rotinas, de desencantamentos, de momentos de tédio. Será que envelhecer implicará para ela perder essa sede de novidade?

Esta é uma trilogia à procura de uma resposta (ou de respostas). E se, em Reprise, Oslo era uma cidade quase sombria, pouco convidativa, ela vai-se tornando progressivamente mais solar, menos cinzenta, chegando a ser radiosa em Verdens verste menneske. Existe uma cena sensivelmente a meio da trilogia, em Oslo, 31. august, quando Anders está sentado na cafetaria, em que o saleiro e o pimenteiro colocados sobre a mesa se assemelham estranhamente a peças de xadrez, naquele preciso momento em que ele é assombrado por pensamentos de vida e de morte, um jogo que decide o seu destino. Em Verdens verste menneske, há a promessa do fim de um caminho, de decisão final, que talvez não seja mais do que mera resignação. A resposta é que não há resposta. Todas as relações são “loucas e irracionais e absurdas, mas continuamos porque… precisamos dos ovos”.