São vários os filmes dedicados a cidades em que os realizadores aproveitam as sugestões urbanísticas e históricas de um lugar para enveredar por uma evocação das suas memórias de infância e juventude. Penso, imediatamente, em três filmes da primeira década do século XXI, My Winnipeg (2007), de Guy Maddin, Of Time and the City (2008), de Terence Davies, e, naturalmente, Porto da Minha Infância (2001), de Manoel de Oliveira.

Esses três filmes, de formas diversas, trabalham uma mesma ideia de memória transida pelo próprio cinema – uma vez que o rememorar de um realizador é, necessariamente, uma reflexão sobre o cinema. Maddin trabalha o filme dentro do filme e a re-encenação das memórias através dos mecanismo da ficção; Davies serve-se da sua voz como agregador de uma colagem barroca de referências pessoais e artísticas que radiografa a cidade de Liverpool nos anos 1950 e 60; e Oliveira emprega uma série de estratégias que vão da auto-apropriação ao efeito de espelho com o seu neto ator, Ricardo Trêpa, passando pela falsificação do arquivo, pela encenação e pela reconstituição anacrónica.
Independentemente dos mecanismos a que cada cineasta recorre, o que me interessa destacar é o modo como todos trabalham uma certa ideia de incerteza. A memória, já se sabe, é um território nebuloso, sujeito a múltiplas perturbações. Os três filmes anteriores, juntamente com o recente Belfast (2021), de Kenneth Branagh, têm consciência das ambiguidades inerentes ao recordar e, ativamente, trabalham essas zonas cinzentas no modo como esbatem as fronteiras entre o “real” e o “cinema”. Exatamente a propósito disso, do cinzento, destaco o modo como Branagh trabalha a alternância entre o preto-e-branco e a cor como algo significativo para essa dúvida essencial quanto à natureza fatual/afetiva do que nos é mostrado.
Belfast começa como um reclame: planos de drone com música festiva dão a ver uma cidade pintada a corretor de cor, com os contrastes puxados ao limite do filtro de Instagram. Poderia ser um anúncio municipal para incentivar o turismo – e até certo ponto é… – só que, com um passe de mágica digital, viajamos para os anos 1960 e para um bairro operário da cidade homónima durante os primeiros momentos dos conflitos entre as duas Irlandas, conhecidos genericamente como The Troubles (outra fronteira esbatida). As cores publicitárias fazem-se matizes de cinza, tonalidade que irá permanecer até ao final do filme, salvo raras excepções.
Belfast revela-se através de uma capa rememorativa, como forma de auto-análise freudiana em que o realizador parece refletir (ou mitificar) as origens do seu entendimento das coisas, através do cinema.
Quando Buddy (Jude Hill, a interpretar um jovem Branagh) vai com a família ao cinema (ou ao teatro), o ecrã enche-se com as cores exuberantes do Technicolor que pinta os filmes de aventuras e os musicais que fazem as delícias do pequeno espetador: One Million Years B.C. (Quando o Mundo Nasceu, 1966) e Chitty Chitty Bang Bang (1968) preenchem as matinés de domingo da família. Branagh filma o olhar maravilhado do rapaz quase sempre em contrapicado, mostrando o cone de luz do projetor sobre a sua cabeça. Inversamente, o imberbe cinéfilo assiste, na televisão (em formato reduzido e amputado), a westerns como The Man Who Shot Liberty Valance (O Homem Que Matou Liberty Valance, 1962) ou High Noon (O Comboio Apitou Três Vezes, 1952). Aí vigora o preto-e-branco, o mesmo das reportagens televisivas que noticiam os tumultos que correm lá fora.
Esta descrição é importante porque, segundo me pareceu, o filme constrói-se a caminho de um plano, aquele ao qual corresponde a imagem que abre este texto. Em tudo idêntico aos planos do menino na plateia do cinema, esta imagem surge, diegeticamente, fora desse contexto. Nesse plano, Buddy assiste a um inesperado “número musical” entre o seu pai e a sua mãe, que acontece num salão comunitário improvisado para bailes e jogos do bingo. O que aqui se opera é uma translação do modo de ver cinema para o modo de ver a “realidade” (através do cinema). A súbita alteração da linguagem do filme (na montagem acelerada e rítmica, nos tipos de enquadramento, etc.) traduz uma mudança de ponto de vista do protagonista, mudança essa que transforma o mundo segundo a bagagem cinéfila do rapaz. Nesse momento, que coincide praticamente com o final do filme, inaugura-se uma nova forma de Buddy/Branagh encarar o que o rodeia e o transformar com o olhar.
Só que esse número musical familiar surge, aos olhos da criança (e aos nossos, pelos dele) a preto-e-branco. Isto é, embora seja uma linguagem próxima dos formalismo do cinema infanto-juvenil popular dos anos 1960 que o menino tanto aprecia, a tonalidade é a mesma da “realidade televisiva” e do “cinema clássico”. Afinal, essa transformação do mundo através do olhar do jovem é limitada. É uma transformação formal, mas não uma alteração da substância das coisas. O olhar de Buddy/Branagh não muda a cor do mundo, apenas lhe dá outra estrutura.
Este momento, nada casuístico, é bastante revelador das próprias contradições inerentes a Belfast e ao percurso do seu realizador. Recorde-se que Kenneth Branagh é, além de um popular ator de Hollywood, realizador de filmes como Thor (2011), Jack Ryan: Shadow Recruit (Jack Ryan: Agente Sombra, 2014), Cinderella (Cinderela, 2015) ou a versão contemporânea de Murder on the Orient Express (Um Crime no Expresso do Oriente, 2017). Ou seja, ele assina as versões contemporâneas desse cinema infanto-juvenil a que o pequeno Buddy assistia embevecido nos anos 1960 (e o filme faz referências diretas tanto a esses livros de quadradinhos como a essa escritora de policiais). Paralelamente, Branagh é um reputado ator shakespereano, tendo realizado várias adaptações recentes da obra do dramaturgo, tanto para cinema como para teatro.
Belfast revela-se, afinal, através dessa capa rememorativa, como uma forma de auto-análise freudiana em que o realizador parece refletir (ou mitificar) as origens do seu entendimento das coisas, através do cinema. Como terapia psicanalítica, o filme é curioso, já que estabelece, por fim, a ponte entre essas duas facetas aparentemente opostas do realizador/ator/encenador. Enquanto ficção auto-biográfica, falta-lhe a intensidade e a violência de – para não ir mais longe – Terrece Davies, e a sua trilogia da infância, composta por Children (1976), Madonna and Child (1980) e Death and Transfiguration (1983) – aliás, Branagh estabelece com esses filmes uma série de relações (geracionais, culturais e sociais), fazendo até, creio, uma ou outra citação (nas sequências da escola, na figura do padre e na morte do avô – numa articulação cuja compreensão deixarei para outras núpcias).
Porém, há uma sensação de postiço em todas estas citações (especialmente nessa tentativa de reaproximação a um certo cinema social inglês), sendo que tudo surge demasiadamente estruturado. Mais do que uma recordação, Belfast é a defesa de uma tese revisionista. E, como em boa parte dos trabalhos académicos, é demasiado didático e um pouco enfadonho.