No título português de The Searchers (A Desaparecida, 1956), de John Ford, o foco é deslocado daqueles que procuram para aquela que desapareceu. Esta crónica debruça-se sobre o que está no meio, ligando os dois pólos: as pistas, os trilhos seguidos, aquilo a que Nuno Tudela, um dos alunos de António Reis na Escola de Cinema, ao lembrar um trabalho sobre o som de um plano do filme, em que se ouve um eco, chama vestígios que se repetem. The Searchers está povoado de objectos que indicam uma presença anterior.
A obra centra-se na odisseia, como lhe chamou Jean-Luc Godard, de Ethan Edwards (John Wayne) e Martin Pawley (Jeffrey Hunter), membros, em diferentes qualidades, da família Edwards, cuja casa é atacada e destruída logo no início. Os únicos sobreviventes são Ethan, irmão de Aaron (Walter Coy), patriarca do clã, Martin, órfão que a família criou como um filho seu, e Debbie Edwards, a filha mais nova, levada pelos comanches (interpretada na infância por Lana Wood e na adolescência por Natalie Wood). The Searchers descreve a longa busca dos dois homens pela rapariga.
Existem no filme exemplos distintos dos vestígios de que falo acima. De forma geral, podemos pensar nos rastos mais simples que direccionam aquela busca, que vão sendo deixados por amigos e inimigos, como forma de, literalmente, indicar caminhos a quem segue atrás: é o caso do gado roubado e depois morto com lanças que permitem identificar o inimigo comanche, que levou ao engano um grupo de homens da região, fazendo-os seguir no que pensaram ser o seu encalço, deixando desprotegida a propriedade dos Edwards. Pistas falsas, também, são aquelas que Jerem Futterman (Peter Mamakos) usa para tentar encurralar os protagonistas. Pista mais favorável é a seta composta de pequenas pedras que a mulher comanche, Ganso selvagem voando no céu nocturno (Beulah Archuletta), a quem Ethan e Martin chamam Look, compõe no chão para lhes apontar em que direcção foi.
Nem tão más e nem tão boas são as pistas que o mesmo grupo de comanches vai deixando aos perseguidores brancos, por falta de cuidado e preocupação, como sugere Nesby (William Steele), revelando abertamente o lugar onde enterraram os seus mortos. Diferentes destas pistas são os traços que se transportam de uma outra vida – como as moedas que Ethan entrega a Aaron depois de regressar da guerra – ou que lembram a existência de alguém, traços que se relacionam com distinções mais amplas que poderíamos fazer entre os vestígios.
Por um lado, temos traços na paisagem que os habitantes da planície, pela sua desolação, lêem constantemente como anúncios de que a ordem conhecida está prestes a ser alterada: há a vinda de alguém anunciada pela poeira que se levanta ao longe ou pelos pequenos vidrilhos a brilhar no meio dos arbustos, sinal de movimento humano ou animal; ou a chegada de Ethan na cena inicial, quando Martha sai da penumbra da casa para a luminosidade exterior e olha a planície onde ele surge montado a cavalo.
Num filme, e num género, fundados, de forma tão brutal em separações identitárias, a questão da semelhança e da pertença a um grupo específico é central.
Parece impreciso chamar vestígio à presença de Ethan na distância, por ser efectivamente o seu corpo que Martha vê avolumar-se muito ao longe. Se incorro na imprecisão é porque este exemplo introduz um problema interessante. Quando se vê alguém à distância é impossível, até certa altura, dizer, com certeza, se essa é ou não a pessoa que esperávamos ver. O movimento mental será talvez o de uma aproximação indecisa entre a forma que se vê e a forma da pessoa que se conhece. A correspondência começa por ser incerta e só depois se confirmará. Nesse sentido, ainda que o que Martha veja na planície não seja um vestígio de Ethan, mas Ethan ele mesmo, o movimento inicial é o de associar o que parece ser Ethan a Ethan, de tomar uma coisa pela outra através de uma qualidade particular que aproxima as duas: o contorno das figuras.
Esta é, pelo menos até ao momento em que as duas figuras coincidem, uma relação de aproximação por semelhança (algo do mesmo género do de um ícone, se quisermos recuperar a terminologia proposta por C. S. Peirce: “uma representação quase exacta de um objecto”), enquanto que muitos dos sinais que ocupam a paisagem se ligam com os respectivos objectos através de uma relação de indexicalidade (a poeira, os vidrilhos): são índices, representam “um aspecto de um objecto para sugerir o todo”.
Por outro lado, manifestações mais nítidas desta modalidade indexical recorrem ao longo de todo o filme, nomeadamente objectos que surgem associados a certas pessoas. Alguns destes índices contêm efectivamente o objecto para o qual apontam: é o caso dos escalpes que Scar, o chefe comanche, mostra a Martin e Ethan, que revela ao primeiro, cenas depois, fazer parte daquela série o escalpe da sua mãe. Outros dos índices consistem em objectos, ou partes deles, que servem como evidência de existência: como um pedaço do bibe que Debbie usava no dia em que foi levada, e que Futterman usa como prova de que ela estará perto, para assim atrair Ethan para uma cilada; ou os medalhões que Scar roubou a algumas das suas vítimas (aquele medalhão particular, oferecido por Ethan a Debbie, indica a proximidade da rapariga) e que agora usa como troféu de guerra e testemunho do seu poderio – acrescentando aqui valor simbólico ao indexical.
Finalmente, penso na boneca de pano que Martha dá à filha antes de a ajudar a fugir pela janela e que Ethan vai encontrar junto ao túmulo da avó, o local onde Scar encontrou Debbie antes de a levar. A boneca, tal como a manta em que a mãe embrulhara a menina, surge como um indício de que foi dali que levaram a criança. De modo importante, e contrariamente à manta, a boneca ganha um valor icónico: também ela é uma menina que ficou para trás). Esse valor icónico é lembrado numa cena em que Ethan e Martin entram num posto do exército e procuram Debbie entre o grupo de mulheres resgatadas do cativeiro comanches. Martin usa a boneca de modo literal, mostrando-a às mulheres mais jovens, tentando perceber se alguma delas a reconhece como sua. O que acaba por acontecer é que uma das mulheres mais velhas reconhece no objecto o seu valor icónico, tomando-o, novamente, como uma menina pequena, um bebé, que se põe então a embalar nos braços.
Parece-me relevante, aqui, que seja Martim a recorrer ao valor literal da boneca. De entre todas as personagens de The Searchers, é ele quem, mais do que uma vez, se mostra incapaz de reconhecer a necessidade de valorizar não apenas um determinado objecto ou elemento, mas igualmente os mantos que o encobrem e as marcas que deixa para trás, agarrando-se com demasiado afinco à coisa em si. O exemplo mais evidente disso é o seu amor por Laurie, do qual, apesar de genuíno e firme, faz muito pouco alarde, para seu próprio prejuízo – tão verdadeiro o acha que não precisa de o dizer. Martin é uma espécie de viandante que deixa muito poucas pedras a marcar o seu trilho.
Lembro-me, a este propósito, da única carta que envia a Laurie ao longo dos mais de cinco anos que dura a sua aventura com Ethan. Sobre ela, Laurie diz-lhe a certa altura que a leu até estar seco o papel e as letras se terem sumido, o que dá conta do esbater da voz de Martin dentro de si, ao ponto de acabar por deixar-se convencer pela ideia de casar com Charlie (Ken Curtis). A carta surge, ao chegar, como indício de presença e a sua deterioração representa o atenuar da ascendência de Martin sobre Laurie, ainda que não a sua extinção – como só o reencontro dos dois pode, aliás, provar. Perante a ausência do amado, a jovem mulher procura (e encontra) um substituto para ele. Mas aquilo que o regresso de Martin prova também é que, se os vestígios de coisas podem, afinal de conta, ser úteis, por nos permitirem rastreá-las, as tentativas de substituição representam um risco.
Uma recorrência em The Searchers são os momentos em que alguém confunde uma pessoa com outra, para depois, finalmente, a identificar. No exemplo anterior, Laurie confunde, num sentido em que funde, por extrema necessidade, Martin com Charlie – novamente, o retorno torna evidente o engano, como no regresso de Ethan à casa da família logo no início da acção. Mas, o momento mais significativo de afastamento e subsequente reconhecimento de alguém, relacionado, precisamente, com a sequência inicial, é aquele em que Ethan, no final do filme, depois de perseguir Debbie com o intuito de a matar, por achar que o tempo passado com os comanches a transformou num deles, a levanta em braços e a acolhe, como na primeira vez em que a viu depois da guerra e a confundiu com a irmã, Lucy (Pippa Scott), antes de a menina lhe dizer que ela é, afinal, Deborah.
Esta confusão de nomes tem ecos noutras personagens e situações em que diferentes formas de “descoincidência” ou engano são instanciadas (como pistas falsas), nomeadamente a propósito de nomes, formas de inscrição: a mulher comanche a quem ele e Ethan insistem em chamar Look, apesar de conhecerem o seu verdadeiro nome, e que Martin compra, sem perceber, para esposa, pensando estar a comprar uma manta – um dos momentos mais indignos de The Searchers. Mas há também o erro de ortografia de Martin, na única carta que envia a Laurie, e em que escreve mal o nome dela; o facto de Scar ser conhecido entre falantes do castelhano como Cicatriz ou de Mose (Hank Worden) usar nomes índios para se referir a certos sítios que os brancos conhecem por outra denominação ou nem sequer incluem nos seus mapas. E, por fim, o caso do capitão Clayton (Ward Bond), que é também padre (diferentes signos linguísticos para o mesmo referente). Como é que se sabe se aquela é, afinal, a mesma pessoa?
Num filme, e num género, fundados, de forma tão brutal em separações identitárias, a questão da semelhança e da pertença a um grupo específico, de saber o que nos identifica, o que nos distingue dos outros é central. Ethan, a mais abertamente racista das personagens, aponta constantemente os desvios de uma linhagem de sangue (Martin) ou de costumes (Debbie). Aquilo para que indirectamente aponta é um desvio dos trilhos, não se ter seguido certo fio. A intenção de Ethan de matar a rapariga criada pelo inimigo funda-se na possibilidade de Debbie já não ser Debbie, ela em cujos ombros a mãe, Martha, colocou a responsabilidade de continuar a família, ao pô-la em fuga assim que percebe que a casa está cercada – oferece-lhe protecção, mas pede-lhe também uma forma de continuidade. Essa continuidade será, de alguma forma, uma continuidade oferecida, sem saber, a Martin, já que contribuir para o resgate de Debbie é, de modo oblíquo, uma forma de vincar a sua pertença à família da qual, em termos puramente biológicos, não faz parte, como Ethan insiste em lembrar-lhe.
Mas é sobretudo a Ethan que essa continuidade é oferecida. Encontrar Debbie é também reencontrar Martha, ainda que a correspondência seja forçosamente imperfeita. Martha é a primeira figura que vemos em The Searchers, uma espécie de elo que mantém as partes ligadas. Na verdade, é Martha que surge, entre todas as outras, como a peça essencial. O marido, Aaron, diz dela que não permitiria a um homem que desistisse, mantra que ecoa ao longo de todo a obra. Não espanta que Debbie, a sua herdeira, seja o único ponto que pode agregar um grupo de personagens brancas marcado por tantas diferenças e pontos de discórdia. É Debbie enquanto vestígio de Martha que Ethan persegue, ele cuja errância é tão proverbial quando a inépcia de Martin. Tal como o círculo que o filme descreve, Ethan procura a negação de uma ausência num infindável rol de traços materiais. Falta-lhe a constância de Martha que, na primeira cena, abre a porta da casa coberta na penumbra e sai para o alpendre procurando a figura de Ethan, sabendo-a na distância antes mesmo ainda de a ver.
As aulas de António Reis na Escola de Cinema giravam em torno de uma lista de filmes que Reis e Margarida Cordeiro tinham como essenciais. The Searchers é parte dessa lista.