Daydream delusion, limousine eyelash / Oh baby with your pretty face / Drop a tear in my wineglass / Look at those big eyes / See what you mean to me / Sweet-cakes and milkshakes / I’m a delusion angel / I’m a fantasy parade / I want you to know what I think / Don’t want you to guess anymore / You have no idea where I came from / We have no idea where we’re going / Lodged in life / Like branches in a river/ Flowing downstream / Caught in the current / I carry you / You’ll carry me / That’s how it could be / Don’t you know me? / Don’t you know me by now?
Before Sunrise (Antes do Amanhecer, 1995) de Richard Linklater
De todos os filmes realizados por Vincente Minnelli, The Clock (A Hora da Saudade, 1945) é talvez aquele que mais se afasta do cinema que normalmente associamos a este cineasta: não se trata de uma comédia musical onírica e espectacular, nem de uma grande produção com um elenco de luxo, filmado num magnífico Technicolor, mas de um singelo melodrama a preto e branco, que diríamos antecipar o estilo sóbrio do neo-realismo italiano. Apesar de ser realizado em estúdio (tendo para isso sido minuciosamente reconstituídos vários cenários emblemáticos de Nova Iorque), The Clock destoa da restante filmografia de Minnelli pela mise en scène despojada de artifícios e pelo olhar quase documental sobre a arquitetura moderna e os movimentos urbanos. Ainda assim, este filme explora um dos temas de predileção do cineasta: um encontro ocasional entre dois desconhecidos cria momentaneamente a ilusão de que são capazes de parar o tempo.
Início dos anos 40, em plena Segunda Guerra Mundial. Um soldado americano oriundo de uma pequena cidade dispõe de uma licença de 48 horas para visitar Nova Iorque, a “cidade que nunca dorme” e que, com os seus imponentes arranha-céus, o trânsito infernal e as multidões anónimas, parece pronta a comê-lo vivo. Récem-chegado à azáfama da Penn Station, sem saber o que fazer do seu tempo nem para onde ir, Joe Allen — que bem poderia chamar-se John Doe (o equivalente ao nosso “Zé Ninguém”) — sente-se simultaneamente desorientado e deslumbrado com o que o rodeia. Só uma rapariga, de seu nome Alice, que vem literalmente tropeçar nos seus pés, se mostra minimamente disponível para o ajudar a orientar-se na grande metrópole. Uma curta viagem de autocarro que não deveria durar mais de uns minutos rapidamente se transforma no começo de uma história de amor… E numa corrida contra o tempo, pois Joe sabe que deverá regressar ao exército daí a dois dias; e, com a ameaça da guerra a pairar, nada garante a Alice que algum dia o volte a ver.
Estão dados nesta breve sinopse todos os ingredientes para um belo e sofrido melodrama sirkiano; mas, nos papéis principais, ao invés da dupla Jane Wyman – Rock Hudson, encontramos uma Judy Garland resplandecente, ainda antes de cair no vício das drogas, ao lado de um Robert Walker já alcoólico e pouco memorável, mas que veste perfeitamente a pele do nosso ingénuo soldado. Também não é Douglas Sirk quem assina a realização, mas Vincente Minnelli, no início da sua aliança com o produtor Arthur Freed. Meet Me in St. Louis (Não Há Como a Nossa Casa, 1944), The Pirate (O Pirata dos Meus Sonhos, 1948), An American in Paris (Um Americano em Paris, 1951), The Band Wagon (A Roda da Fortuna, 1953), ou ainda Gigi (1958), são alguns dos filmes nascidos desta parceria, que contribuíram a dar um novo fôlego ao género do musical hollywoodiano, entre os anos 1940 e 1950. Graças ao enorme sucesso das suas comédias musicais aparatosas, Minnelli foi ganhando uma relativa liberdade para desenvolver outros projetos mais pessoais, pouco rentáveis do ponto de vista da produção, mas particularmente amados pela crítica, como os melodramas Some Came Running (Deus Sabe Quanto Amei, 1958) e Home from the Hill (A Casa da Colina, 1960).
Inicialmente atribuída a Fred Zinnemann, a realização de The Clock veio parar às mãos de Minnelli a pedido de Judy Garland, que Minnelli havia dirigido em Meet Me in St. Louis, e com quem se dera particularmente bem – tanto que acabariam por casar pouco tempo após as filmagens do segundo projeto. Este seria também o primeiro papel dramático da atriz, cansada de interpretar sempre o mesmo tipo de personagens desde o início do seu contrato com a MGM, como a sonhadora Dorothy de Wizard of Oz (O Feiticeiro de Oz, 1939) ou o “patinho feio” Betsy na série de filmes Andy Hardy, ao lado de Mickey Rooney, no final dos anos 1930.
Uma vez despido do peso do contexto histórico, The Clock guarda todo o seu charme e a sua urgência romântica: urgência de suspender a passagem do tempo e de saborear as oportunidades que o presente traz ao nosso encontro.
Efetivamente, em The Clock, Judy Garland desempenha pela primeira vez o papel de uma mulher adulta e real, que não precisa de cantar e de dançar para expressar os seus sentimentos e que, ao invés de se perder em idílios românticos, vive um dilema existencial profundamente enraizado no seu tempo: deve Alice autorizar-se a viver a paixão emergente por Joe, ou é preferível afastar-se para não sofrer quando este partir? Estará ela disposta a ser uma noiva de guerra, sabendo que poderá rapidamente transformar-se em viúva?
Durante 48 horas — condensadas em uma hora e meia, para o espectador —, Robert Walker e Judy Garland formam um casal improvável mas resistente face aos indomáveis fluxos urbanos em hora de ponta e às engrenagens enferrujadas da máquina burocrática. Nesta luta contra o tempo (materializado no filme pelo antigo relógio do Hotel Astor na Times Square, onde Joe e Alice combinam encontrar-se), ainda há tempo para alguns momentos de pura e simples felicidade, como o passeio no Central Park, a visita ao Metropolitan Museum ou a inesperada digressão noturna com o leiteiro (James Gleason). Estas cenas permitem recuperar o fôlego antes de uma nova série de peripécias e obstáculos, e contribuem a instalar no filme um certo sentimento de nostalgia, que poucos saberiam nomear; donde o título português, que designa a hora agridoce que antecede a separação dos jovens amantes através dessa palavra que só nós conhecemos:
“… E aprende-se a dizer saudade.”
Mas serão 48 horas suficientes para descobrir, viver e perder o amor de uma vida? Se o encontro fortuito entre duas almas solitárias não é forte o suficiente para interromper o curso da História, pode pelo menos criar um curto-circuito no quotidiano, um movimento de resistência contra a maré. Por isso, uma vez despido do peso do contexto histórico, The Clock guarda todo o seu charme e a sua urgência romântica: urgência de suspender a passagem do tempo e de saborear as oportunidades que o presente traz ao nosso encontro.
É precisamente isso que fazem os protagonistas da célebre trilogia de Richard Linklater iniciada com Before Sunrise (Antes do Amanhecer, 1995): um jovem americano e uma estudante francesa, reunidos a bordo de um comboio entre Budapeste e Viena, têm diante deles apenas uma noite para visitarem juntos a capital austríaca. Ambos sabem que, ao amanhecer, cada um seguirá com a sua vida em lados opostos do oceano Atlântico; ainda assim, não hesitam em viver uma história de amor, que se anuncia tão simples quanto efémera. Embora seja impossível identificar o instante preciso em que Jesse (Ethan Hawke) e Céline (Julie Delpy) se apaixonam – seria redutor falar de amor à primeira vista, já que a atração e os laços se vão estabelecendo através dos diálogos divagantes que constituem o único fio condutor do filme –, há um momento em particular que parece cristalizar a aura deste primeiro encontro (e que, sabemos hoje, não será o último, pois o realizador reunirá de novo os dois atores/personagens, em Before Sunset [Antes do Anoitecer, 2004] e Before Midnight [Antes da Meia-Noite, 2013]).
Refiro-me à cena em que Jesse e Céline são abordados por um poeta de rua que lhes pede para dizerem uma palavra ao acaso, que ele utilizará num poema improvisado na hora; a palavra escolhida é “milkshake”, e o resultado encontra-se transcrito no início deste texto. Não pretendo aqui apreciar as qualidades do poema no que diz respeito à sua forma ou conteúdo, mas sim colocar uma hipótese quanto à função que desempenha na narrativa do filme de Linklater: apresentando-se como uma série de impressões momentâneas decorrentes da observação do casal por um personagem-espectador (intradiégético), as palavras soltas do poeta traduzem simultaneamente o deslumbramento e as incertezas que Jesse e Céline estão a sentir no momento, mas que não têm tempo para assimilar, ou não ousam ainda confessar um ao outro.
Ora, no filme de Minnelli, Joe e Alice são privados do momento de tomada de consciência do caráter ilusório e insustentável da sua paixão repentina. A partida iminente do soldado torna tudo mais grave, mais urgente. Contudo, a única tarde que podiam passar juntos é “desperdiçada” numa tentativa kafkiana de reunir todos os documentos e autorizações necessários para se casarem no próprio dia. Quando, por fim, conseguem convencer o juiz de paz a oficializar o casamento, não só o seu discurso é proferido a toda a velocidade, como é repetidamente abafado pelo barulho ensurdecedor dos comboios que passam em plano de fundo. É neste cenário desolador que ambos dizem “I do”, mas, no fundo, é como se não soubessem realmente aquilo que estão a consentir.
Quanto tempo é preciso para conhecermos realmente alguém? Se várias décadas não foram suficiente para Jesse e Céline, como nos revela o resto da trilogia, 48 horas certamente também não terão chegado a Joe e Alice. No final de The Clock, os récem-casados trocam um último olhar, misto de esperança e de saudade, antes de se separarem, e nada mais sabemos do seu destino. Mas Minnelli deixa-nos sonhar com um final feliz; talvez, noutra dimensão, ambos se reúnam num bailado sumptuoso em Technicolor…
The Clock (A Hora da Saudade, 1945) passa na Cinemateca Portuguesa na próxima quinta-feira (amanhã), dia 17 de fevereiro, às 19h00.