É praticamente um cliché mencionar a repelência com que os escritores, especialmente os mais idolatrados, vêem a sua escrita. Não só porque é a sua e logicamente um despir público do que até ali era só interior, mas porque o processo de transformar palavras em texto corrido, claro e desenvolto o suficiente para ser compreendido, é também o de enfrentar a perda antes de alguma vez a alcançar. É difícil encontrar uma catarse, mesmo após publicação. O medo nunca se esbate. E a falta de controlo que o escritor exerce sobre todo o processo é tão desolador como a falta de controlo que um jovem, na cúspide da idade adulta, tem sobre o seu caminho dali em diante. Em ambas situações, há um desejo incontrolável de saltar para um outro início, um recomeçar de raiz, e de uma só vez. “É aqui que tudo começa”, diz Phillip (Anders Danielsen Lie) ao seu amigo Erik (Espen Klouman Høiner) na estreia de Joachim Trier no cinema. Manuscritos na mão, prontos a serem enviados pela caixa de correio vermelha que se encontra entre eles, ali começaria o futuro. Seriam escritores publicados depois de os envelopes chegarem ao seu destino. Ou talvez não. O que o jovem escritor ainda não sabe é que não há só um ponto de partida e um ponto de chegada. Há vários ao longo do tempo, que eventualmente lá se intercalam até se tornarem irreconhecíveis.
Antes dos pulsares melancólicos que Oslo, 31. august (Oslo, 31 de Agosto, 2011) via serem reflectidos pelo mundo, Joachim Trier tinha realizado Reprise (2006), uma primeira obra luminosa, ainda que pobremente analisada, onde já se desenrolam com confiança os vários motifs existenciais que Trier viria a aprofundar. Ambição, memória, identidade. E amor, claro. É difícil olhar para Reprise agora, a sua primeira íntima meditação, sem ver essa análise ser manchada pelo trabalho que veio depois. Especialmente sabendo que foi por cima dos alicerces deste começo que a nostalgia do seu ethos se veio a misturar com a poesia punk que, por sua vez, o eternizou como uma das vozes europeias mais refrescantes do século XXI.
Assim o diz o seu mais recente filme, Verdens verste menneske (A Pior Pessoa do Mundo, 2021), talvez o mais louvado pela crítica e público de igual forma, que dá por concluída a chamada de “Trilogia de Oslo” – da qual também fazem parte as longa-metragens mencionadas em cima – e que mantém, em estrutura e electricidade, o instinto criativo que Reprise arrancava e trazia para primeiro plano. Numa conversa no passado mês de Dezembro com Eskil Vogt, o co-argumentista de todos os filmes de Trier, este falava-me de que tinham desejado voltar a um formato mais literário que explora as suas personagens ao longo do tempo, em vez de repousar apenas com elas de forma episódica. “Se Reprise foi assim tão formativo para ti, conseguirás reconhecer muitos dos seus sinais neste último. Há vestígios dele que ainda persistem”, segredou-me. A viagem que Julie realiza em Verdens verste menneske pode ter diferentes puxares que aqueles de Phillip e Erik em Reprise, mas na sua génese está o compreender a ser humano que percorre toda a obra do realizador até agora.
Tal como o título indica, Reprise é sobre o desejo que a repetição guarda de refazer tudo outra vez, corrigir e melhorar, ou até voltar ao início. No seu centro, estão duas personagens, dois amigos escritores de 20 e tal anos que querem ver o seu trabalho publicado. Noutras palavras, validado por quem o consiga fazer. Escreveram os seus manuscritos e na sequência inicial do filme tentam combater a ansiedade de os enviar. Esta aparece-nos em forma de tangente relativamente cómica, ainda que agridoce, que segue o cair dos manuscritos na caixa de correio. Ao desenrolar tudo o que poderia-ter-acontecido-mas-não-aconteceu, conduzido ao ritmo e sabor de um lançar de foguetes, suspende logo um contar pela parte do filme. Uma espécie de consciência cinética salta do ecrã, emprestada do formalismo da Nouvelle Vague francesa. Pensar em Jules et Jim (Jules e Jim, 1962) enquanto referência parece pedir muito deste momento tão inicial, mas a narração na terceira pessoa e a voz-off que dela existe juntamente com a colagem de momentos que fazem do futuro de dois escritores bem sucedidos realidade – recortes de jornais, momentos de erupção pós-fama – parecem justificá-la plenamente.
Não é, de facto, sobre nós. É sobre como se manifesta visualmente um instinto que vive dentro daqueles que só existem se e quando criam, e como tal travessia, à qual a literatura se dá há tantos séculos, pode ser perscrutada no cinema.
A literatura vive tanto nas personagens de Trier como o seu filme. Entrecortado com uma outra sequência que vê os créditos iniciais amplamente apresentados, o espaço a que Trier nos convida para navegar é um de centrifugação de não só ideias, mas também sensações. A sua textura é a das colagens artísticas que tão bem descrevem a ambição, mascarada de filme sobre a amizade. Quando o cartão de “Seis Meses Mais Tarde” dá de si, com ainda nem 10 minutos passados, e vê Erik e os amigos a caminho da clínica onde um doente Phillip terá alta, tudo é possível de acontecer. Não há travões visíveis. Os próprios personagens podem até ser os escritores das suas próprias narrativas.
Trier não exclui possibilidades. E não é como se precisássemos de nos situar, especialmente não tão cedo, quando as personagens ainda não tiveram tempo para ser localizadas aos olhos de quem não as conhece ou escreveu. Mas também não é como se Trier quisesse entranhar o espectador nelas. O que temos à nossa frente não é um reflexo de quem somos. Não é, de facto, sobre nós. É sobre como se manifesta visualmente um instinto que vive dentro daqueles que só existem se e quando criam, e como tal travessia, à qual a literatura se dá há tantos séculos, pode ser perscrutada no cinema. Enquanto filme, desenvolve a sua muito clara premissa, através de digressões exteriores absortas ao envolvimento que dentro de si mesmo continua a acontecer. O presente é não-vivido e procura incessantemente replicar o passado feliz. Mas, enquanto sentimento, o filme é infinito e profundo, e espelha os seus protagonistas na cidade tristonha, composta pela luz do crepúsculo e a iluminação diurna dos seus candeeiros de rua.
O que sucede a saltitante sequência inicial em nada lhe iguala. Phillip é publicado e apaixona-se por Kari (Viktoria Winge) perdidamente, amor este que provoca uma obsessão de onde nasce o seu colapso mental, amarrando-o à glória do passado tão recente. Erik é publicado só bem mais tarde, mantendo-se até lá na vida do amigo, entre os vais-e-vens da existência deste último. O não reconhecimento de Phillip ao espelho prende Erik enquanto traço do passado, o único que sabe o que se encontra por trás daquela fotografia preta colada na parede. Uma lembrança para ambos de quem já foram, e quem nunca serão outra vez, por mais que tentem. Oslo continua, no entanto, ali e, vista de fora, parece não ter mudado. Tal como acontece quando de repente somos empurrados para a idade adulta – é sempre um empurrão, nunca um mergulho -, sonhar de olhos abertos torna-se ilusório, mas também o único curativo disponível. É-nos subitamente pedido algo concreto, ciente de si mesmo. E tudo o que tanto Phillip como Erik podem oferecer é um reviver, sempre em fuga da inquietante auto-dúvida que alastra tudo o que toca.
Nas linhas da frente da masculinidade e como esta acaba espremida, a amizade que une Erik a Phillip e os dois aos restantes amigos alia-os a uma cronologia e sucessão de eventos que só eles conhecem. Os relevos emocionais desta alteram a sua temporalidade. Os dois amigos continuam a querer ser alguém. Mas o que é que isso significa? Querem ser reconhecidos enquanto produtores. Nessa produção, habita o nervo do controlo sobre as coisas. A criação de nós mesmos primeiro e depois, mais à frente, esse caminho que se desenrola. Aquele tal intercalar até ao infinito de pontos de partida e chegada. As divergentes estradas que Erik e Phillip acabam por percorrer em nada os pára de ainda se reconhecerem um no outro. A amizade também é a companhia. Mas o ritmo que tilinta em Reprise não se dá propriamente à promessa do futuro. O acontecer do filme torna-se cada vez mais silencioso com o passar do tempo. E é dele que ressoa a sua sabedoria. Enquanto Phillip tenta recriar a viagem a Paris com Kari, e ainda consegue que o seu contar decrescente de 10 a 0 comande uma ideia do controlo que ele tem sobre aquilo que lhe acontece, Erik descobre que precisa de sair de Oslo.
Escondido num filme sobre a instabilidade do chão pisado que é viver os nossos 20 anos, especialmente enquanto escritores, encontra-se a procura da assim chamada “voz” literária, um processo estagnante quando todos os vestígios do nosso passado continuam tão próximos de nós. A triste história do rapaz com quem andamos na escola, regressado a Oslo dos EUA, que vemos no parque a correr. Ou a recaída de Phillip que, a uma determinada altura, volta a ser hospitalizado. Em Reprise, está sempre e também um retrato ligeiramente estilizado ainda que refinado, da necessidade de sair de si mesmo, sair da versão até ali construída. E Trier conclui a sua reflexão sublinhando essa inesperada necessidade, dando a Erik a fantasia pela qual tanto anseia.
O último acto do filme é assim como que oferecido a Erik, para que imagine um futuro que mais uma vez, poderia-ter-acontecido-mas-não-aconteceu. Este agradece a liberdade e começa por trocar Oslo por Paris – onde viver para escrever se não lá? – usando a sua vida em prol do que acaba no papel. Modesto e delicado, imagina que aprende a exprimir-se melhor enquanto escritor e não só enquanto o rapaz inseguro que queria mais do que tudo tentar ser um. Volta a reunir-se com Phillip, que, por outro lado, pára de escrever, mas não deixa de lado a possibilidade de voltar a fazê-lo. Escrever para ele é ainda o processo do “fazer acontecer”, tomar controlo sobre o incontrolável. Mas, seja por medo ou não, aquele instinto revigorante de escrever pela noite fora associa-se à sua obsessão. A ele, a vida obrigou a conter esse fogo de artifício, engarrafando-o. Entre os dois, permanecem as memórias de um momento na vida onde tudo parecia ter um começo.
“É aqui que tudo começa”, dizia Phillip no início. Regressado para o casamento de um dos amigos, Erik vê Phillip contar-lhe a triste notícia do suicídio do escritor que inspirou as carreiras de ambos, imortalizado para sempre naquela foto preta tirada por Erik que, para outros, não passaria de só mais um momento apagado ou talvez danificado das suas vidas. Ainda sobre o efeito do argumento que Trier deu a Erik para compôr, fica no ar a noção quase líquida de que escrever também é deixar as coisas acontecerem para que a vida se torne suportável o suficiente para ser maleável outra vez. Mas mais importante que isso, é o acto de não saber ser adulto. Não querer. Não aceitar o desfoque de tal transformação. E Erik, ao contrário de Phillip, poderia, naquele limbo, só continuar a adiar essa passagem. No eventual repelir do seu trabalho, estaria uma versão sua que podia escolher rejeitar, para assim começar de novo com cada livro.
Reprise permanece o filme mais discreto do realizador. Nele, precisamos de nos deitar para lhe vermos as veias mais salientes, escondidas até e especialmente nas passagens mais tocantes. Talvez seja por isso que na luta que todos travamos entre o nosso passado e presente, e como os distinguir, este seu filme e a apaixonada cinefilia que nele efervesce faz aquilo que a literatura consegue replicar tão livremente. Comanda a sua autoridade sem nunca a exigir.
Reprise (2006) está agora disponível na plataforma Netflix.