É difícil sair da sala quando não queremos sair do mundo do filme, especialmente quando esse mundo é reconhecível, mas sublime. Com Verdens verste menneske (A Pior Pessoa do Mundo, 2021), o seu quinto filme, Joachim Trier tornou-se um dos melhores realizadores do mundo. Pelo menos, não tirarei os olhos do cinema dele tão cedo. É cru, romântico, existencialista. Não é floreado, embora seja poético. Os mundos de Trier são psicologicamente complexos, mas não menos delicados por isso. É uma sensibilidade marcadamente nórdica que afasta qualquer possível acusação de frieza, impessoalidade ou super conceptualização. Consola pensar em todos os filmes que ele ainda poderá fazer.
Tendo já passado pela competição do Festival de Cannes, que reconheceu Renate Reinsve com o prémio de melhor actriz, e recebido duas nomeações aos Oscars de 2022, A Pior Pessoa é também o terceiro de uma trilogia temática sobre Oslo, povoada por jovens inquietos — o primeiro é Reprise (2006), que pode ser visto na Netflix, e o segundo é Oslo, 31. august (Oslo, 31 de agosto, 2011), que pode ser visto na Filmin.
É um filme sobre o amor e a morte, sobre contradições, desejos, erros, passos em falso. É um filme, enfim, sobre (um)a vida que será reconhecível para muitas pessoas.
A história centra-se em Julie (uma incandescente Reinsve), cuja inquietação e indecisão perante a vida nos é apresentada no prólogo do filme. O filme segue-se em doze capítulos, e um epílogo. É um filme sobre uma rapariga a fazer 30 anos que ainda não sabe o que quer, tanto profissional como pessoalmente. Hesita, e depois não hesita, entre relações, descobre coisas sobre si própria, sozinha e em relação ao (mítico) Outro. É um filme sobre os momentos marcantes e os normais, quotidianos, esquecíveis. É um filme sobre o amor e a morte, sobre contradições, desejos, erros, passos em falso. É um filme, enfim, sobre (um)a vida que será reconhecível para muitas pessoas. É fácil reconhecer sentimentos de indecisão, de estar à deriva, de não saber o que ou como fazer algo. É fácil ver os momentos quotidianos, até mesmo os que rasgam a monotonia do dia-a-dia, e sentir que há algo de nós ali. A história em si é, de certa forma, a tale as old as time. E o que a torna sublime é quem a conta e como esta é contada.
Primeiro, Julie salta de Medicina para Psicologia e depois para Fotografia. A questão da carreira é, de certa forma, suspendida quando começa a namorar com Aksel — o magnífico Anders Danielsen Lie, que percorre a trilogia de Oslo de Trier, ao mesmo tempo que é médico na vida real e um incontestável quebra-corações —, um homem 15 anos mais velho conhecido por uma banda-desenhada decididamente punk, com toda a energia Gen X que já irradiava em Reprise [uma espécie de Trainspotting (1996) em Oslo, mas sem drogas e totalmente diferente]. Aksel traz consigo um círculo de amigos mais maduro, cuja existência em torno de filhos e família causa, em Julie, mais ansiedade do que aspiração. A insatisfação de Julie é palpável e concretiza-se num momento-chave: depois de escapar mais cedo de um evento profissional em torno do trabalho de Aksel, ela invade sub-repticiamente uma festa de casamento onde conhece Eivind (Herbert Nordrum), com quem sente uma imediata química, mas também um à-vontade que não encontra com Aksel. Julie e Eivind têm trabalhos semelhantes, perspectivas de vida semelhantes e o facto de se encontrarem ambos indisponíveis para começar uma história de amor só exacerba a chama que se acende entre os dois.
Num filme menor, os dois homens talvez fossem postos em contraste de uma forma mais notória, em boa tradição da comédia romântica. Porém, embora seja um filme com histórias de amor, não sei se será justo designar o filme como comédia romântica — sendo, sem dúvida, incrivelmente divertido, sardónico e perspicaz (mesmo que ninguém ria, ou não ria tão alto como eu). Trier vai além da história de amor, porque a história é sobre a individualidade de Julie, a autoconsciência de quem é e do que poderá querer e como tudo na vida é mais volátil do que parece à primeira vista. Não há relacionamentos perfeitos, finais felizes com beijo Hollywoodesco, há só a vida e a sua imperfeição e fragilidade e todas as coisas que a tornam sublime e dolorosa.
É aqui que Trier brilha. Em A Pior Pessoa, reconheço o sentido de humor e a brincadeira com a forma de Reprise (daquelas primeiras longas-metragens que já têm todo o potencial lá contido), em pontos como a corrida de Julie — momento mágico que só pode acontecer no cinema, em que tudo pára e entramos num mundo em que só ela está em movimento, em busca de Eivind — ou quando Aksel ouve Turbonegro no hospital e a câmara segue os seus gestos. Mas também reconheço a sobriedade de Oslo, 31 de agosto, embora A Pior Pessoa nunca perca um olhar esperançoso no futuro. Contudo, nos dois filmes, Trier, especialmente através de Anders Danielsen Lie, um actor que este tem colocado sempre em diálogo com a morte, expõe uma série de questões duras sobre nada mais nada menos que o sentido da vida. Trier nunca é melodramático, não coloca os actores a chorar amargamente ou em confrontos gritantes. É antes sóbrio e lúcido, pondo o dedo na ferida com um encolher de ombros como o de Joe Pesci em The Irishman (2019): “It’s what it is”. O que torna tudo mais despedaçante, mas também mais bonito.
No final, Tier deixa-nos com algumas respostas, mas não muitas, porque a vida também não funcionaria de outra forma. Estamos sempre apenas no precipício de novas viagens que trarão novas questões e novos desafios, e é sobretudo importante sabermos quem somos, mesmo que não saibamos para onde vamos. Mas, sobretudo, Trier deixa-nos na sala de cinema, com lágrimas nos olhos, impotentes para sair antes de todas as luzes se ligarem e o genérico terminar. Tal como Aksel diz, não queremos que o filme se torne apenas numa memória, queremos continuar naquele mundo de Julie. A perfeita nota de agridoce final.