Heard melodies are sweet, but those unheard are sweeter.
John Keats
Estamos num sonho de postal ilustrado, uma paisagem coberta por um manto de neve, um lago gelado em que patinadores dançam, um casal apaixonado que se abraça, vultos que se dissolvem numa espécie de fotografia antiga, soam notas de Que Sera, Sera, o tema popularizado por Doris Day. Mas, afinal, não estamos no Inverno, nem nesse tempo perdido. No Verão pegajoso de Nova Iorque, a neve é feita de pétalas que as árvores jorram generosamente no chão. Uma tempestade de pétalas, em lugar de uma tempestade de neve, pétalas que se colam à pele.
In the Cut (In the Cut – Atracção Perigosa, 2003) é feito de opostos e contradições que coabitam pacificamente. Num filme em que as relações sexuais são mostradas de forma tão franca, existe também um espaço para a intrusão da poesia, o que resulta num efeito de choque que poderia parecer, à partida, estranho. Tudo é intenso – o calor, o sexo, as cores, as palavras. De certa forma, é uma intensidade própria da cidade em que nos encontramos, pois sabemos bem que Nova Iorque não é uma cidade para fracos (algo que o cinema sempre nos ensinou). Esta é a pulsão paralela do calor, do sexo, da violência que havíamos já visto em Summer of Sam (Verão Escaldante, 1999), de Spike Lee. Uma pulsão que vemos no simples acto de escrever a palavra “disarticulated”, uma palavra escrita com dedicação, uma caligrafia lenta, cuidada, refinada, para um termo que descreve a violência extrema.
Há uma delicadeza, uma sofisticação, em Frannie (Meg Ryan) que resultam do seu amor à literatura, uma certa elevação da palavra. Mas, além de ser professora de inglês, Frannie também se envolve com o lado “sujo” da palavra, estando a escrever um livro sobre o calão urbano. Calão invariavelmente sexual ou violento, ou ambos, e por vezes espirituoso.
É uma coexistência de contradições que identificamos, desde logo, em Cornelius (Sharrieff Pugh). Ele percebe que o cavalheirismo pode jogar a seu favor, pratica-o de forma um pouco desajeitada, mas o seu comportamento rapidamente resvala para a irascibilidade ou mesmo para a violência quando não consegue levar avante as suas pretensões.
Talvez o mundo real fique aquém da beleza das palavras, impelindo Frannie a fugir para o mundo da imaginação. Este é um mundo no qual ela se sente demasiado confortável, por isso vemo-la a caminhar pelas ruas de forma algo insensível, a enfrentar a cidade com absoluto pragmatismo. Nova Iorque é uma cidade que ela conhece bem demais, tendo construído uma armadura para resistir à violência. Veja-se como ela não abre a porta a Malloy (Mark Ruffalo), desconfia mesmo da autenticidade do crachá que ele exibe, não deixando de ligar primeiramente para a esquadra de polícia para confirmar a sua identidade. Mas este é um filme de Jane Campion. Isolar-se da violência no seu todo implica também isolar-se da violência dos sentimentos. Se isso era verdade em The Piano (O Piano, 1993), não será menos verdade em In the Cut.
O que tenderá mais a condicionar a vida emocional de Frannie? Ter o exemplo de felicidade dos pais, um momento de romantismo exacerbado? Ter o exemplo de infelicidade dos pais, a mãe abandonada e incapaz de recuperar dessa mágoa? Se um exemplo de felicidade pode ser limitador, algo de irrepetível, de inalcançável, o exemplo de infelicidade pode também assombrar a vida de Frannie, fazê-la sentir destinada a dar continuidade a uma história com final infeliz. O pai matou a mãe de desgosto – afinal, as palavras do amor e da violência são as mesmas.
O enamoramento de Frannie pela palavra é tal que, frequentemente, o fascínio suplanta a ofensa. Mas as palavras, como o desejo, parecem por vezes desajustadas, como peças erradas de um puzzle.
E falando de outros assombramentos… Aquele Que Sera, Sera que continua ecoando, lembrando-nos como Doris Day foi tantas vezes a mulher de sucesso, a mulher de carreira, independente, decidida, mas a quem Hollywood quis sempre ensinar que isso não era suficiente. Como em The Thrill of It All (O Tempero do Amor, 1963), em que Day é uma dona de casa suburbana que conhece um sucesso repentino e inesperado como estrela da televisão. Demasiado sucesso, que a faz negligenciar as tarefas domésticas, os filhos e o marido. Como é óbvio, o final só poderá ser feliz se ela renunciar à carreira para voltar ao seu papel de típica dona de casa.
Essas inquietantes ameaças de um “idílio” doméstico, de uma vida familiar, vão-se sucedendo. Desde logo, estão na pulseira que Pauline (Jennifer Jason Leigh) oferece a Frannie, chamada de courtship fantasy. Uma pulseira em que cada um dos berloques representa um dos “troféus” da vida da mulher casada, culminando no berço com o bebé. Aliás, esta não é a única jóia de significância ambivalente. A própria aliança de noivado, que seria símbolo de um enlace feliz, símbolo de amor, quando oferecida pelo assassino às suas vítimas, carrega apenas a promessa de morte. Estas promessas e ameaças estão em todo o lado, é impossível escapar à ideia de família até mesmo no metro, sítio por excelência de solidão e isolamento, mas onde vemos dois homens carregando um gigantesco arranjo floral feito de rosas vermelhas (um arranjo floral fúnebre?) no qual lemos a palavra “mãe”.
A dado momento ouvimos o clássico dos Temptations, Just My Imagination (Running Away With Me), a canção que Frannie afirma ser a sua favorita. Só podia ser esta música, a história de um amor intenso, descrito em cada pormenor, uma vida inteira partilhada, mas… tudo não passava de imaginação. Um amor vivido como Frannie vive as suas paixões, tudo na imaginação, tudo no inconsciente, um retraimento em expor-se à realidade, sempre calada, mas sendo possível adivinhar um sem-número de diálogos a acontecer na sua cabeça (um silêncio exterior em contraponto com uma exacerbada actividade interior, o que fica sublinhado pelo facto de existir uma vidente a exercer actividade no rés-do-chão do prédio de Frannie). Exactamente o oposto de Pauline, a “poetisa do amor”, que confessa a sua incapacidade para usar a imaginação, ela que apenas sabe viver tudo imediatamente, experimentando precipitadamente sem pensar nas consequências, rapidamente evoluindo de mulher apaixonada a stalker. Ela é, também ela, uma “victim of desire” (recorrendo à expressão usada por Cornelius, quando se refere ao serial killer que é tema do seu ensaio).
Talvez a vivência interior de Frannie esteja intimamente ligada ao romance que é objecto das suas aulas, To the Lighthouse, de Virginia Woolf. Vemos Frannie virada para o quadro, um farol desenhado num vermelho inquietante, um simbolismo fálico óbvio. O mesmo farol que vemos materializado em cima da secretária na esquadra de polícia e que, como é evidente, será o local da promessa de amor e de morte – “I mean, all women want love, right? What about you? You want love? Wanna be kissed?”.
É a partir da imaginação que Frannie se veste para o seu date com Malloy. A partir da sua imaginação, vestindo-se como a sua versão enquanto mulher pronta a ser seduzida, mas também a partir da imaginação do homem que seduz, deixando o detective desarmado, preso à imagem que vê reflectida no espelho retrovisor, a ponto de quase se esquecer de ir ao seu encontro. Aquilo que Frannie conhece e imagina sobre Malloy vai criando nela uma reacção de atracção e de repulsa, bem visível logo no primeiro encontro no bar, com Malloy passando rapidamente da conversa íntima para uma conversa rude, entre homens, com o seu colega. É o mesmo homem, mas que usa vestes diferentes quando está junto dos amigos homens, um convívio que impõe uma certa carapaça de masculinidade. E talvez ele seja o homem que ela viu na cave do Red Turtle, uma possibilidade que a excita, mesmo contra a sua vontade.
Sendo certo que em Malloy descobrimos igualmente uma vida íntima que ele vai tentando esconder, nem sempre de modo eficaz. Alguns traumas que decorrem ainda de um casamento falhado, mas também do seu receio de rejeição por parte de Frannie, medo de que ela ache que ele não está à altura. “Would you get engaged to me?” – uma pergunta que Malloy deixa no ar, quase satisfeito pelo facto de a conversa se ter desviado por um outro caminho, poupando-o à resposta. Estas são pessoas que hesitam, que são cautelosas, que procuram um airbag sentimental, o medo paralisante de decidir e de ser ferido, a relutância em deixar o território seguro da intimidade imaginada. É o oposto da história de amor que Jane Campion nos deu a conhecer em Bright Star, porque em John e Fanny havia uma necessidade de viver a vida sofregamente, já que a morte podia acontecer (e efectivamente acontecia) aos vinte e cinco anos.
Frannie e Malloy movem-se, pois, neste terreno instável, abandonam o porto seguro da imaginação (“I was doing just fine before I met you. Just fine.”), servem-se de palavras e de actos carregados de geografia (Malloy brinca com ela, apelidando-a de Miss Isthmus). O primeiro momento de vulnerabilidade partilhado por Frannie e Malloy acontece justamente quando atravessam o rio em direcção a um pedaço de natureza que tem tanto de belo quanto de sórdido, um cenário que Frannie descreve como “o tipo de sítio usado por alguém para se desembaraçar de um cadáver”. Inadvertidamente, Malloy torna evidente a proximidade que une os gestos do amor e os gestos da violência, já que a viagem feita pelos dois é, em tudo, semelhante à viagem que Frannie e Rodriguez (Nick Damici) farão em direcção ao farol, o lugar ultra-romântico e de enorme carga sexual que é, afinal, palco de violência.
As palavras são tão determinantes para Malloy quanto para Frannie. Afinal, foi usando e confiando na palavra que Malloy conseguiu obter vantagem profissional, ouvindo e ganhando a confiança dos detidos, acabando por ser bem cedo promovido a detective. E o enamoramento de Frannie pela palavra é tal que, frequentemente, o fascínio suplanta a ofensa (“Good phrase, “no sense of cock.””). Mas as palavras, como o desejo, parecem por vezes desajustadas, como peças erradas de um puzzle. “I can be whatever you want me to be.” / “I want a lot.” / “Women are never satisfied”. Sim, as mulheres tendem a querer tudo. Mas, por vezes, esse tudo não é mais do que depositar-se nos braços do homem, naquele abraço final.