Naquele preciso momento o homem disse:
«O que eu daria pela felicidade
de estar ao teu lado na Islândia
sob o grande dia imóvel
e de repartir o agora
como se reparte a música
ou o sabor de um fruto.»
Naquele preciso momento
o homem estava junto dela na Islândia.
Jorge Luis Borges, “Nostalgia do Presente” in A Cifra
Em 2015, a propósito da distribuição comercial dos três tomos de As Mil e Uma Noite, conversámos com o Miguel Gomes sobre essa epopeia polí(p)tica que procurava retratar, em direto, os anos das troika. Recordo-me de sugerir, a certa altura, que havia uma grande proximidade entre as seis horas desse filme e os 20 minutos da sua curta-metragem feita de imagens de arquivo, Redemption (2013). No fundo, o meu argumento prendia-se com um mesmo processo de distanciamento para com as imagens: no caso de Redemption, Gomes mergulhou em arquivos públicos de imagens e construiu quatro histórias, fortemente sustentadas pela narração (onde as imagens serviam mais de ilustração e comentário); já em As Mil e Uma Noites, embora tudo o que lá se vê tenha sido filmado pela equipa do realizador, parece que o efeito de acumulação e a soltura da rodagem impôs que, no momento da montagem, se trabalhassem as imagens com o mesmo desprendimento de quem monta found footage.
Esta estratégia de desarticulação entre a rodagem e a montagem é o que aproxima, em grande medida, o(s) filme(s) de Gomes do presente. Há, nesse processo semi-aventuroso de partir para a rua sem guião (ou quase), uma aproximação ao método do documentário mais tradicional. E, de facto, As Mil e Uma Noites, no seu desejo de amplitude e de cobertura (mediática), registaram e arquivaram um conjunto de acontecimentos que servirão como compêndio irónico desses anos. Aliás, a resposta de Gomes à minha questão foi algo como: “não montei o filme como se se tratasse de material de arquivo, o próprio filme é o arquivo”.
Recordo esta troca porque me lembrei bastante do filme de Gomes enquanto assistia a A Night of Knowing Nothing (Noite Incerta, 2021), de Payal Kapadia – ainda que, de um ponto de vista puramente estético, o filme esteja mais próximo de Tabu (2012), vejam-se os “mesmos” desenhos nas nuvens, por exemplo. O que a realizadora indiana fez está, em grande medida, próximo daquilo que foi o método de Miguel Gomes, mais, vai além dele e conceptualiza-o. Este filme, a primeira longa-metragem da realizadora, que saiu há pouco das escola (Film and Television Institute of India, em Pune) descreve, por ínvios caminhos, as greves estudantis em que a própria realizadora participou, pouco tempo após a eleição do atual primeiro ministro de extrema-direita, Narendra Modi (que nomearia, em 2015, para diretor dessa mesma escola de cinema um ator de telenovelas próximo do seu séquito, Gajendra Chauhan, o que seria a fagulha da revolta – Chauhan acabaria por se demitir em 2017, na sequência dos protestos).
A Night of Knowing Nothing consegue a proeza de operacionalizar politicamente a nostalgia. É que se vemos tudo aquilo com um certo conforto distanciado (nostálgico, portanto), não deixamos de sentir uma indignação muito presente.
Kapadia filmou as manifestações, as discussões dos estudantes, recolheu vídeos da internet denunciando a violência policial (ora filmados com telemóvel, ora captados pelas câmaras de segurança dos vários campi universitários) e acumulou outros registos de muitos outros estudantes (não necessariamente da escola de cinema) que, um pouco por todo o país, combatiam a ideologia nacionalista do novo governo. A todo este material, a realizadora juntou ainda excertos televisivos e recortes de jornal que procuram contextualizar e situar este momento muito particular da história contemporânea da Índia.
A questão que se impôs a Kapadia (à semelhança de Gomes) prende-se com o desejo de ativamente combater a linearidade simplista do olhar televisivo sobre o presente. Como filmar então a atualidade, sem se resumir a ela? A resposta da realizadora passa por um entendimento do dispositivo fílmico onde a noção de arquivo é sucessivamente (e recursivamente) evocada. O primeiro nível deste processo “arquivístico” relaciona-se com o material a que já aludi: uma série de imagens e sons que a realizadora captou ou recolheu e que, depois, analisou e catalogou com o seu montador (Himanshu Prajapati, que é igualmente creditado como co-argumentista do filme).
O segundo nível encontra-se na ficção epistolar que carrega a já referida narração. A Night of Knowing Nothing começa com um cartão onde se explica que foi encontrada, na escola de cinema, uma caixa cheia de cartas e alguns objetos pertencentes a uma estudante anónima, apenas conhecida por L. Ao longo do filme ouviremos a voz encantadora (e encantada) de Bhumisuta Das, lendo essas epístolas: cartas de um amor impossível (por ela ser de uma casta tida como inferior à do amante) que acabariam por nunca ser enviadas. Esta solução narrativa que procura uma perspetiva privada e subjetiva sobre os tumultos políticos (nesse sentido, próxima de Redemption), é emprestada, segundo a própria realizadora, do romance de 1972 escrito por John Berger, G., também construído em torno de um “arquivo” de cartas de amor que permitem um acesso íntimo à revolução falhada dos operários milaneses em 1898.
A estes dois arquivos, um concreto e um ficcional, junta-se uma terceira camada, onde a noção de acervo é entendida não como repositório utilitário, mas como estrutura narrativa. Isto é, não há – como é costume pensar-se – uma isenção nos arquivos. Eles resultam de um processo de recolha de materiais, processo esse que implica uma escolha (o que entre e o que não entra), uma pesquisa (que faz com que o gosto e o interesse de quem faz o aquivo se acabe por manifestar) e uma catalogação (que estratifica o que lá se acumula, tornando certos materiais mais acessíveis que outros). O arquivo tem, portanto, uma subjetividade, mesmo que diluída em múltiplas entidades e vários procedimentos. Guardar e arrumar impõe uma ordem que é, em si, narrativa (para não dizer ficcional). Payal Kapadia não só percebe isto como o literaliza. Aparentemente todo o material recolhido pelos estudantes indianos estará à disposição para que outros venham des-ordenar e re-arquivar o que lá se encontra – a realizadora foi, apenas, a primeira a trabalhar esse manancial de imagens e sons. Só que o fez com a consciência do que tinha em mãos, acabando por refletir sobre o próprio modo como se juntaram e agora se trabalham aquelas imagens. A narração que se dispõem sem uma direção clara, em rede, aliada à escolha do título traduz, também, essa incerteza dos acontecimentos e do próprio modo de contar.
Por fim, um quarto nível “arquivístico” revela-se através daquilo a que se poderia chamar de “estética do arquivo”. Payal Kapadia juntou ao material recolhido por ele e pelos colegas outras imagens de “arquivos domésticos”, os chamados filmes de família. Essa inclusão (que justifica os únicos momentos de cor – a cor esbatida dos filmes em Super 8) contamina todas as outras imagens, pondo em causa a sua origem, o seu tempo, o seu contexto. A isto, a realizadora aplica uma uniformização cromática e textural que concilia a pluralidade de materiais com que trabalha. O resultado: tudo (a)parece como se viesse de longe. E talvez essa seja a grande perturbação de A Night of Knowing Nothing: a sensação de que se está a assistir não a acontecimentos recentes (filmados entre 2015 e 2017), mas a algo muito distante no tempo. O facto de muitas das imagens terem sido filmadas (e refilmadas?) em película de preto-e-branco muito granulosa convoca essa dimensão mística de tudo aquilo, como se fossem vestígios desenterrados de um outro tempo. E aí o lado soturno e notívago desta deambulação sussurrada reconduz-nos para as caves dos arquivos, profundas e mofentas.
A certa altura, numa das cartas de L., esta explica que a palavra “nostalgia” tem sempre sabor adocicado, e a palavra “memória” sabe a amargo (porque a história é a memória de quem manda). A Night of Knowing Nothing consegue a proeza de operacionalizar politicamente a nostalgia. É que se vemos tudo aquilo com um certo conforto distanciado (nostálgico, portanto), não deixamos de sentir uma indignação muito presente. Estas quatro camadas sedimentares, através das quais a realizadora “enterra” o presente, servem, afinal, para o resgatar do esquecimento mediático que impera. Só arquealogizando o real é que este se deposita no presente.