O filme de Tom McCarthy abre na cidade que lhe serve de título, a décima em termos de densidade populacional do estado do Oklahoma. Bill Baker (Matt Damon, na que deve ser a sua melhor interpretação de sempre) ocupa-se da remoção do entulho de casas destruídas por um tornado e quando regressa de mais um dia de trabalho, alguém dos outros ocupantes da carrinha pergunta se as pessoas que ali viviam alguma vez regressarão para as casas reconstruídas, ao que outro responde afirmativamente, uma vez que os americanos, a seu ver (trata-se de um operário hispânico a falar), gostam pouco de mudanças. É sobre esta América profunda e a gente que nela vive, o filme de McCarthy. E o seu tema principal é o da mudança, no que estabelece desde logo um contraste com o título: still-water (água estagnada).
A importância da mudança oferece-nos mais de uma leitura. Bill Baker tem averbado no passaporte as constantes deslocações à cidade de Marselha (França), onde a filha cumpre a pena de nove anos por homicídio de uma namorada. A diferença é que os acontecimentos desta vez levarão a que ele lá permaneça vários meses (um boato dá pistas que podem levar à reabertura do processo e conduzir à libertação da rapariga), regressando Bill aos Estados Unidos no final como um homem transformado. Essa mudança só será possível porque ele se abriu à possibilidade de uma nova vida, ao lado de Virginie (Camille Cottin) e da sua filha Maya. Aquele homem que usa sempre roupas idênticas, o mesmo tipo de expressões, que parece imperturbável na sua identidade de roughneck (americano de baixo índice cultural que se dedica a trabalhos pesados), vai adaptar-se a uma existência inesperada, num novo continente, e junto de uma outra família que representa para si a possibilidade de fazer as coisas bem dessa vez.
O cinema de de Tom McCarthy, middle-of-the-road e adulto, interessa-se por boas histórias e pela cuidada caracterização de todas as personagens envolvidas.
Mas o tema da mudança tem igualmente uma interpretação política, ou não fosse o filme de Tom McCarthy um descendente do cinema liberal norte-americano das décadas de 1960 (finais) e 70. Isso vê-se bem no seu tom desencantado, sobretudo quando olha para o próprio país; na sua preocupação em dar retratos de gente comum, que não deixa de ser comum perante circunstâncias dramáticas extraordinárias; e sobretudo no propósito de reparar um sentido de patriotismo liberto de mentiras e falsos heroísmos. Se admitirmos, como as personagens principais do filme (Bill e a filha Allison) o fazem, que a vida é “brutal”, nos obstáculos que a todos coloca, podemos iniciar a aceitação de quem somos e do que nos acontece.
Tom McCarthy não se poderá medir com o melhor Clint Eastwood [que desta geografia retirou o seu American Sniper (Sniper Americano, 2014)] ou o melhor Bob Rafelson [que contextualizou no trabalho da extracção de petróleo em solo americano, a parte inicial de Five Easy Pieces (Destinos Opostos, de 1970)], mas o seu cinema middle-of-the-road e adulto interessa-se por boas histórias e pela cuidada caracterização de todas as personagens envolvidas. McCarthy não foi a Marselha para se deslumbrar com os contrastes entre a América branca e a Europa multirracial (apesar de estes estarem no filme).
Stillwater é uma obra que usa a sua modéstia e honestidade para filmar o processo de transformação de um indivíduo, que ao regressar a casa terá uma visão diferente sobre a vida e o espaço que o rodeia, não porque estes tenham mudado mas porque foi ele que se tornou num homem diferente. E assim Tom McCarthy também aproxima as duas Américas, a mais progressista e a mais conservadora, que convergem na identidade transformada de Bill Baker.
Stillwater está disponível para visionamento em plataformas de aluguer on-demand, tais como MEO e Vodafone.