Onde as mulheres são verdadeiras, elas partem coisas. Helke Sander Feminismo e Cinema Frauen und Film, Fevereiro 1978
Helke.
Há uma sensação avassaladora onde se deita o comum que a antropóloga Kathleen Stewart descreveu como “(…) uma imersão à deriva que observa e espera que algo brote”. No silêncio curativo de uma casa vazia, o mais pequeno movimento ou som carrega consigo uma quebra tão súbita na abertura de pensamento que ali se encontrava finalmente, que esta nada consegue fazer a não ser evaporar-se. Pensar na claridade sentida, em como nos afoga, mesmo que só por segundos, faz-nos reflectir que na paragem existe também um movimento, uma noção de exercício. Algo que se firma num objecto parecido com o do aborrecimento, por onde ideias entram. O cinema militante feminista alemão de Helke Sander, nome ainda tragicamente desconhecido, é dotado porque embora nada se pareça com isto, provoca o mais elevado dos movimentos pausados, num corpo de obra que continua a rectificar a injustiça brutal que é a avaliação do cinema realizado por mulheres não pelo que nele se encontra, por essa diferença, mas pelo simples facto de que o é.

Objectos mergulhados no “agora”, ainda livres de serem atingidos pela validade que fazem deles cápsulas do tempo, é alucinante quão ignorados têm sido os filmes da veterana pela programação de cinema europeia. Especialmente tendo em conta de que foi uma das grandes impulsionadoras da onda do movimento das mulheres na Alemanha Ocidental durante as décadas de 70 e 80. Criadora e editora-chefe da revista feminista e teórico-fílmica Frauen und Film, única na Europa até recentemente a Another Gaze de Daniella Shreir se juntar a ela, o seu coração tinha vindo a ser incendiado pela procura identitária das mulheres durante os protestos estudantis de 1968. Quando, passados dez anos, se apresenta no Festival de Berlim com a sua primeira longa-metragem, salientando a eliminação de barreiras como aquelas que são o documentário ou a ficção, já canalizava a fome desse activismo para o cinema, o seu principal método de investigação.
Quando vi Die allseite redurziete persönlickeit – Redupers (The All-Around Reduced Personality – Outtakes, 1978) pela primeira vez, estávamos confinados. O Spectacle, antro de raridades de culto, em Brooklyn, Nova Iorque, tinha sido obrigado a fechar, mas os seus live streamings continuaram a levar os filmes de série B, dos mais experimentais aos mais marginalizados, para quem estivesse do outro lado a vê-los. O tracking shot inicial do filme funciona como um convite, oriundo de uma câmara empoleirada dentro de uma carrinha, que percorre o muro de betão físico que separou a cidade de Berlim a meio durante 30 anos e assim introduz o corpo da cidade como os olhos a têm. Em confinamento, fez-nos caminhar outra vez e revisitar a paisagem urbana da cidade. Os passeios, os graffiti do muro e as pessoas que passam, num preto-e-branco translúcido, mas entristecido. Claro que ainda não o sabia na altura, mas já estava presente naquela topografia a psique visual para um manifesto que eleva a experiência da mulher primeiro na cidade e depois dentro de si mesma. Experiência esta que viria a ser revista por mulheres cujos pés nunca tinham sequer tocado em Berlim. E ali estava, aberta à partilha.
É notável como Sander consegue afunilar o papel económico das mulheres no ecrã, e a ansiedade que dela borbulha, nos primeiros 10 minutos.
Encaixar o filme no seu contexto cronológico enquanto o via levou-me de volta a Chantal Akerman e Babette Mangolte que tinham realizado filmes no ano anterior, também focados no modelo cinemático como forma de tocar naquilo que não exclui ninguém. Juntá-los todos agora abre realmente a cabeça para a emergente mudança da prática e análise fílmicas que Sander incentivava. Em conjunto, os três filmes – os restantes são News from Home (1977) e The Camera: Je Or La Camera: I (1977) – teciam caminhos em uníssono, físicos e psicogeográficos, com vozes sem corpo que, assim que coladas em cima de imagens urbanas, acabavam a formar autobiografias reveladoras. Noutras palavras, nelas encontrava-se retida uma sintonia empática, onde a verdade acaba a ser contada sem nunca precisar de ser proferida.

Edda.
Sob o signo dessa não-fisicalidade e num tom maravilhosamente sarcástico, o filme acompanha quatro a cinco dias – sexta a terça – da vida de Edda Chiemnyjewski, protagonizada pela própria Sander, uma jovem mãe solteira, fotojornalista freelancer que está com dificuldades em se conseguir sustentar numa cidade que, como ela sugere ao carteiro, “talvez não existamos”. Berlim está dividida, mas também estão as mulheres que nela vivem. As lacerações são diversas, interiores e exteriores. O seu tempo é dividido entre a filha, o preço pago por fotografia de algo que um editor possa considerar merecedor, e outros projectos que tenta levar avante com o colectivo feminino de fotógrafas do qual faz parte. Se não soubesse melhor, diria que só aquele início de filme me viu a mim em vez do contrário.
Edda não escreve, mas é outra artista precária, a trabalhar por conta própria, sem direito a baixa médica ou férias. É notável como Sander consegue afunilar o papel económico das mulheres no ecrã, e a ansiedade que dela borbulha, nos primeiros 10 minutos. Enquanto tira fotografias, a narração voz-off (sua, mas sempre heterodiegética) expõe os seus lucros e gastos nesta gig economy capitalista feita de trabalho avulso, negociações de valores e mais importante ainda, momentos-chave em que se vê obrigada a enaltecer aqueles que se cruzam com ela de que precisa de ser paga pelo seu trabalho, já para não falar do jornal que usa uma fotografia sua sem a creditar ou remunerar.
Entre viagens de carro e os seus vários destinos, sejam estes possíveis locais de trabalho ou agências onde tenta vendê-lo, uma arquitectura psicogeográfica da esfera pública e privada da mulher na cidade começa a ser retida. Ao fundo e pelos cantos, o muro vai-se transformando num personagem. Por onde se olhe, ali está ele, a denunciar a sua presença. Do outro lado dele é atiçado que as mulheres estão a ser ajudadas – “personalidades desenvolvidas na totalidade” é o que verte das ondas de rádio comunistas. Mas Sander, ou melhor, Edda, “a personalidade reduzida na totalidade” que o título agiganta, é suportada por um humor que aponta para essa mentira. Na viagem que o filme começa por ser quer documentar isto mesmo, mas não consegue ignorar a narrativa que aí encontra e que, por sua vez, também se revê em algo inesperado. Sander não procura divisões secundárias. Com o muro enquanto símbolo físico para o que é sentido, procura evidenciar que, no meio das convulsões ideológicas entre o Oeste e o Leste, há semelhanças quotidianas entre os homens e as mulheres que precisam de ser enfatizadas.
Convidar Berlim Ocidental a olhar em frente, apenas isso, é oferecer às pessoas a descoberta de que existe um outro lado e que tudo o que é necessário fazer é reconhecê-lo.
O mesmo reflecte-se no seu trabalho. Aquando de um concurso que quer colocar Berlim Ocidental na melhor luz, o colectivo feminina começa a pensar em como olhar a cidade. As suas colegas têm estado a usar a fotografia como acto de a cortar em pedaços. Mas nem as colagens destas as deixa imaginar uma outra cidade. O que acaba registado é demasiado feio. Como pode ser esta cidade vista como uma quando se compõe por dois lados contraditórios? Na sua série de fotografias, Edda decide fazer uma recolha das semelhanças entre eles. Aponta para a opressão alemã que vive dentro das pessoas, a paisagem urbana sinalizada pelo metro e pelos vários slogans, e quer descobrir onde há buracos no muro. Lugares e momentos de contacto. Há contacto directo a partir das janelas dos apartamentos afinal. Especialmente para quem vive ao lado do muro. A menção de que até os germes viajam e se instalam no lado oposto parece mais do que lógica. Já para não mencionar de que existem pessoas, os chamados de “Grey Panthers”, que têm autorização para se movimentarem entre fronteiras, o que as leva a virar o conceito de pernas para o ar. Em vez de as séries de fotografias representarem a cidade, porque não usá-las então como presença visual na mesma? Ou seja, levar a cidade a si mesma. Provocar um choque eléctrico na origem. E olhar para o muro como aquele que enclausura, em vez de uma aresta que só delimita.
Quando aqui chegamos, longe de tudo o que poderíamos estar à espera, a estreia de Helke Sander já esvai um brilho que se encontra exactamente entre Akerman e Mangolte, a infecção nostálgica da primeira e o olhar permanentemente novo, que se refaz por si só, da segunda. O seu experimentalismo é exacto. Já para não dizer que nunca tilinta, nem no seu corpo nem do que dele emana. Partilha com o road movie a espiritualidade mitológica que se move pela pele. E retira muito do filme-ensaio também. Quer expôr os vários elementos que absorveu até ali e que dela fazem parte. E o filme sente-se assim, mesmo horas passadas do seu efeito sobre nós. Quando a foto de um carro estacionado à frente do muro é escolhida e a partir daí impressa em formato poster gigante e colada pelas paredes da cidade, Helke aponta para a paragem enquanto a investigação necessária para olhar profundamente. A captura é mais bem conseguida quando fazemos da paragem movimento. Vê-la mais tarde a encostar a réplica no local de origem onde a fotografia foi tirada é ver o espelho que a cidade precisa, um túnel até si mesmo, porque pede, mais do que qualquer outra coisa, para ser lido por pessoas que, até ali, nunca souberam como olhar para si mesmas. A adicionar a isto, e ainda preso nesta matrioska, o colectivo proporciona algo maior, com uma topografia ainda mais física. Uma verdadeira janela indiscreta para Berlim Oriental numa plataforma com umas cortinas. Tal e qual as divisões que separam as mulheres das suas muitas outras esferas. Convidar Berlim Ocidental a olhar em frente, apenas isso, é oferecer às pessoas a descoberta de que existe um outro lado e que tudo o que é necessário fazer é reconhecê-lo.





A luta pelo Eu.
Numa centrifugação de temáticas e belíssimas referências – de Thomas Brasch a Christa Wolf, Helke usa todo o tempo do seu filme para atingir a tão simples tese de que precisamos urgentemente de olhar em nosso redor. Em cada cena, mesmo naquelas em que está só a fazer companhia à filha ou a ler o jornal com o namorado, há uma explosão de saber, de subversão da subversão de ideias anteriormente sugeridas e entretanto repensadas e exacerbadas ao seu mais modesto exagero. São raros os momentos em que as sequências que vão completando o filme não se vêem assoberbadas por uma proliferação de som. Parece haver sempre uma televisão ou um rádio ligados. E mesmo quando tal não acontece, o ruído dos aviões que sobrevoam pela cidade tomam posse da possibilidade de uma calma que o filme nunca atinge. Se começamos pelo mapa de uma Berlim cercada, então acabamos com uma colagem das múltiplas esferas onde se insere o Eu de Sander que corta e cola palavras e sons num objecto seu que a representa. Mas bem, não serão todos os filmes assim, no seu íntimo?
Sander existe na voz que guia o filme, ora distante como narrador heterodiegético, ora como Edda, complemento ao corpo que vemos deslocar-se. O trabalho fotográfico do seu alter ego enaltece a perspectiva feminina de como é trabalhar a narrativa e salienta que essa dinâmica seja transportada para a sala de cinema, perguntando se é possível uma ligação mais profunda com o espectador, como forma de atingir e tocar nas fragmentações que se fazem sentir na vida quotidiana. No fundo, a realizadora faz a mesma coisa consigo mesmo que mostra Edda fazer com o projecto da cidade. É importante ter em mente que existe em Sander, tal como em Edda, o medo de parar, de desistir, que está sempre por perto. Para abanar o seu chamamento, faz tudo para continuar a travar a luta em ser ela mesma. Daí a vibração de produção infinita que ressalta do filme. Este fazer acontecer tem que ser imparável numa sociedade que parece não a querer por perto.
Confirma de vez que o feminismo é partir através da união. Agora, se este tão gigante filme é a grua incandescente para o presente que nele li desde o início, escrever sobre ele é nunca conseguir parar.
Usando o muro como representação directa da sua psique ideológica e geográfica, Sander partilha esta topografia e pede que seja lida também e especialmente por aqueles que, tal como ela, vivem num espaço condicionado, onde a possibilidade de ter um papel activo no mundo em redor é dificultada a cada passo. Deixa de ser tão curioso, quando assim pensado, o contemplar da profundidade da rua presente na sequência final. Quando comparada com o tracking shot inicial, a perspectiva encontra-se alterada. Uma viagem foi efectivamente realizada entretanto. Nos últimos minutos, a câmara estática deixa as personagens entraram em campo, em vez de as “apanhar” de passagem e por pouco tempo. Deixa de haver anonimidade ou pluralismo. Há uma mulher no seu centro e a sua filha, e o reconhecimento de que o filme que acabou de nos mostrar funciona como o diário do qual nunca ninguém fala, o mapa por trás dos grandes acontecimentos, onde “mais é escondido do que dito”. Por isto mesmo, não podia haver despedida mais forte. Confirma de vez que o feminismo é partir através da união. Agora, se este tão gigante filme é a grua incandescente para o presente que nele li desde o início, escrever sobre ele, como aqui estou há tantos parágrafos a tentar fazer, é nunca conseguir parar.