Era tão fácil hoje ser feliz
que me atormenta a diferença opaca
do pouco mais que nada que me falta
e faz de mim excesso numa imagem.
António Franco Alexandre, em Poemas
Quando Francis F. Coppola, num exercício de análise retrospectiva, feito três décadas e meia depois da realização de One from the Heart (Do Fundo do Coração, 1982), apesar do seu estrondoso fracasso comercial, não encontra outro motivo de “arrependimento” que não seja o de não ter levado até ao fim a sua aposta num cinema em que “as imagens seriam criadas, editadas e distribuídas electronicamente” realizando a sua ambição maior de um “cinema ao vivo”, há aí um bom estímulo para, fazendo este filme parte Do álbum que me coube em sorte, reexaminar as lições tiradas e as ambições frustradas.[i]
Delineado sob forte pressão do resultado do filme anterior, Apocalypse Now (1979), pois conforme confessa Francis Coppola: “via as receitas chegarem, mas sentia que estava o mais próximo possível do fracasso que temia”, o filme seguinte que queria “produzir e realizar ao vivo” inseria-se num projecto mais vasto: “Ainda não tinha um argumento próprio, mas aquele que eu tinha em mente, que chamei de Afinidades Electivas, havia sido concebido como um ciclo de filmes, um quarteto sobre o amor, sugerido pelo intemporal romance de Johann von Goethe de 1809. Cada um dos quatro filmes seria uma estação ― primavera, verão, outono e inverno ― e cada filme deveria retratar um aspecto da proposta de amor como elemento de uma reação química: o homem, a mulher, o outro homem, a outra mulher”.
Entretanto, ao contrário do que sempre fora o seu interesse e as suas pretensões como argumentista, aceitara ler um argumento que lhe fora proposto por Armyan Bernstein, e assim se desencadeou a etapa subsequente: “Gostei da ideia de contar uma história de amor, principalmente sob a forma de comédia, mas o que eu queria mesmo era fazer um musical. Pareceu-me que era o momento certo para voltar a esse género de Hollywood tão magnífico noutra época mas que, como os westerns, era agora impossível sequer mencionar aos estúdios, que corriam apenas atrás da última tendência”.
Apreciar One from the Heart não será uma alegria nossa pelos dias distraidamente repartida. Qual peça sem costuras, “(e aquele que no auge a não olhar / que saiba que passou e que jamais // lhe será dado ver o que ela era)” será apenas concedida a quem, inteira, couber em sorte.
Faltava juntar a lição que, da memória do tempo de estudante de cinema, retirara de uma visita que fizera à Paramount Studios, no momento em que Jerry Lewis aí dirigia o filme The Ladies Man (O Homem das Mulheres, 1961). Nessa ocasião, tivera oportunidade de ver ao vivo o cenário incrível de uma pensão feminina com a quarta parede cortada e, sobretudo, pôde observar o uso brilhante que Jerry Lewis fazia das câmaras de TV acopladas a visores, cuja gravação vídeo lhe permitia rever a última take realizada. Tal experiência continha o melhor exemplo para o que queria fazer: conjugar as possibilidades prometidas pelas metamorfoses tecnológicas emergentes com o seu maior desejo de fazer um cinema mais teatral.
The Thief of Bagdad (O Ladrão de Bagdad, 1940), de Ludwig Berger, Michael Powell e Tim Whelan
Faltava um elemento para, em pequena escala, poder recuperar o espírito dos estúdios, conjugando a revolução digital com o surgimento de uma nova era que levaria o cinema para um patamar totalmente novo: comprar os Hollywood General Studios, onde foram rodadas algumas das cenas finais do seu filme favorito, The Thief of Bagdad (O Ladrão de Bagdad, 1940), equivaleria ao início duma mudança que levaria à adopção e desenvolvimento de processos de trabalho assentes na Pré-visualização (termo que passa a designar a forma nova de conceber o trabalho de desenho do projecto e a fase de preparação) bem como o recurso pioneiro ao Vídeo-assist (que permite o visionamento das takes filmadas enquanto se permanece num dado décor) e ao uso frequente da Steadicam (câmara estabilizada fixada a um operador que se movimenta).
A celebração do 4 de Julho numa Las Vegas de néon e jogos de luz inteiramente construída em estúdio; longos planos-sequência acompanhando as acções das personagens; artifícios teatrais que permitem passar de um espaço para o outro no mesmo plano; paredes transparentes que deixam ver o que se passa ao mesmo tempo na divisão ao lado; falsas paredes que facilitam o atravessamento dos espaços de diferentes decores; fabulosa mobilização de meios tecnológicos de última geração ― e uma exclamação (final, do “único arrependimento da vida”) de Francis Coppola: “E não pude experimentar o cinema ao vivo!”
One from the Heart (Do Fundo do Coração, 1982) de Francis Ford Coppola
Da explicação dada por Coppola (para a frustração) infere-se quão decisiva terá sido a consideração por Vittorio Storaro, o director de fotografia, amante do “step by step” e seguidor da máxima segundo a qual “é o trabalho que nos diz como fazê-lo” que, afinal, demoveu o realizador da pretensão de usar múltiplas câmaras com o argumento de que “isso dificultaria enormemente o trabalho de iluminação, ao passo que com uma só câmara se rodaria muito mais depressa”.
Sobre o “cinema ao vivo”, é de considerar a apreciação expendida por Serge Daney, embora esta seja de carácter mais geral: “Os filmes de Coppola (…) pertencem à vertente maneirista do cinema americano. Como definir esse maneirismo? Nada mais acontece entre os humanos, tudo acontece na imagem. À imagem. A imagem torna-se uma personagem patética, uma questão em jogo. Tememos por ela, queremos que ela seja bem tratada, mas ela já não é dada pela câmara, ela é fabricada fora dela e sua «pré-visualização» graças ao vídeo é o objecto do que resta de amor no coração seco (exagero) dos cineastas”[ii].
André Bazin, que no início dos anos 50 se tornara um observador precoce da televisão, e se mostrara dotado de uma particular acuidade de percepção do fenómeno, assinala, logo num primeiro texto, a grande mudança trazida ao estilo da reportagem: “o do cinema baseava-se na montagem; o da televisão assenta na tomada de vistas”. [iii]
É, contudo, num texto intitulado “Renoir francês” ― análise crítica de grande profundidade sobre a obra e o estilo daquele que “é indiscutivelmente o maior realizador francês” e “o mais ‘realista’ dos cineastas”, cujos “filmes são feitos com a pele das coisas” ― que André Bazin, expondo as suas teses sobre “o realismo que afirma uma sensibilidade constante em relação ao mundo, mas que se abre para um universo (…) de correspondências”, fornece a mais acuta argumentação sobre a câmara enquanto “um modo de ver, livre de qualquer contingência e que, no entanto, preserva as amarras e a qualidade concreta do olhar, a sua continuidade no tempo, o seu ponto de fuga único no espaço…”[iv]
Ora, se tivermos em conta que da reavaliação da obra crítica de André Bazin que se tornou possível empreender (a publicação dos escritos completos muito contribuiu para isso) resulta que, na sua ideia de cinema, a questão da presença suplanta a da representação, estaremos em condições de dar o peso devido a este outro seu argumento: “A televisão faz surgir uma nova noção de presença, livre de qualquer conteúdo humano visível e que seria apenas a presença do próprio espectáculo. Um travelling de televisão nunca passa pelo mesmo lugar duas vezes. Não há mais enquadramentos idênticos do que folhas de árvores sobreponíveis. Amemos a imagem que nunca veremos duas vezes”.[v]
Das imagens do sonho sabemos, a partir dos escritos homéricos gregos, que ― na sua qualidade de “duplos” (como Jean-Pierre Vernant não se cansou de assinalar) ― essas imagens não constituem “uma representação do foro interior do sujeito, mas uma aparição real efetivamente inserida aqui em baixo, neste mesmo mundo onde vivemos e vemos”, não sendo, no entanto, menos certo que, enquanto manifestações do “invisível que por um momento se dá a ver”, perante o desejo de serem abraçadas se esvaem[vi].
Em relação às imagens do “cinema ao vivo” será legítimo perguntar se Francis Coppola pretenderia “tecer, para seu prazer e nossa alegria, a túnica sem costuras”, não certamente “da realidade”, isto é, a pele das coisas, como afirmava Bazin a propósito de Renoir, mas talvez, de forma excessiva, da fulguração néon, que é como quem diz o brilho do novo, e ainda assim numa só peça tecida eletronicamente de alto a baixo.
Apesar disso, não é seguro que críticas como as de Pauline Kael ― “This movie isn’t from the heart, but from the lab” ―, mais apostadas em verberar a sumptuosidade visual por oposição à escassez da narrativa de quem faz filmes em laboratório, acertem no alvo[vii], uma vez que o que acontece nesta Las Vegas, que no passado fora “a última fronteira da América”, perante a mudança histórica em curso no início da era Reagan, pode muito bem ser compreendido por todos, mas não deixa de ser motivo de inquietação e angústia: são assim os sonhos que por antecipação apertam o coração qual barreira a não passar, sonhos desfeitos, cruamente sinalizando o interdito à veleidade daqueles, se os houver, que ousem “follow the fellow who follows the dream”.
Apreciar One from the Heart não será uma alegria nossa pelos dias distraidamente repartida. Qual peça sem costuras, “(e aquele que no auge a não olhar / que saiba que passou e que jamais // lhe será dado ver o que ela era)” será apenas concedida a quem, inteira, couber em sorte.
[i] Francis Ford Coppola, «One from the Heart: Its lessons», em Live Cinema and its Techniques (New York and London: Liveright Publishing Corporation, 2017).
[ii] Serge Daney, «Coup de Cœur – Francis Ford Coppola», em Ciné-Journal 1981-1986 (Préface de Gilles Deleuze) (Paris: Cahiers du Cinéma, 1986), 125.
[iii] André Bazin, «Reportages sportifs au journal télévisé», em Écrits Complets I, ed. Hervé Joubert-Laurencin, [L’Observateur, no108, 5 juin 1952] (Paris: Éditions Macula, 2018), 943.
[iv] André Bazin, «Renoir français», em Écrits Complets I, ed. Hervé Joubert-Laurencin, [Cahiers du Cinéma, no 8, janvier 1952] (Paris: Éditions Macula, 2018), 843.
[v] André Bazin, «Un reportage sur l’éternité: la visite au musée Rodin», em Écrits Complets I, ed. Hervé Joubert-Laurencin, [Radio-Cinéma-Télévision, no 148, 16 novembre 1952] (Paris: Éditions Macula, 2018), [1163], 1048.
[vi] Jean-Pierre Vernant, «Naissance d’images», em Religions, Histoires, Raisons, Œuvres: Religions, Rationalités, Politique-II / Opus Seuil, [1975] (Paris: Éditions du Seuil, 2007), 1732.
[vii] Cf. Vera Dika, Recycled Culture in Contemporary Art and Film: The Uses of Nostalgia, ed. Dudley Andrew e William Rothman, ACLS Humanities E-Book (Cambridge University Press, 2003), 170–88.