Tenho, nas últimas semanas, visto ou revisto diferentes adaptações de Madame Bovary, de Gustave Flaubert. O exercício tem sido particularmente revelador das possibilidades da adaptação de textos literários ao cinema. Defronte do mesmo texto, vários realizadores têm optado por abordagens significativamente distintas desse retrato de uma mulher aborrecida com a vida no campo e que, para ocupar o tempo, se dedica à leitura de romances, ao sexo, e a vestir as últimas tendências da moda. Em particular, detive-me nas três adaptações que estrearam entre 1989 e 1993: Spasi i sokhrani (Save and Protect), de Aleksandr Sokurov; Madame Bovary (1991), de Claude Chabrol; e Vale Abraão (1993), Manoel de Oliveira – ainda que este último seja uma adaptação treslida por Agustina Bessa-Luís. Estes três filmes funcionam, de formas enigmáticas (e que não podia antecipar), como candeias que se iluminam mutuamente. Por contraste, ou por afinidade, os filmes revelam o que nos outros estava em falta, ou reforçam o que os outros já haviam sublinhado. Por exemplo, veja-se o modo como Sokurov leva ao extremo da histeria as fantasias românticas de Emma, ao passo que Chabrol lhes procura dar sustentação dramática, enquanto que para Oliveira não há já qualquer psicologia, e tudo se faz de pura sagacidade verbal – vulgo, elegante maledicência.
Imbuído deste espírito comparatista, fui ver – porque nunca tinha sequer ouvido falar dele – Nightmare Alley (O Beco das Almas Perdidas, 1947), de Edmund Goulding, a versão noir do romance homónimo de William Lindsay Gresham que Guillermo del Toro agora adaptou ao cinema. Vistas em dias consecutivos, a versão de 1947 e a de 2021 produziram um semelhante efeito de ressonância. Só que, ao contrário da novela de Flaubert, que é uma obra canónica da modernidade, crítica meta-literária do romantismo e marco histórico e jurídico, a obra de Lindsay Gresham não partilha desse entendimento coletivo e dessa integração na cultura popular, pelo que a liberdade da adaptação é necessariamente menor. Del Toro não podia tratar deste texto do mesmo modo apropriativo e reformulador com que o fizeram Sokurov e Oliveira (que transladaram a ação do romance para os seus respetivos países, preocupando-se em fazer comentários políticos sobre uma certa noção de periferia; aspeto comum a esses extremos continentais que são a Rússia e Portugal). Mas não podia mesmo?
Primeiro, não se pode afirmar que Guillermo del Toro tenha sido exatamente fiel ao livro. A sequência de abertura, que depois ponturará o filme em modo de flashback, é um acrescento narrativo onde se procura explicitar o passado conturbado do protagonista e, de algum modo, justificar, freudianamente, as suas atitudes (algo que vai ao encontro do tom psicanalítico do romance, filho dessa moda que tomou de assalto quase toda a produção artística dos anos 1940). Segundo, ao nível do pormenor, Del Toro introduz uma série de elementos de violência gráfica e de desfiguração física que se tornaram, entretanto, em imagens de marca do seu cinema de cariz grotesco. É disso exemplo o súbito interesse por fetos conservados em formol, ou o pendor para o gore, que se instala logo na primeira sequência em que se introduz a personagem do geek. Aliás, este é um aspeto bastante revelador das diferentes atitudes (e dos diferentes contextos de produção e épocas) que caracterizam os filmes de Goulding e Del Toro. O primeiro nunca exibe claramente o geek, dá-lo sempre através de foras de campo ou de planos gerais muitos abertos (certamente devido à ação do código Hays). Já o realizador mexicano praticamente abre o seu filme com um grande plano de um homem perturbado que arranca a cabeça de uma galinha à dentada, pintando-se de sangue vermelho escuro.
Mas isto são questões superficiais: mais corante vermelho aqui, menos talha dourada acolá. Na substância os filmes são muito próximos (e ambos muito próximos do livro). A história é em tudo idêntica, a caracterização das personagens não se distingue particularmente, até mesmo a elegância da câmara que se saracoteia por entre as diferentes atrações da feira se parece. O que muda, afinal? O tempo tudo muda. Em 1947 o noir era um género cinematográfico vivo e pululante, em 2021 o noir é um fetiche nostálgico. Só que Del Toro nunca assume verdadeiramente a dimensão carnavalesca do seu Nightmare Alley. Estão lá as múltiplas citações clássicas – a Spellbound (A Casa Encantada, 1945), The Third Man (O Terceiro Homem, 1949), X: The Man with the X-Ray Eyes (O Homem com Raios X nos Olhos, 1963) -, mas isso nunca chega aos calcanhares do carrossel necro-cinéfilo que era The Good German (O Bom Alemão, 2006), de Steven Soderbergh. Está lá a atmosfera, mas falta-lhe o pathos que, por exemplo, Scorsese consegue nas suas mastigações historiográficas. Está lá a tensão, mas falta-lhe a precisão glaciar com que Fincher (re)compõem o drama segundo os espartilhados códigos fílmicos.
É triste e até perturbador perceber que Del Toro está a seguir, paulatinamente, o mesmo caminho que levou Tim Burton à irrelevância.
Ao longo dos últimos anos, Guillermo del Toro vem-se dedicando (e especializando) a estas homenagens cinéfilas. Depois do sucesso do seu neo-Kaiju ocidental, Pacific Rim (Batalha do Pacífico, 2013), filmou um excelente filme neo-gótico, Crimson Peak (A Colina Vermelha, 2015), um neo-Monter-movie à la Universal, The Shape of Water (A Forma da Água, 2017), e produziu os deliciosos Scary Stories to Tell in the Dark (Histórias Assustadoras Para Contar no Escuro, 2019), regresso ao cinema de terror dos anos 1980 com toda a gosma a que se tinha direito, e a nova adaptação de The Witches (As Bruxas de Roald Dahl, 2020), recuperação do cinema fantástico para toda a família com salpicos de splatstick perverso (que, ousadia, das ousadia, é capaz de ser bem melhor que a versão de Nicolas Roeg). Mas a cada filme (dos que realizou), Del Toro vem perdendo fulgor – refiro-me, naturalmente, à sua fase consagrada, pós-El laberinto del fauno (O Labirinto do Fauno, 2006). Progressivamente tem sido possível assistir a um processo de disneyficação do seu olhar: cada vez mais anónimo e mais reduzido a pequenos apontamentos autorais decorativos (espera-se, por isso, o pior da sua “versão negra” do Pinocchio). É triste e até perturbador perceber que Del Toro está a seguir, paulatinamente, o mesmo caminho que levou Tim Burton à irrelevância.
Nightmare Alley (Beco das Almas Perdidas, 2021) é a cristalização desse processo. E a justaposição das duas versão só me permitiu confirmar essa ideia. Apesar de todas as restrições censórias e culturais dos anos 1940, o filme de Goulding é sobejamente mais sujo, mais dorido e mais perturbado que esta nova adaptação – “negra” apenas nos remates sanguíneos. E tudo se prende com a personagem principal e o ator que a interpreta: Tyrone Power, antes, Bradley Cooper, agora. O Stanton Carlisle de Power é uma figura manipuladora, traiçoeira, egocêntrica e gananciosa, daí que o arco clássico de ascensão e queda que o encaminha à ruína seja uma parábola moral muito típica do pós-guerra. Porém, o happy ending imposto pelo estúdio é, feitas as contas, muito mais cruel que o final “realista” do livro, que Del Toro e Cooper reproduzem através de uma citação à famosa cena do riso de The Unknown (O Homem sem Braços, 1927), de Tod Browning. Só que Bradley Cooper não é Lon Chaney. Ele é um dos america’s sweetheart e, como tal, o seu Stanton Carlisle é, apesar de todas as suas maldades, um homem sofrido e abandonado que deseja o reconhecimento, custe o que custar. É, no fundo, um homem cuja bondade está mascarada pelas agruras da vida (o que é já um dos mais batidos lugares comuns das revisitações contemporâneas dos clássicos da Disney, onde já nenhum vilão é assim tão vil, nem tão porco, nem tão mau). Essa necessidade de afagar a personagem, de complexificar o seu passado e de a tornar mais empática está no cerne do processo de caramelização que vem recobrindo o trabalho recente de Guillermo del Toro.
Mais, a novela de Lindsay Gresham tem uma dimensão política subliminar que Del Toro desbarata (por oposição à versão de 1947, que a destaca), no modo como se apresenta enquanto “cautionary tale”, não tanto para os sonhos de grandeza americana, mas especialmente como aviso face a essas criaturas bem falantes que ocupam o espaço público: sejam pastores religiosos, políticos populistas ou jornalistas mediáticos. Todo o romance reforça essa noção de que o mentalista se convence dos seus poderes e, levado pelas hordas de seguidores, se equipara a deus. E por isso, e só por isso, é julgado pelo destino. Não podia ser este Stanton Carlisle um avatar da extrema-direita americana? Não podia Del Toro ter aproveitado a deixa para pensar a cultura de massas, a manipulação digital e o descaminho alienado contemporâneo? Podia, mas não o fez. À força de “enriquecer” o protagonista, a metáfora desfaz-se com a concretude da personagem e com a interpretação simpática de Cooper, enquanto que o papel de Tyrone Power, qual arquétipo do homem comum, encontra na sua universalidade a sua potência crítica.
De qualquer modo, ambos os filmes são falhos na relação com o livro. Isto porque nenhum parece ter compreendido verdadeiramente a força conceptual da história de Lindsay Gresham. Este retrato de um animador de feira que faz tudo por tudo para aceder ao estrelato, chegando a atuar nos mais conceituados casinos, desenvolve-se em torno de um código de palavras que permite ao artista comunicar com a sua assistente de modo impercetível para a assistência, usando as palavras do quotidiano. Este código, que vale a uma fortuna – dizem-nos -, literaliza o poder subliminar das palavras. E a ruína do protagonista acontece quando o seu discurso mediúnico chega ao limite e surge a necessidade de lhe dar uma matéria. Quando as palavras não bastam e os crentes precisam, como São Tomé, de ver para crer, a torre de marfim desmorona-se. Há, portanto, uma dimensão meta-adaptativa (isto é, uma reflexão sobre a impossibilidade epistémica do processo de apropriação visual do texto) que os dois filmes desaproveitam. Ou seja, o romance acaba por ser uma meditação sobre o poder e o limite da palavra, mas nenhum dos filmes denota isso (nem nenhum dos filmes pensa o poder e os limites da imagem – que seria o passo natural). Face a isto fico a pensar: como seria a adaptação deste Nightmare Alley por Jean-Marie Straub ou Eugène Green?