Foi a pensar em Hitchcock que Carpenter fez o telefilme Someone’s Watching Me! (Alguém Anda a Espiar-me, 1978). Fez, nos anos 70, aquilo que Brian De Palma experimentou fazer no subvalorizado pastiche quase algorítmico Body Double (Testemunha de um Crime, 1984): transformar o filme em espaço de convocações hitchcockianas [Blackmail (Chantagem, 1929) + Rear Window (Janela Indiscreta, 1954) + Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958) +…], postas “em abismo” em cada sequência, décor, adereço, sugestão de câmara…

O “fora de campo” é, naturalmente, rei aqui – já o era, entenda-se, no ultra-conceptual, mais ainda que The Birds (Pássaros, 1963), Halloween (Regresso do Mal, 1978). Uma mulher é assediada por um peeping tom invisível. Saber que está a ser vigiada por um vizinho de um dos prédios da frente não a ajuda na captura do “assediador”, porque estamos em L.A., numa paisagem formada por grandes blocos de betão e vidro. Janelas defronte a janelas, janelas que convidam ao voyeurismo mais primário que corre nas veias de qualquer (?) homem solitário.
Incrível como Carpenter, num projecto para televisão, vai mais longe que De Palma em Body Double. Leigh Michaels, a personagem feminina, é uma realizadora de televisão – profissão nada inocente, como veremos – que é perseguida pelo olhar indiscreto de um homem anónimo, que lhe envia presentes e cartas com o carimbo de uma agência de viagens-fantasma. A tensão vai-se avolumando à medida que Leigh cola os fragmentos, isto é, toma nota da insistência compulsiva do remetente anónimo e das chamadas estranhas que tem recebido. Em suma, estamos aqui na presença de uma espécie de Janela Indiscreta invertida, visto que a perspectiva que o filme adopta é a de “quem é visto” e não a do voyeur.
É quase um “gato-rato” entre quem vê e quem é visto, situação incómoda, tão ameaçadora quanto aviltante, para uma mulher, ainda mais para uma realizadora…
Outro elemento fundamental na intriga é a personalidade de Leigh: não é a típica barbie histérica dos slashers da praxe; Leigh (excelente Lauren Hutton) é uma mulher independente, “de iniciativa”, com um sentido de humor muito próprio, que esta tem como pouco atraente para os homens – talvez se tenha habituado a seduzir e não a ser seduzida. É uma “mulher à Carpenter”, portanto. Ou seja, é uma mulher que tem pouco que ver com o cinema americano de terror (dir-se-ia que é mais uma mulher da “Nova Hollywood”, de Coppola, Friedkin, Scorsese ou Bogdanovich). Por isso, perante a inoperância das autoridades, tomamos como natural a iniciativa que Leigh toma de ir de faca em punho acertar contas com o assediador – e também tomamos como natural que o seu namorado e amiga não procurem demovê-la de tão incauta inciativa.

O que alimenta este filme de Carpenter é então o jogo de forças entre vítima (mulher activa e temerária) e agressor (passivo na agressão, um cobarde como todos os peeping toms…); ou melhor, é “a forma como este jogo é jogado”. É quase um “gato-rato” entre quem vê e quem é visto, situação incómoda, tão ameaçadora quanto aviltante, para uma mulher, ainda mais para uma realizadora… A violação é dupla, portanto, apesar de, mesmo sendo dupla, nunca se consumar fisicamente, nem consta que se “queira” consumada dessa forma pelo agressor.
Quem realiza este filme é o agressor (o homem invisível, que grava a acção da vítima, toma nota de cada uma das suas movimentações e a “dirige” virtualmente até ao seu encontro… tal como um TV Director) até que a vítima reclame a posição que é sua por direito próprio. A certa altura Leigh diz: “por estes dias até me esqueço que sou realizadora”. A partir daí o caldo está entornado para o assediador: Leigh quer a sua vida pessoal, mas acima de tudo a sua vida profissional de volta. Leigh está farta e, por isso, está mais do que disposta a assumir daí em diante a condução deste filme. Soberanamente.