O mais recente filme de Ryûsuke Hamaguchi é um épico intimista sobre o peso do passado e do luto, que apesar da sua longa duração (três horas), pela forma complexa como aborda diferentes temas, não tem um momento que não seja parte de uma cativante e transformadora jornada emocional. Hamaguchi põe de lado o minimalismo que tinha caracterizado o filme anterior para regressar a uma linguagem visual mais clássica, mais próxima de Happî awâ (Happy Hour: Hora Feliz, 2015). Com uma narrativa que se expande para diferentes caminhos, continua a explorar a ideia dos vários papéis da ficção e da arte como formas de redenção; como curas para a realidade.

O início é surpreendentemente caloroso – tendo em conta os anteriores filmes contidos de Hamaguchi – no retrato de uma relação entre um casal, em que a sexualidade é um ponto central na sua comunicação, e evoca o início de outro filme recente baseado também num conto de Haruki Murakami, Beoning (Em Chamas, 2018). Esse filme era igualmente luminoso no início, inspirado pela descoberta e pela sexualidade, luz essa que se viria a apagar para não mais regressar – aqui acontece o mesmo. A primeira fractura que acontece entre o casal é a descoberta, pela parte dele, da infidelidade da mulher, quando um dia regressa a casa e a encontra a ter sexo com um homem – ele sai de casa sem que ela perceba, e sem a confrontar. A segunda fractura (talvez afinal a primeira?) é a nossa descoberta da existência de um trauma partilhado, de uma filha que morreu ainda criança, quando os dois eram novos.
Ele, Yûsuke Kafuku, um actor de teatro consagrado, ela, Oto, uma produtora e argumentista de televisão, partilham uma espécie de jogo de ficção, que é também a base de um jogo de amor. Ela vai desenvolvendo uma história que é composta durante os encontros sexuais com o marido, que depois lhe recorda, no dia seguinte, o que ela entretanto esqueceu – desta vez sobre uma rapariga adolescente que visita sorrateiramente o quarto de um rapaz de quem está enamorada, para, de forma transgressiva, ir deixando pequenas pistas, como se quisesse ser descoberta [uma evocação de Chung Hing sam lam (Chungking Express, 1994)?]. É a ficção, o acto de criação como uma forma de partilha e descoberta, mas também parte de um acto de encenação – fica a dúvida (e Hamaguchi filma este segmento de forma misteriosa, quase hitchcockiana), se perante as feridas conhecidas, será esta uma forma de manter a relação viva, a ficção como forma de esquecimento, de apagar as fragilidades da realidade.
A representação da peça terá uma particularidade: será interpretada por actores que falam em diversas línguas. Dessa forma os actores são forçados a olhar para além das palavras, para os pequenos gestos e expressões. É a proposta do filme também, olhar para pequenos gestos como forma de expressões emotivas.
É uma dúvida que irá assombrar Yûsuke durante o percurso restante, já que pouco depois este encontra Oto inanimada em casa. Entre o memorial da filha que perderam e o funeral de Oto são poucas as cenas, mas o seu efeito é significativo: da última vez que os dois viajam no carro de Yûsuke, é ela quem conduz, uma premonição para Yûsuke no lugar do passageiro, e Oto entrega-lhe uma gravação da peça Tio Vânia, para este poder ensaiar as falas com a ajuda da voz dela. O filme avança alguns anos e Yûsuke encontra-se sozinho, a dialogar com essa voz agora fantasma da mulher desaparecida, e as frases que diz confundem-se com as da peça de Tchekhov, como se ancorasse a sua existência às convicções dessa personagem e anula-se as suas próprias. De repente, aos quarenta minutos de filme (quando começam os créditos iniciais – um gesto arrojado), entramos noutro filme. Esta capacidade de transformar, em andamento, o filme, de fazer com que este se metamorfoseie noutro registo, eleva Doraibu mai kâ (Drive My Car – Conduz o Meu Carro, 2021) a algo de extraordinário: não sabemos o que esperar e aí revela-se a vontade de Hamaguchi em confundir expectativas.
No segundo acto do filme, Yûsuke desloca-se, no seu estimado Saab 900 Turbo vermelho (mais um sinal de apego ao passado) a Hiroshima, para dirigir um workshop para a apresentação da peça Tio Vânia. Aqui encontra logo uma surpresa: por razões de segurança é impedido de conduzir e tem de aceitar os serviços de Misaki, uma motorista que o irá transportar. E uma outra surpresa: o reaparecimento de Takatsuki, um jovem actor que é na verdade o homem que Yûsuke encontrou em casa a ter sexo com a mulher. Yûsuke acolhe-o no seu workshop, entregando-lhe o papel principal da peça e, paulatinamente, os dois vão tendo uma série de conversas sobre as suas memórias de Oto. Estes três personagens revelam-se importantes pela forma como se definem em relação ao passado: se Yûsuke parece preso ao passado, e Misaki parece fugir do passado, Takatsuki vive apenas no presente – demasiado até.
A representação da peça terá uma particularidade: será interpretada por actores que falam em diversas línguas: japonês, mandarim e até língua gestual. Dessa forma os actores são forçados a olhar para além das palavras, para os pequenos gestos e expressões. É a proposta do filme também, olhar para pequenos gestos como forma de expressões emotivas, como pequenos passos. As sequências de preparação da peça evocam o seminário de improvisação de Happy Hour, mas a artificialidade do teatro tem aqui um propósito: o teatro é para Yûsuke uma forma de repetir, infinitamente, o passado; de se manter preso a uma memória, sem variações – é a arte como refúgio, como barreira de contenção.
Hamaguchi é exemplar a trabalhar as escalas, quer na forma como usa o espaço, quer como usa a expressividade dos actores: repare-se nas diferenças entre o aspecto frio da sala de ensaios e a distância entre os actores e o contraste com a forma como filma um jantar de Yûsuke em casa de um dos actores, onde os estranhos à mesa ficam imediatamente mais cúmplices (com os dois convidados quase sempre no mesmo plano); ou as conversas no bar de hotel entre Yûsuke e Takatsuki, próximos fisicamente mas muito distantes um do outro (o pormenor do plano do gira-discos), por oposição à crescente proximidade emocional entre Yûsuke e a sua condutora, duas personagens aparentemente frias, mas que partilham uma afinidade pela solidão e que, feridas pelo passado, vão ganhando confiança para se abrirem sobre a sua história pessoal, como se o espaço do carro fosse diminuindo.

O simbolismo no filme é difícil de ignorar: Hiroshima é uma cidade dominada pelo passado, o seu nome é sinónimo de tragédia, mas também de regeneração e recuperação. Se até 1945 o imperialismo japonês infligia agressões às populações coreanas e chinesas, muitos anos depois, a coabitação pacífica é evidente na interpretação da peça de teatro, e essa abordagem que valoriza a multiculturalidade e as diferentes linguagens acrescenta uma riqueza inestimável na adaptação da peça de um autor russo, afirmando a arte também como forma de entendimento e partilha – lições para tempos sombrios, vislumbres de um possível futuro distante.
Mas falta reduzir isso a uma escala pessoal, e será uma revelação de Takatsuki que irá funcionar como impulso para nova mudança de direcção do filme. Se até aqui o tempo passado no carro era uma espécie de falso road movie, em que os ocupantes, Yûsuke e Misaki, repetiam trajectos sem sair realmente do lugar (uma referência à peça À Espera de Godot, que aparece no início do filme), no acto final o filme aproxima-se realmente de um road movie, no sentido em que as duas personagens principais estão dispostas a seguir em frente. O contraste entre a forma como os dois são reféns do passado – um paralisado no tempo, o outro a tentar esquecê-lo – acaba por as aproximar, e o sentimento de culpa que partilham encontra finalmente resolução. Drive My Car é um triunfo de Hamaguchi, sobre a arte de contar uma história e de nos colocar ao lado destas personagens, incondicionalmente.