Um dia abres os olhos e descobres
os inexactos corpos misturados
e ficas sem saber de que maneira
este estranho centauro nomear.
António Franco Alexandre, em Poemas
Depois de se ter destacado pela sua notável capacidade de inovação na realização de curtas-metragens de “encomenda”, de que Nuit et Brouillard (Noite e Nevoeiro, 1955) sobre os campos de extermínio nazi constitui uma referência duradoura, Alain Resnais estreia-se na longa-metragem com Hiroshima mon amour (Hiroshima, Meu Amor, 1959), um filme destinado a permanecer, enquanto marca do questionamento próprio da modernidade, um recurso último para sobreviventes, perante a destruição humana que os horrores do séc. XX puseram diante dos nossos olhos e que nos dias de hoje volta a assombrar-nos.

Tendo em conta a linha traçada nas sete curtas-metragens que o jovem realizador, formado no IDHEC, a escola de cinema de Paris, já então concluíra ― Van Gogh (1948), Paul Gauguin (1950), Guernica (1950), Les Statues meurent aussi (1953, co-realizado com Chris Marker), Nuit et brouillard (1955), Toute la mémoire du monde (1956) e Le Chant du Styrène (1958) ― a casa de produção cinematográfica francesa, Argos Films, pela mão de Anatole Dauman, propõe a Alain Resnais a realização de um filme de longa-metragem sobre a bomba atómica.
Há, no percurso criativo de Alain Resnais, dois elementos da “construção cinematográfica” que cedo ganham relevo na transformação procurada do documentário comentado do pós-guerra, de que as “Actualités françaises” eram a referência visada, através da adopção de uma posição crítica relativamente à representação da realidade e ao papel da voz off, que tende a impor-se com a renovação da relação entre a palavra e a imagem.
André Bazin dá conta da renovação em curso em três artigos (por sinal, os últimos que escreveu) sobre o filme de Chris Marker, Lettre de Sibérie (1958), nos quais o novo estilo é definido como “ensaio documentado”. Aduzindo uma referência para a expressão “ponto de vista documentado”, anota que a mesma está presente no título completo do filme de Jean Vigo À propos de Nice ― point de vue documenté (1930), o que, no contexto da sua aplicação ao trabalho de Chris Marker, colaborador próximo de Alain Resnais, tem o mérito de valorizar a mudança trazida pela adopção do ensaio, histórico e político, documentado pelo filme. Segundo Bazin, “as inovações profundas e radicais introduzidas por Chris Marker” visam estabelecer uma relação dialéctica entre imagens e texto (palavra, comentário), tendo por princípio que “a matéria primeira do filme não é nem a imagem nem o comentário, mas a ideia” e, por isso, essa relação também é designada lateral, uma vez que não é suportada numa montagem de imagem com imagem, mas numa montagem de “incidência e reflexão da ideia sobre a imagem”[1].
“Quisemos fazer um filme sobre o amor. Quisemos dar o quadro das piores condições do amor, as condições mais comumente culpadas, as mais censuráveis, as mais inadmissíveis” – Marguerite Duras sobre Hiroshima mon amour.
Com vista à realização de Hiroshima, Meu Amor, descartada a possibilidade da escrita do argumento e dos diálogos ser confiada a Françoise Sagan ou Simone de Beauvoir, a escolha de Alain Resnais, que tinha decidido trabalhar com uma mulher ocupando essa função, recaiu em Marguerite Duras. No livro publicado um ano depois da estreia do filme, contendo, para além da sinopse e diálogos, outros textos que aparentemente não fazem parte do filme, Marguerite Duras declara, numa curta introdução, pretender dar conta o mais fielmente possível do trabalho que fizera para Alain Resnais e esclarece o âmbito do mesmo nos seguintes termos: “Que ninguém fique surpreendido por a imagem de A. Resnais praticamente nunca ser descrita neste trabalho, resumindo-se o meu papel a dar conta dos elementos a partir dos quais Resnais fez o seu filme” [2]. A réplica, por assim dizer, de A. Renais, recordando o momento em que já se encontrava em rodagem no Japão e ouvia sem parar as gravações dos diálogos que M. Duras lhe enviava (“não esquecerei os estranhos dias passados no meu quarto tendo por companhia a sua voz”), acrescida da indicação sobre o que pretendia da sua escrita para as cenas de flashback (“faça como se comentasse as imagens de um filme já feito”) são anotações que nos permitem inferir da justeza da conclusão retirada por Alain Boillat, segundo a qual “a voz do filme é antes de tudo o mais a da própria Duras” [3].
No seu bem documentado texto, Jennifer Cazenave acrescenta: “Neste filme centrado numa voz feminina fora de campo, que constantemente se distancia das imagens e nos faz ver o visível de forma diferente, a representação de um mundo destruído toma a forma de um encontro entre elementos dissemelhantes: duas cidades (Hiroshima e Nevers), duas personagens (uma atriz francesa e um arquiteto japonês) e dois traumas (a bomba atómica e a tonsura de mulheres na Libertação). Ao nível formal, Hiroshima, Meu Amor entrelaça imagens de diferentes materiais (ficção e documentário), rompe a relação entre som e imagem (assincronismo) e modifica a representação do flashback (deslizando do passado para o presente)” [4].
Se, no final dos anos 50, encontrar uma história plausível para a catástrofe de Hiroshima não se vislumbrava ser tarefa fácil, avaliações posteriores destacam o gosto particular de Resnais em pensar cada novo filme como um “protótipo”, a ponto de se poder mesmo “ter a impressão de que ele preferia sempre filmes infazíveis para ter a possibilidade de procurar a maneira de os realizar” [5]. Por outro lado, há uma declaração de Godard sobre o filme, feita em termos retrospectivos, que vale a pena recuperar: “Lembro-me de ter ficado muito ciumento com Hiroshima, Meu Amor. Dei comigo a pensar: “um bom filme, mas escapou-nos; impossível ter qualquer controlo nisso” [6].
A dimensão do que terá escapado a outros poderá ser avaliada pela crueza da intervenção de Marguerite Duras vinda a terreiro afirmar, em carta aberta, perante os obstáculos erguidos à selecção do filme para o Festival de Cannes, onde acabou por ser exibido a 8 de Maio de 1959, qual fora o seu firme propósito: “Quisemos fazer um filme sobre o amor. Quisemos dar o quadro das piores condições do amor, as condições mais comumente culpadas, as mais censuráveis, as mais inadmissíveis”. Para assim mostrar que é a mesma cegueira que se abate sobre Hiroshima, onde os japoneses ficam sem cabelo por causa da bomba atómica e sobre Nevers, onde a heroína é submetida a uma brutal tonsura, levada a cabo por patriotas vingadores do seu amor por um soldado inimigo.
É, porventura, temerário fazer equivaler, de alguma forma, um drama colectivo (da História global dos homens) a uma história individual, essa “história banal, história que acontece em cada dia, milhares de vezes”, nas palavras de Duras, “história de amor de quatro vinténs”, na declaração redentora da heroína, de que o próprio título do filme é tributário ao propor a associação chocante, escandalosa, de um terrível acontecimento histórico (Hiroshima) com a expressão “Meu Amor”. Na tradução do título original para português, como aliás aconteceu com a tradução para outras línguas, houve o acrescento de uma vírgula. No final da sinopse escrita por Marguerite Duras essa conexão era expressa do seguinte modo: “é como se o desastre de uma mulher tonsurada em Nevers e o desastre de Hiroshima se correspondessem exactamente”. Hiroshima, Nevers, lugares que ainda não são nomes, mas que servirão para Ele e Ela se chamarem, um ao outro.




O filme narra uma noite de amor entre uma actriz francesa que viera a Hiroshima rodar um filme pacifista e um arquitecto japonês, e desde o início do filme, como numa litania, há uma voz que nos conduz: “Je te rencontre. Je me souviens de toi. Qui es-tu? Tu me tues, tu me fais du bien.” Entre os braços do japonês, contra a sua pele, ela rememora pela primeira vez a história do seu primeiro amor com um soldado alemão em Nevers em 1944, e não há como não glosar o recitativo durasiano, como se nós o soubéssemos já de cor: “o soldado alemão é abatido, ela fica louca, é-lhe rapado o cabelo, é metida numa cave”.



Comparando o seu método de trabalho ao fazer um filme com o de “um arqueólogo que encontra uma estátua coberta de terra no deserto”, Alain Resnais identifica neles um momento crucial, cuja importância advém de “saber em que momento se deve parar com os pequenos golpes de cinzel que põem à vista a obra de arte”.
Escavando no passado em Nevers, dir-se-ia que o impensável, o indizível, o irrepresentável se afundou num implacável silêncio de quatorze anos. Resnais não o fez por menos, no filme deixou apenas o som dos sinos da igreja, no dia em que Nevers foi libertada. O toque dos sinos, e um grito.
Marguerite Duras sabia bem quanto valia um grito. “Enquanto escrevia [Le Ravissement de Lol V. Stein (1964)], diz ela, tive um momento de medo. Gritei. Penso que algo foi ultrapassado, mas que me escapou, dado que é possível ultrapassar limites, sem que disso se tenha uma consciência clara, um limite de opacidade.[…] Estava a escrever e de repente dei-me conta de que gritava, porque tinha medo. Não sei muito bem do que é que tinha medo. (…) medo de perder a cabeça…” [7]
Se bem que possa haver gritos mais terríveis, como o “grito engolido” por Suzanne Urban, protagonista do caso analisado por Ludwig Binswanger. Suzanne Urban, que viera a Paris com o marido, a quem morrera um irmão com um cancro na vesícula, consultar um urologista e fazer uma cistoscopia, faz o seguinte relato: “Acompanhando o meu marido que viera ao médico, aguardava na sala de espera: era a tremer e a chorar que antecipava os seus terríveis gemidos. O médico dissera-lhe que ele tinha uma pequena lesão na vesícula, mas a mim, ao voltar as costas, fez-me uma cara tão horrivelmente destituída de esperança que o meu corpo inteiro ficou hirto e eu abri a boca de terror; foi então que o médico puxando-me rapidamente pela mão, me fez sinal para não mostrar nada do que sentia.” [8]



Sobrevivente é aquele que não viveu a experiência até ao fim, a experiência do desastre, da ignomínia, da destruição, encontrando-se, paradoxalmente, por isso, na impossibilidade de falar do mais que aconteceu e na impossibilidade de testemunhar inteiramente o que viu.
Que fazer, hoje, para desmentir as primeiras palavras do filme: “― Tu não viste nada em Hiroshima. Nada.”
Guardado o filme como preciosidade Do álbum que me coube em sorte, terei reunido instruções mínimas, perante o que está diante dos nossos olhos: recusar compreender; não desviar os olhos do horror; perseverar.
Quem sabe se o que, na altura, terá escapado a Godard, pelas suas vias, ele não terá deixado de o perseguir em Une catastrophe (Jean-Luc Godard, 2008), filme-anúncio, de um minuto, realizado para o festival de cinema de Viena, em que, retomando a glosa de Rilke (e jogando com a etimologia grega), declara que “uma catástrofe é a primeira estrofe de um poema de amor”. Cito ainda as últimas palavras de Marguerite Duras, nos textos em apêndice ao argumento: “Ela entrega ao japonês ― em Hiroshima ― o que de mais caro há no mundo, na sua pura expressão do presente, a sobrevivência à morte do seu amor, em Nevers.” [9]
[1] André Bazin, “Lettre de Sibérie – Un style nouveau: ’Essai documenté'”, em Écrits Complets II, ed. Hervé Joubert-Laurencin, [Radio-Cinéma-Télèvision, no 461, 16 Novembro 1958] (Paris: Éditions Macula, 2018), [2677], 2510.
[2] Marguerite Duras, Hiroshima mon amour, [1960] (Paris: Gallimard / Folio, 1971), 19.
[3] Jennifer Cazenave, “La voix off au féminin : Hiroshima mon amour et Aurélia Steiner”, Cahiers de Narratologie, n. 20 (2011): 3–4, http://narratologie.revues.org/6365; DOI: 10.4000/narratologie.6365.
[4] Idem, 3.
[5] Didier Péron, “Alain Resnais, la dernière ellipse”, Libération, 2 de março de 2014, https://www.liberation.fr/cinema/2014/03/02/alain-resnais-la-derniere-ellipse_984073/.
[6] Jean-Michel Frodon, Le Cinéma français, de la Nouvelle Vague à nos jours (Paris: Cahiers du Cinéma, 2010), 29.
[7] Marguerite Duras e Michelle Porte, Les Lieux de Marguerite Duras, Minuit double (Paris: Les Éditions de Minuit, 2012), 102.
[8] Apud Henri Maldiney, Penser l’homme et la folie, Collection Krisis (Grenoble: Éditions Jérôme Millon, 1991), 278.
[9] Duras, Hiroshima mon amour, 155.