Os olhos ainda estão a habituar-se à escassa luz que atravessa as cortinas de um quarto e que deixam antever um novo dia lá fora, e à figura deitada na cama e a forma como a sua respiração alterna com um silêncio tranquilo quando – thud – um barulho curto e pesado, como uma pancada ou uma explosão (um tiro?), nos deixa de sobressalto, como se tivéssemos sido apanhados num filme de terror. A figura, primeiro uma sombra escura que aos poucos ganha vida na interpretação de Tilda Swinton, procura encontrar a origem do tal ruído, sem sucesso. A segunda cena do filme decorre num parque de estacionamento, e à medida que a câmara avança lentamente, sucessivos alarmes dos carros começam a disparar, como se estivesse ali uma qualquer presença disruptiva, mas o único testemunho daquele acontecimento é a câmara (ou seja, o espectador). Estes elementos de um mistério por resolver que Memoria (Memória, 2021) vai apresentando evocam um certo cinema de Lynch e Haneke, pela forma como estes conseguem inquietar pela possibilidade da existência de algo imaterial nas margens, que perturba a realidade.

Nunca nos filmes anteriores de Apichatpong Weerasethakul as primeiras cenas foram tão determinantes para nos sensibilizar para o rumo do filme. Mesmo que no seu filme anterior, Rak ti Khon Kaen (Cemitério do Esplendor, 2015), tenha encontrado um realizador próximo do piloto automático, com a repetição de temas familiares e um registo visual muito pouco diferente do que tinha apresentado antes, a verdade é que com Apichatpong apenas podemos assumir que não sabemos o que esperar: falamos do autor de três dos melhores, mais inovativos e imaginativos filmes deste novo século, casos de Sud pralad (Febre Tropical, 2004), Sang sattawat (Síndromas e Um Século, 2006) e Loong Boonmee raleuk chat (O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores, 2010) – desde que entramos na selva em Febre Tropical, que o seu cinema assume um carácter imprevisível, disposto a explorar os caminhos do desconhecido.
A personagem principal de Memoria é uma emigrante escocesa na Colômbia, uma figura deslocada e desamparada, que sofre de uma condição peculiar – o tal barulho que começa por perturbar o seu sono – que influencia o seu modo de percepção da realidade. O seu nome, Jessica Holland, é uma referência directa à personagem enigmática e sonâmbula interpretada por Christine Gordon em I Walked with a Zombie (Zombie, 1943), o clássico de Jacques Tourneur sobre uma mulher num estado de inquietação mental. Aqui, também Jessica parece deslocar-se pelas ruas de Bogotá como um quase-fantasma, mas em vez do estado ausente e do olhar vazio que apoquentava a personagem do filme de Tourneur, a Jessica de Tilda Swinton procura acima de tudo ancorar-se em algo que preencha um vazio existencial e a ajude a compreender a sua condição. Dessa forma, procura a ajuda de um engenheiro de som para ver se este consegue replicar o som que vive na cabeça de Jessica. É uma sequência simples, de apenas dois planos longos numa pequena sala, mas de execução brilhante e empolgante, pela forma como Swinton reage às diferentes hipóteses que lhe são apresentadas, e que no fundo é uma representação do dilema autoral: como descrever uma ideia presente apenas na nossa cabeça, uma visão ou um sonho, de forma a esta ganhar forma, para poder ser partilhada por outros.
O realizador e Tilda Swinton afirmaram em várias entrevistas que o ponto de partida para este filme teria de ser uma combinação entre o desconhecido e o desconfortável, para os obrigar a enfrentar novas ideias e abordagens criativas (daí a localização do filme na Colômbia, território novo para ambos). O som que apoquenta a personagem é a materialização dessa ideia, já que ao pontuar o filme em diferentes momentos inesperados, cria essa sensação de envolvimento sempre presente do desconhecido (e parece comentar quase de forma irónica o próprio ritmo lento do filme, abalando o espectador quando menos espera). Desta forma, este é também o filme mais referencial de Apichatpong, quer em relação ao cinema como meio criativo, quer ao seu próprio universo fílmico: tal como em O Tio Boonmee, a personagem principal é alguém doente, que procura alongar a ligação às pessoas à sua volta; tal como nesse filme, há um ponto fulcral da narrativa que passa pela passagem por uma gruta (aqui, um túnel); a inquietação da personagem principal começa com um problema ligado ao sono, como em Cemitério do Esplendor; e como acontece em Febre Tropical, há a partir de certo ponto um mergulho definitivo na selva, que Apichatpong filma como se estivesse de volta ao verde misterioso do interior da Tailândia.
É comum em sonhos, de uma ou outra forma, ter-se uma experiência de quase morte – poderá este filme ser o seu inverso, uma experiência de quase vida?
Não é apenas aquele som misterioso que nos apresenta uma realidade em que algo parece estar ligeiramente desviado da normalidade, como se Jessica existisse numa espécie de limbo em que a vida parece escapar do seu alcance. É uma estranheza interior que Apichatpong transforma em imagens assombrosas, de vários momentos memoráveis em que enquadra a personagem sozinha em deambulação perante as suas dúvidas. Mas também em pequenos episódios narrativos: Jessica está em Bogotá a visitar a irmã no hospital, que lhe conta um sonho sobre um cão doente; mais tarde, Jessica parece ser perseguida nas ruas por um cão, mas ao mesmo tempo, este parece não a ver, como se um duvidasse da existência do outro. As orquídeas de que Jessica se ocupa profissionalmente estão doentes, infectadas por um vírus desconhecido. Hernán, o engenheiro de som que ajuda Jessica e a acompanha mais tarde noutros momentos, parece desaparecer a certo ponto, sem deixar rasto (uma referência a Antonioni?). Jessica conhece uma arqueóloga (interpretada por Jeanne Balibar), que lhe propõe que a acompanhe numa visita a uma escavação num túnel, e que, mais importante, mostra-lhe um crânio com mais de seis mil anos que apresenta um buraco, resultado de um ritual para expulsar espíritos malignos – será o som que assombra Jessica resultado de algo parecido?
Com a desculpa da visita ao local da escavação, o filme conhece uma metamorfose como as que apenas Apichatpong parece consegue fazer, alterando o registo do filme, depois uma simbólica passagem por um túnel – se em O Tio Boonmee a entrada numa gruta era uma descida ao local onde Boonmee iria morrer, onde este era confrontado com a inevitabilidade da sua efemeridade, em Memoria, essa passagem parece indicar o oposto, como o caminho para a vida, um renascimento ou um encontro com a eternidade. Com a mudança de cenário para o interior, da cidade para as montanhas e selva, o ritmo desacelera, aproximando-se ainda mais do slow cinema, em que a narrativa se torna ainda mais escassa e a duração dos planos aumenta de forma significativa, desconcertante até.

Esta segunda parte do filme ocupa-se apenas de um encontro de Jessica com um homem misterioso, alguém que parece viver numa outra dimensão, como que entre-mundos, e que poderá ser uma outra versão de Hernán, a personagem que antes se tinha eclipsado. Neste (re)encontro entre os dois, que se resume a uma longa conversa ao longo de apenas duas sequências, o primeiro momento junto a um riacho pode ser difícil de acompanhar pela forma como Apichatpong reduz o filme a um minimalismo quase radical, negando ao mesmo tempo qualquer explicação. Porém, o segundo momento deste encontro é algo de sublime, pela forma como Jessica encontra a resolução que procurava, numa espécie de regressão íntima às suas origens e infância. Num plano do rosto de Swinton, ouvimos uma colecção de diferentes sons que parecem espelhar uma espécie de viagem no tempo (entre os sons, ouvimos por exemplo a primeira gravação existente da voz humana e outros momentos representativos da história), numa magistral composição que é reflectida na expressão comovida e comovente da actriz, como se o vazio do limbo fosse substituído pela memória do ventre materno e da natureza.
Uma das poucas coisas de que temos certeza é que a memória é imperfeita, subjectiva e falível, e que nunca é realmente igual à realidade que procura replicar, que não permite voltar a sentir exactamente o que sentimos num dado momento, como se pudesse apenas ser um vestígio da realidade, uma imagem-fantasma do que vivemos; e no entanto, como lembra Apichatpong, é o nosso bem mais precioso, é a nossa história, é a história da humanidade. É comum em sonhos, de uma ou outra forma, ter-se uma experiência de quase morte – poderá este filme ser o seu inverso, uma experiência de quase vida?