Daremos passos maravilhosos, o homem dará passos maravilhosos se ele voltar às coisas (como se deve voltar às palavras para expressar as coisas correctamente).
Francis Ponge, in La Rage de l’expression, Poésie/Gallimard, 1976
Dieu sait quoi (1993), de Jean-Daniel Pollet, abre-nos ao mundo das coisas, das coisas presentes, naturais, das coisas sem voz que se mostram ao olhar das imagens com as palavras que as dizem. Imagens que seguem o rasto do grande poeta Francis Ponge, aqui em convocação absoluta, sob o uso dos seus textos pela voz do actor Michael Lonsdale. O poeta elegeu a materialidade do mundo para o dizer: um “mundo mudo” revelado pelas palavras medidas por uma peculiar clareza, numa certa des-subjectivação, ou a-poética. Esta é uma forma particular que encontra o seu rumo na linguagem de Ponge que junta poesia e prosa, cuja fusão dá origem ao conceito de “proema”.
A obra de Ponge Le Parti pris des choses (1942) foi o grande exemplo dum trabalho à volta das coisas, sobre as quais o autor toma o seu partido como uma política, elegendo-as enquanto figuras vitais, na medida da sua naturalidade e banalidade, de forma a serem vistas, observadas, pesadas e ditas pelas palavras; o livro é composto por 32 pequenos textos que organizam este mundo literário. Pollet admirava muito Ponge ao ponto de chegar a torná-lo num verbo e conjugá-lo no presente do indicativo: “Je ponge, tu ponges, il ponge, nous pongeons, vous pongez, ils pongent”. Foi fácil para o cineasta tomar o exemplo do autor no seu filme e libertar em imagens os objectos e os elementos do universo do poeta.

Perante o registo de imagens de Pollet e as palavras de Ponge, resulta um fantástico corpo unido revelador da aliança texto-imagem. No universo do filme, as coisas desfilam entre as duas formas e criam um espaço de diálogo, afirmado pela vontade de “uma variedade que [nos] constrói,” colocando os autores – Pollet-Ponge – no centro duma auscultação sensível às coisas do mundo.
Submergimos no filme, na cadência condutora da voz off que abre espaço pelas coisas que desfilam e se erguem segundo a vontade da imagem em se escrever e se acrescentar ao texto. Daí produz-se uma concentração do sentido dos objectos e dos elementos, de como estes são vistos e nos são ditos. Não há história, não há ficção (ou até há), não há personagens (ou até há). As coisas são as grandes protagonistas: o centro e recheio da narrativa (não narrativa).
Pollet abre o filme a partir do chão, de pedras mostradas pela câmara em movimento e uma voz indica-nos a nossa posição neste “mundo mudo” das coisas – “única pátria” da qual somos reféns.
Uma máquina de escrever exibe-se em plena natureza, ganha tamanho, presença, um travelling rodeia-a e prefigura uma escrita em acção: duas vezes dita – na imagem e na palavra. A questão está mesmo “nas coisas”. Um muro de pedras (como um muro de palavras essenciais) percorre o ecrã em lateralidade, a ocupar o plano, as pedras fazem de fundo ao genérico que desfila; a pedra tem peso, tem forma, é inaugural.
É preciso falar da música de Antoine Duhamel que acentua o tom e provoca a imersão. Assim como é também necessário referir o som que acciona o movimento das coisas, reproduzindo o mecanismo que as anima. É preciso mostrar os carris, os trilhos, as peças, parafusos que encaixam e fixam elementos. É importante relevar as estruturas – tudo aqui importa! – enquanto o tempo se fixa num relógio que parou na estação vazia de comboios.
Não há presença humana directa neste mundo. Uma mão isolada surge do nada, a lembrar essa presença ausente. O filme entra numa casa (décor no sul de França), a imagem do próprio Ponge exibe-se na parede. Por baixo da fotografia está uma máquina de escrever e o poeta é feito Deus protector do lar. A voz off homenageia-o: um tributo em palavras e imagens (outro duplo registo). Um ecrã de televisão na sala mostra outros filmes de Pollet – percorrem-se filmes dentro do filme na visão antiga de ruínas gregas, do mar, de homens a remar, a laborar, etc.

A corrente das coisas expostas não cessa. No exterior mostram-se frascos, copos, jarros, bules, relógio, verdadeiros quadros vivos de naturezas-mortas em movimento, em travellings circulares e panorâmicas que nos fazem girar. A expressão da água, numa torrente de imagens e palavras, descreve a “inquietude” do líquido – a sua “perdição” – enquanto este obedece à gravidade; diz-nos a voz emissária de Ponge.
Deambula-se e circula-se por entre espaços. Entre a natureza e a casa, a câmara anda do interior para o exterior… E eis que o filme muda, fica mais urbano, mais manifesto, transita para a cidade. Montras exibem a interjeição “Oh”, multiplicada em tumulto (o som acentua o tom mais lancinante, dramático), cartazes com “Tudo deve desaparecer”, mais preços, saldos, letreiros, “O Futuro já existe”, (dois robots abraçam-se). A cidade publicitária dá-se a ver, perante nós, sinaletizada, vazia e aprisionada.
O vaivém continua. Pollet re-elabora um discurso entre a quietude do campo e o interior da casa (nas paredes a reprodução duma pintura de Matisse, uma fotografia de Picasso, outra de Chaplin). A televisão continua a exibir imagens em vertiginosa mise en abyme, de onde se destacam fornalhas, engenhos fabris, homens em labor; as imagens servem de novas entradas à cidade, à inexorável imagem do homem sobre a calçada como “chapa de aço quente queimado”.
Copos de água erguem-se como esculturas e ressurgem no mundo natural, assim como rádios, uma lanterna de petróleo iluminada, tudo em primeiro plano, a girar com a marca do movimento de eleição para Pollet: o travelling.
A casa interioriza o tempo, emite pontos de luz (a luz da vela, da lamparina, do candeeiro, das próprias imagens da televisão). A janela abre-se ao tempo e exibe as estações do ano: a neve, as flores anunciam a Primavera, as flores já são a Primavera. Figos. Um caracol releva-se na sua lentidão, na sua “nobreza, sabedoria, orgulho”. Ponge cria paralelos “os monumentos do homem assemelham-se às peças do seu esqueleto” e os ossos encontram-se com as ruínas da antiguidade.

O mar seria “a nossa única fuga”, e Pollet mostra-nos o mar. E também a natureza: campos de lavanda, fósseis; e mais imagens desfilam na televisão, o poema “Les Litanies de Satan” de Baudelaire é lido; Raimondakis o leproso grego, retirado do filme L’Ordre (1973), de Pollet, fala-nos e olha-nos nos olhos. Existem palavras dadas à sensualidade da chuva, à “modéstia” que ela provoca nas coisas, à “paciência” que é preciso ter perante ela. A chuva é comparável ao esquecimento e à memória.
Os planos fixam-se ou entram em movimento, o mundo circula no discurso e no olhar. Gravita-se pelo filme com a tentação de captar cada coisa, absorver cada fragmento (as repetições que se sucedem nas palavras e nas imagens acontecem numa cadência hipnótica).
Ponge fala-nos sobre estarmos perdidos perante tanto conhecimento, aconselha-nos a esquecer as coisas, a passearmo-nos, a estendermo-nos na relva, entre as árvores. Voltarmos ao princípio. Paralelamente, Pollet mostra-nos uma garrafa de água de vidro, uma pera sobre uma mesa e a natureza envolvente. O filme avança, adensa-se, conceptualiza-se, cria analogias: é preciso retirar “o coeficiente trágico ao absurdo” do mundo. As palavras do poeta absorvem a imagem de Pollet e a imagem deixa-se ir nas palavras.
Um jarro roda sobre si próprio em plena natureza, enquanto Lonsdale enuncia as regras e os conselhos de Ponge: primeiro, é preciso falar, segundo, é preciso incitar os melhores a falar, terceiro, é preciso suscitar o homem, incitá-lo a ser, quarto, é preciso suscitar a sociedade humana a ser, de tal forma que cada homem seja. O discurso atende ao humano, por entre as palavras de Ponge e o seu valor formal e poético (o tal “drapeado de palavras”, “canteiros floridos de vogais”, uma panóplia literária que dá relevo aos plurais, à pontuação, ao ponto, e, por fim, a um pedido de socorro do poeta às palavras incessantes). Porque tudo são palavras, como um “verdadeiro sangue”.

Dieu sait quoi é para Pollet, “Um filme para além do bem e do mal, onde Deus é uma hipótese de trabalho, um pouco como no sentido das palavras de Matisse quando dizia: ‘Acredito em Deus quando trabalho’ (…) se Deus se encontra nalgum lugar na obra de Ponge poderia ser nas articulações da sua linguagem (…) Em Dieu sait quoi, Deus pode adivinhar-se no minúsculo intervalo que separa as imagens. Ele está no raccord.”
Dieu sait quoi está repleto de palavras, de proemas, de coisas, de natureza, duma alquimia que junta a poesia à prosa. Há no filme muitos pontos de paragem, de absorção, de movimento – muito movimento! –, numa deambulação permanente, simultaneamente cerebral e afectiva, onde Deus lá saberá onde se deve alojar. E se não for noutro lado, então que seja no raccord escondido entre as imagens e as palavras.
Dieu sait quoi é exibido dia 31 de Março, pelas 19h30, na Sala Luís de Pina, na Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema , no âmbito da retrospetiva dedicada Jean-Daniel Pollet.