John Frankenheimer realizou Prophecy (A Profecia, 1979) com um argumento de David Seltzer, o mesmo responsável pelo script de The Omen (O Génio do Mal, 1976), e a reacção que suscitou vinha revelar, entre outras coisas, pouco sentido de humor e incapacidade de reconhecer, com o devido distanciamento, a audácia formal e narrativa do que estava a ser apresentado. Será descartado, com escárnio, pela crítica, fará pouco dinheiro no boxoffice, mas a verdade é que Prophecy foi lentamente acumulando seguidores, tornando-se uma espécie de cult movie da autoria de um realizador de prestígio associado, até então, a alegorias políticas, de ficção científica, tais como The Manchurian Candidate (O Candidato da Manchúria, 1962) e Seconds (Uma Segunda Vida, 1966). Há um lado clean e sério nestes “grandes clássicos” que, por comparação com Prophecy, me leva de novo a achar que a crítica em geral resiste demasiado à dimensão lúdica e ao jogo inteligente com clichés que o cinema de género deve e tem vindo a propiciar entre alguns mestres reconhecidos de um certo camp horror, de Jack Arnold e William Castle a Dario Argento e ao mais recente James Wan.
Uma das coisas que tenho observado na cinefilia dos dias de hoje é uma fraca capacidade para assumir uma das boas conquistas da nova sensibilidade moderna, teorizada, entre outros, por Susan Sontag, e que se prende com o gosto pelo excessivo, pelo grotesco e pelo aberrante. O caso paradigmático para mim é a incompreensão que uma obra como Malignant (Maligno, 2021) de James Wan tem gerado, um filme que sintetiza esse velho espírito de brincar de maneira franca – sem ironias “espertalhonas” e muito “meta” – com os clichés do género do horror, chamando a si tudo o que é potencialmente ridículo e deslocado para, no fim, explodir, na sua própria pele, sob a forma de um action monster movie, deixando à volta de si os restos de um desajeitado giallo estilo VOD à la Tobe Hooper, com maus actores, realização barroca e fotografia esquálida. A equação complexa “do baixo” pode, efectivamente, gerar a instância do sublime (mesmo que seja o “sublime trash“, vide o genial Multiple Maniacs [1970] de John Waters), ainda que tudo isto requeira, claro está, uma mão magistral, que saiba combinar a tal nova sensibilidade (estética e crítica) com uma pesquisa muito bem feita numa certa região da história do cinema.
Vou insistir na comparação, que me parece útil neste caso, porque, de facto, o filme de Wan é um monster movie que se vai construindo em camadas, a partir de alguns assuntos da ordem do dia, começando pelo problema da saúde mental e terminando – com estrondo – na conclusão de que todo o horror poderia ter sido evitado se mais um caso de violência doméstica não tivesse acontecido. Prophecy é um filme que, qual super-produção envolta em campiness, também encarava um problema que começava a tornar-se demasiado grande, pedindo uma resposta cada vez mais urgente de “we, the people”, e que se prendia – e infelizmente ainda prende – com a crise climática. Frankenheimer vai mais longe por procurar causas históricas e políticas para essa mesma crise, associando à destruição das florestas o genocídio índio, o que só torna Prophecy, na sua equação política, um título ainda mais actual (“profético” até): na raiz da crise ambiental está, enfim, a má consciência do Homem branco em face ao “nascimento da nação” americana, cuja sociedade de consumo desenfreado e imoral surgiu como uma espécie de segunda demão que vinha distrair a “inscrição” ou tomada de consciência desse horrífico holocausto perpetrado contra quem antes vivia na e da terra, em plena sintonia com os ritmos e segredos profundos da Natureza: a comunidade nativo-americana. O salto para a questão global da destruição do Planeta Terra, resultante da incúria dos seus habitantes, é feito sobre uma questão muito bem identificada neste filme, mas, digamos assim, o argumento desenrola-se numa descida lenta à floresta do Maine, colocando num patamar comum, por um lado, o problema da poluição dos rios e do abate de árvores e, por outro, a perseguição bárbara aos índios, já não muitos, que resistem como podem.
Há um excesso de argumentos, políticos, científicos, dramáticos, que Frankenheimer gere de forma leve, mas não ligeira, transformando, no fim, o “problema da maternidade” num motivo que permite amainar o delírio e dar substância ao horror show final.
Quem vai cosendo toda esta parábola sci-fi ambientalista é o protagonista, interpretado maravilhosamente por Robert Foxworth. A ligar as pontas desta grande “narrativa global” está um médico com vontade de mudar o mundo, de o tornar “habitável” para todos, independentemente do tom da pele – chega a comparar as condições dos índios na floresta às dos negros nos bairros pestíferos da cidade. Ao mesmo tempo, numa outra reviravolta, digamos assim, metafísica, há a questão íntima que mina a vida a dois, entre o médico e a sua mulher. Os dois dividem opiniões quanto à possibilidade de trazerem ou não uma criança a este mundo. A mulher, interpretada por Talia Shire, diz que está na hora e encosta o marido à parede. A viagem ao Maine será um pouco de tudo: uma expedição simultaneamente científica, política e ainda sentimental. Foxworth vai recolhendo informação até descobrir a origem de um estranho surto na Natureza, que afecta a vida animal mas que também aflige a população nativa. As “setas”, digamos assim, vêm de vários sítios ao mesmo tempo. Há um excesso de argumentos, políticos, científicos, dramáticos, que Frankenheimer gere de forma leve, mas não ligeira, transformando, no fim, o “problema da maternidade” num motivo que permite amainar o delírio e dar substância ao horror show final.
Leonard Maltin terá escrito que o grande monstro do filme se parece com um “salsichão gigante”. De facto, até nos anos 50, por exemplo em filmes de Jack Arnold, mas, antes disso, nos “monstros da Universal”, víramos criações mais convincentes e assustadoras. Frankenheimer realizou dois monster movies, este e o infame The Island of Dr. Moreau (A Ilha do Dr. Moreau, 1996), pelo que não se pode dizer que esta seja uma grande especialidade deste realizador. No entanto, nos toscos practical effects encontro um aspecto que acaba por resultar e que se prende exactamente com a tradição de filmes como King Kong (1933): a sensação de que o boneco ao jeito de um “salsichão gigante” era providencial para dimensionar o lado gritante – quase “delirante” – da ameaça. Hoje em dia, com o CGI e a quase total ausência de conteúdo humano em vários filmes do “super” mainstream, monstros maciços, feitos de gesso ou lixo, como uma escultura de Bordalo II, fazem com que o “ridículo divertido” de ontem seja encarado hoje como algo significativamente mais horrífico, por participar de uma espécie de existência, concretude feita de porcaria e viscosidades bem reais. Um monstro/boneco vindo dos rios intoxicados pelo mercúrio? Sim, em certa medida Frankenheimer encontrou na matéria trashy do seu monstro uma espécie de “ecrã” para o absurdo (estilo “rir para não chorar”) de tudo aquilo que denuncia.
O realizador está ciente destes, repito o termo, “excessos” quando encena, no meio da confusão final, uma espécie de Pietà particularmente inquietante, capaz de criar uma ligação directa, empática, entre o Homem e o animal, um e outro de igual modo bestializados por uma economia guiada pelo lucro e pelo ódio racista. A mesma que se arrisca a não deixar pedra sobre pedra. É só pena que Frankenheimer, cineasta imperfeito, não tenha desenvolvido a história do casal longe da paisagem exótica, respondendo à questão: como lidar “em casa” com essa Natureza tóxica e violentada que se esconde no ventre da mulher? De qualquer modo, Kiyoshi Kurosawa e Stephen King têm razão: Prophecy é um filme a recuperar e, acrescento eu enfaticamente, um filme para os nossos dias.