Apichatpong Weerasethakul ou simplesmente Joe – mas só para os amigos – é o homem do momento, com a estreia em sala do seu mais recente trabalho, o primeiro falado em inglês, Memoria (Memória, 2021), com Tilda Swinton no principal papel. Os walshianos quiseram celebrar o regresso deste “extraterrestre” e prepararam uma Sopa de Planos especial, reunindo algumas das imagens (momentos de graça, de inquietação, de epifania ou pura observação) que mais intensamente habitam as profundezas da sua memória dos filmes do Joe.

É exactamente neste momento que o filme (e o cinema?) de Apichatpong Weerasethakul encontra o seu ponto de metamorfose, com uma das personagens a caminhar simbolicamente para a escuridão. Até aqui, Sud pralad (Febre Tropical, 2004) tinha sido uma gentil exploração do nascimento de um romance improvável entre duas personagens solitárias, um soldado e um habitante da aldeia para onde o soldado é destacado. Por entre sequências luminosas, trocas de palavras afectuosas e tímidas, momentos a só numa sala de cinema ou à chuva, canções e o silêncio da noite rural, Apichatpong vai construindo uma espécie de um sonho melancólico próximo do cinema de Wong Kar-wai. Apesar da aproximação romântica entre as duas personagens, o desejo é reprimido, vivendo apenas de forma platónica. Até que, quase como uma brincadeira que vai ganhando contornos sérios, esse desejo é finalmente manifestado, numa sequência que acaba com uma das personagens a afastar-se (um fim em vez de um começo), como se a este par não lhe fosse permitido continuar a sua história. Essa passagem para a escuridão – o quase desaparecimento de uma das personagens – é tão mais notável por assinalar um primeiro momento de escuridão num filme até aí dominado pela luz, como presságio para a mudança de rumo do filme. Pouco depois, a acção desloca-se para o interior de uma selva, dominada por sombras e figuras misteriosas escondidas da luz, que dá definitivamente lugar à noite e à obscuridade.
João Araújo

O cinema de Apichatpong parece (continuar a) caminhar, a passos largos, no sentido da derradeira fusão entre a instalação audiovisual e o cinema – aliás, é o próprio que diz que ambos os media pertencem ao mesmo reino. Apesar de não possuir o poder encantatório de um Sud pralad (Febre Tropical, 2004), Sang sattawat (Síndromas e Um Século, 2006) leva mais longe o nível de abstracção sensorial característico do realizador tailandês, sobretudo ao traçar uma linha divisória ultra-conceptual a meio do filme: uma primeira parte explora, de forma esparsa, alguns esboços de plot que se perdem no tempo com a mesma facilidade com que a câmara vai sendo atraída pelos sons da floresta que ressoam na interioridade futurista dos corredores brancos – de asséptica brancura – de uma clínica de saúde; e uma segunda parte, que se inicia na repetição da primeira, mas que se detém na subtracção das marcas visíveis do humano e da Natureza, deixando à câmara, só no espaço fechado – sem luz natural -, a tarefa de transformar o vazio numa narrativa própria, mediante a sua “levitação” em tal set insondável, digno de um filme de ficção científica. Bem que Síndromas e Um Século poderia ser descrito como o seu 2001 (2001: Odisseia no Espaço, 1968). E aquele buraco negro é o atractor cósmico da nossa viagem a bordo da nave espacial que é o seu cinema.
Luís Mendonça

Visto em perspetiva, Loong Boonmee raleuk chat (O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores, 2010) surge na obra de Apichatpong como peixe na água, ou melhor, como a carpa no lago. Este foi, para todos os efeitos, o filme do reconhecimento; e embora não leve a pontos tão extremados a posição autoral do realizador, é, sem qualquer dúvida, um filme que clarifica de forma notável os interesses e obsessões espectrais do tailandês. Vários dos pontos chave do seu cinema estão lá, mas um destaca-se, particularmente, a representação conceptual da noção de dualidade. Se esta ideia reaparece em todos os filmes de forma narrativa, especialmente na relação entre o estar a dormir e estar acordado, ou entre o vivo e o fantasma, ela também surge enquanto opção estrutural.
O exemplo mais marcado encontra-se em Sud sanaeha (Blissfully Yours, 2002), com o genérico a cortar o filme em dois (sendo a primeira parte na cidade a segunda na floresta). Outro exemplo significativo encontra-se em Sang sattawat (Syndromes and a Century, 2006) com as encenações duplas das mesmas cenas (em versão pai e versão mãe). Em O Tio Boonmee, a dualidade constrói-se, como seria de esperar, com o antes e o depois da morte de Boonmee, que coincide com a transição do campo para a cidade. Este ponto de inflexão é literalizado neste plano, da sequência final, em que se descobre a duplicação (espelhada) das personagens. Através de um efeito especial neoprimitivo, concentra-se numa só imagem, fugidia, toda a empresa conceptual do filme. Onde o lado de lá e o lado de cá (da vida, das vidas) se encontram num só plano, este plano.
Ricardo Vieira Lisboa

Rak ti Khon Kaen (Cemitério do Esplendor, 2015) flui graciosamente por um mundo de sono, sonhos, curas e visitas de seres de outros mundos. Perto do seu final, Jen (uma voluntária numa enfermaria onde soldados tailandeses parecem ter sucumbido a uma condição de sono eterno) pergunta como é que pode parar de sonhar. A resposta que lhe chega parece simples: só precisa de abrir bem os olhos. E é então que Jen faz isso mesmo: vemo-la sentada a contemplar as máquinas que escavam a terra e as crianças que jogam futebol num gesto de liberdade, na esperança de que ela própria possa, então, acordar da sua realidade e se deparar com um mundo melhor. Jen é testemunha da multiplicidade e transparência da realidade e é, talvez, a única pessoa capaz de perceber o que está a acontecer, enquanto encara a devastação (passado, presente e futuro) com os olhos forçosamente abertos como que espelhos do real.
Somente um intérprete, um médium como Jen, nos permite ter esta interação entre as várias realidades, aparentemente distantes, do universo de Apichatpong e, em particular, da Tailândia. É ela quem nos desperta os sentidos. Talvez tudo isto não passe de sonho, de dor, de sofrimento e injustiça. Tudo o que nos é pedido é tão simples quanto este abrir de olhos, de forma a termos acesso a uma conexão etérea para além das imagens do cinema.
Nuno Gonçalves

Se é verdade que existe um genuíno prazer crítico em agrupar, a posteriori, os filmes de um autor em função de temas, estéticas, mundivisões; e que o visionamento cronológico permite reflectir sobre isso que, desmazeladamente, podemos chamar de “evolução” na obra, não é menos verdade que os grandes artistas produzem no mundo um “estado de suspensão” que se poderia tentar definir como a expectativa que temos em sentir/ver o que é este vai fazer a seguir: para onde vai?; como nos irá surpreender?; qual o grau de reinvenção da sua criatividade? Apichatpong Weerasethakul é um desses autores. Nesta curta metragem, que integra o filme colectivo The Year of the Everlasting Storm (2021), o tailandês volta a um “cenário familiar”: uma cama e luzes fluorescentes. A luz e a medicina são temas. Assim como o é o trabalho sobre a memória e a circularidade da existência, uma comunicação com os que desapareceram.
Em Night Colonies (2021), observamos um conjunto de insectos – borboletas, louva-a-deus, mosquitos, traças, formigas, escaravelhos. Uma comunidade abrigada da chuva, da trovoada, diálogos cujas palavras parecem provir dos bateres intensos de asas, dos pequenos corpos a embater contra o vidro das lâmpadas e das janelas. Apichatpong não vê estes insectos a partir de uma beleza exótica, de uma ameaça metafórica – The Year é um filme feito durante a pandemia da Covid-19 – ou da procura de uma outra subjetividade óptica. Estes são apenas pedaços dessa circularidade existencial, dessa serenidade apichatponguiana, cuja atenta e desierarquizada observação não deixa de produzir uma calma inquietação. É nesse estado que embatemos nos seus planos: como insectos atraídos pela luz.
Carlos Natálio