Não me considero dono da melhor memória do mundo, mas certos ensinamentos eu não esqueço. Fazem parte das recordações da casa de Alpendre. Alguns se tornam, com o passar do tempo, ensinamentos em reverso. Cansei de ouvir ou ler de outros críticos, não necessariamente dirigindo-se a mim, mas em textos sobre crítica, orientações como “não escreva tal coisa”, “isso não pode”, “isso, em crítica, é vulgar”, “crítica não é assim”, somente para perceber, depois de um tempo, que algum grande crítico do passado, já havia triunfado nesses terrenos proibidos. Percebi logo que o “não pode” é bem relativo, pois frequentemente descubro que alguém já mostrou que “pode, sim”. Até aí, pelo menos são outros críticos procurando um tipo de mandamento da boa crítica. Algo que não existe, mas acredito numa boa intenção por trás dos conselhos.

Pior é quando vem alguém sem a menor intimidade com crítica dizer que é necessário fazer a crítica da crítica. Geralmente essas pessoas sacam essa máxima quando leem alguma crítica com a qual discordam. Muitas vezes, acompanhada de alguma ofensa a quem escreveu, mesmo que a pessoa só tenha atacado o filme, jamais quem o fez. Sim, é salutar pensar na crítica da crítica, mas só um crítico(a) poderia fazê-la, e esse alguém sem intimidade não gostaria nada dessa crítica da crítica, porque veria toda a linha de argumentação voltada para o outro lado, se a crítica da crítica for justa.
E sempre que uma pessoa fala em crítica da crítica, podemos ter certeza que essa pessoa não tem a mais vaga ideia do que uma crítica pode ou deve ser, para que serve e porque é importante – mais: porque é fundamental. Mas pensa ser necessário fazer uma crítica da crítica. O resultado disso poderia ser a morte da crítica, que é o normalmente desejado por esse tipo de pessoa. Assim podem todos brincar no jardim formoso do cinema sem levar pedradas daqueles que, por não saberem fazer, atacam (quem leu Oscar Wilde, Robin Wood, Jean Douchet ou Susan Sontag entende que esse papo de crítico ser frustrado é uma tremenda bobagem).
O pessoal que pede crítica da crítica é o mesmo que vê os filmes com olhos de fiscais. Não veem como críticos. Um filme pobre cinematograficamente pode ser maravilhoso para esses, só porque provoca uma sensação de justiça no espectador.
Mas toda crítica é facilmente criticável. Não há um único texto crítico que seja isento de problemas, palavras mal escolhidas, construções que revelam alguma vaidade ou mesmo uma insegurança em quem escreveu e uma série de outros problemas possíveis. O crítico que nunca pensou em mudar alguma coisa em texto que escreveu e já foi publicado não é crítico, mas narcisista. Sempre há algo que queremos mudar. Não necessariamente para melhor, embora em nossa cabeça, sim. A crítica, se tomada como obra de arte literária, é sempre imprecisa, incompleta, falhada em muitos aspectos. “A crítica como a arte”, para voltarmos a Oscar Wilde, patrono destas crónicas.
Mas o pessoal que pede crítica da crítica é o mesmo que vê os filmes com olhos de fiscais. Não veem como críticos. Um filme pobre cinematograficamente pode ser maravilhoso para esses, porque é um filme sensível, que coloca – mal e porcamente, um crítico de fato diria – dados que provoquem uma sensação de justiça no espectador. Já um filme de qualidade estética forte pode ser considerado uma série de coisas, de misógino a racista, de reacionário a homofóbico, de raso a inconsequente, de alienado a burguês, caso algum dado ambíguo surja para rejeitar a pregação para convertidos que se deseja habitualmente no meio cinematográfico (incluindo aí a recepção, obviamente).
Recentemente fui acusado de não gostar de The Lost Daughter (A Filha Perdida, 2021), de Maggie Gyllenhaal, filme adaptado do romance de Elena Ferrante, por ser homem. Eu não teria capacidade de entender certos temas, segundo a crítica da crítica aplicada rapidamente em rede social. A pessoa, bem-intencionada, tenho certeza, não sabe a história da minha vida, mas julga que eu não tenha capacidade de alcançar um traço de alteridade somente por ter encontrado sérios problemas cinematográficos no filme de Gyllenhaal, além da trama que, francamente, me pareceu bem pueril. Segundo boa parte das pessoas, poucos teriam, hoje, a capacidade de entender o outro, de estar na pele de outra pessoa ao menos por alguns momentos. Reflexo nocivo da busca pelo real que se tornou uma febre no cinema contemporâneo.
Sei que o assunto é complexo e fiz algumas curvas no caminho de uma reflexão. Mas não pretendo parar por aqui. Pensar e repensar a crítica é o que tenho feito há pelo menos uns 15 anos, por isso voltarei ao assunto em futuros textos.