Com o seu mais recente filme, The Power of the Dog (O Poder do Cão, 2021), Jane Campion recuperou uma visibilidade que as duas últimas décadas não haviam tido (ainda que os amantes de séries de televisão tivessem cantado entusiasmadas loas a Top of the Lake). Mas aqui fala-se de cinema, desse que se vê numa tela grande, num espaço público, entre desconhecidos. Grande ironia, afinal, que The Power of the Dog tenha sido “despachado” para o Netflix e que só a temporada dos galardões tivesse convencido os distribuidores a darem uma chance à exibição tradicional do filme, em sala. Para celebrar este “emendar da mão”, e para saudar a obra de uma realizadora que andava um bocado desaparecida, os walshianos e walshianas prepararam uma Sopa de Planos especial, reunindo algumas das imagens que mais os haviam marcado nesta filmografia que já conta com quatro décadas de actividade. Planos que, invariavelmente, remetem para o desejo e a sexualidade, o grande assunto que domina a carreira desta cineasta neozelandesa.
No entanto, esses momentos contemplativos não deixam de revelar, por vezes, uma certa ironia (nunca condescendente) que revela um olhar muito perspicaz, sempre atento a certos hábitos automáticos, a certas obsessões miudinhas que cada um traz consigo. Por outro lado, esses momentos mostram, uma e outra vez, a vontade da realizadora explorar as questões da sexualidade borbulhante das suas personagens (pre-)adolescentes. Esse é possivelmente o tema recorrente desses primeiros filmes de Campion: as figuras femininas a braços com os primeiros encontros (e choques) sexuais, descobrindo os seus corpos e os dos outros, e o que ambos podem fazer em conjunto. A forma como se apresenta isto (mesmo que em A Girl’s Own Story se fale de incesto e em After Hours de abuso) é reveladora do modo como Campion encara a representação da sexualidade feminina no seu universo fílmico, naturalmente. Deste período (e desse modo de encarar o sexo e o feminino) fica-me a imagem que encabeça estas linhas, imagem de puro erotismo e de máxima candura pubescente.
Ricardo Vieira Lisboa
Tanto no cinema de Jane Campion é sobre o que permanece por dizer. Sempre que penso no seu corpo de trabalho recordo-me do pontilhismo com que retrata as dinâmicas psicossexuais dos seus personagens. Numa horizontalidade indirecta que me leva sempre de volta a Lynne Ramsay, porque poética – os sinais da narrativa a ser contada encontram-se nos planos de natureza individual, nos detalhes; naquilo que quase sempre nos escapa – a realizadora apresenta uma linguagem háptica para penetrar o que não é sentido de outra forma. A questão surge sem nunca se impor. O que pode ser visto naquilo que achamos que vemos? Neste plano que escolhi ressoa uma resposta à metáfora que, em Sweetie, a sua primeira longa-metragem depois do telefilme Two Friends (1986), gira em torno da força implacável das raízes das árvores, agarradas ao solo onde são plantadas.
Voltar aos primeiros segundos do filme é reparar que flutuamos por cima do mundo de Kay (Karen Colston), as suas pernas e depois a cara tapada, enquadrada por uma carpete florida, até à aparição de Dawn (Geneviève Lemon), ou Sweetie, nome afectuoso para a explosiva irmã de Kay, sedenta de atenção, que nos leva a cair na casa. Kay é a figura oprimida que Sweetie atormenta, e esta última a escuridão que a persegue. É um combate maioritariamente invisível, mas sempre presente. Sentada num restaurante com o namorado, o silêncio que tem sobrevoado a relação de ambos é enfrentado. Até aqui, ainda não sabíamos de Sweetie. Mas já Kay enrolava os pés nas pernas de uma cadeira assim que nela se senta. Tremida, precisa dessa estabilidade acrescida. Não confia no solo onde os pés aterram para permanecer muito tempo. Agarrada à fobia de tudo aquilo que, com a sua força, consegue ofuscar a lógica, lá desvia a conversa com Louis (Tom Lycos) sobre a falta de intimidade na relação. Quando Sweetie irrompe casa fora mais tarde, Jane já tinha preparado a procura de identidade da sua protagonista. As raízes de Kay só alastram o medo que a paralisa. Há que redefinir a própria ideia de desejo e apetite humanos. O cinema de Campion é esse abridor de portas.
Susana Bessa
Acontece, por vezes, que a passagem do tempo nos permite encarar certos filmes sob novas, e mais lisonjeiras, perspectivas. De insuportável, In the Cut, de Jane Campion, mantém o visual pós-Seven, inundado de filtros e luzes (vermelhas, amarelas, verdes), e apostado na desfocagem e no efeito bokeh. No entanto, o falhanço visual acaba por funcionar em favor do filme, uma vez que o achatamento da imagem contribui para a des-substancializar, retirando-lhe realidade e, por conseguinte, realismo. A recusa do filme foi generalizada porque, então, na miopia característica do agora, muitos não conseguiram ver que In the Cut – não obstante os sexos, as carnes e as vísceras – não é um filme realista.
É, sim, um filme escrito em prosa poética, uma rêverie oitocentista (com Meg Ryan em blusa e jeans), com tanto de Jack the Ripper quanto de poesia simbolista. De certo modo, e noutro universo temático (e, mesmo, conceptual), In the Cut é o filme que The Piano (O Piano, 1993) gostaria de ter sido: um sonho romântico construído de acordo com a lógica instável (instável como a imagem desfocada e o bokeh) das paixões. Ao contrário dos filmes psicossexuais dos anos 90 no rescaldo dos quais surge [Brian de Palma e Basic Instinct (Instinto Fatal, 1992) à cabeça], e que haviam estabelecido um elo produtivo entre o onirismo e a lógica, o filme de Campion é um thriller sem razão. Pelo contrário, tem apenas desrazão e mistério, é puramente sensorial, um filme que está dentro da cabeça de quem está dentro dele.
José Bértolo
É difícil escolher apenas um plano de Bright Star, uma obra que faz jus ao verso de Keats, a thing of beauty is a joy for ever. Aqui, a temporalidade desse “sempre” é feita de coisas momentâneas, dos prazeres e dores que existem apenas na fragilidade de um tempo contado. É, desde o início, um filme de sentidos: audição, olfacto, visão, paladar e, claro, tacto. Um filme de ambientes: onde humanos, animais, plantas e clima partilham espaços, encontram-se, tentam apreender-se. É uma obra de arte sobre outras artes, sobre a relação muitas vezes desalinhada entre talento e reconhecimento. É um filme aparentemente simples sobre o mais banal e mais extraordinário dos temas. Centrando-se nos anos de “breve encontro” de Keats com Fanny Brawne – ou, antes de Brawne com Keats – Campion mostra, com uma (apenas aparente) tranquilidade, o estado de enamoramento de duas pessoas para quem as possibilidades são sempre limitadas (seja por dinheiro, doença ou expectativas de outros).
Essas limitações, e a vontade de as superar, estão particularmente bem ilustradas por duas cenas que rimam entre si: o contacto imaginado através da parede que separa os quartos dela e dele. Há uma primeira aproximação, de pé, com a energia e a expectativa de algo que começa e, mais tarde, deitados, com um certo desalento que é tanto de certeza (do que sentem) como de incerteza (pelo tempo que lhes resta). É a segunda quase-repetição, do lado de Fanny, que escolhi para esta sopa de planos. Um plano do lado de Fanny porque o filme é construído da perspectiva dela, apresentando-a como tão ou mais complexa que Keats. Uma mulher que quer tecer a sua própria vida – apesar da constante teia de considerações alheias sobre como se deve comportar ou vestir, o que consegue compreender ou com quem se deve relacionar –, que ousa tentar ultrapassar essas barreiras (aqui tão bem representadas pela barreira física que é a parede). Como os planos de mãos e/ou rostos (que, na verdade, vemos sempre à vez, nunca juntos) perante essa divisão, Bright Star é sobre esse algo “invisível aos olhos”, a imaginação de possibilidades além de paredes, um estado de graça e de tortura que é o amor em potência – e a criação artística.
Helena Ferreira
Sensivelmente desde The Piano que detecto em Jane Campion uma certa tendência (mais latente do que patente nos filmes) para uma concepção de cinema teorizada e criticada por Serge Daney, a partir de um termo de Jean-Claude Biette, a propósito de Out of Africa (África Minha, 1985) e que o crítico designa por “cinema filmado”, como se em certas sequências, por força da beleza auto-complacente das imagens e da música sentimentalista, se procurasse publicitar o cinema como espectáculo de encher o olho, mesmo que seja um espectáculo, claro está, “delicado”. Ao mesmo tempo, a verdade é que os filmes de Campion costumam responder, na sua própria tessitura dramática, que é visual e sonora, com uma contra-tendência: a de se desviarem de um caminho prescrito, apostando mais numa ideia vaga de atmosfera dramática do que numa exposição excessiva do drama e do virtuosismo estético.
The Power of the Dog apresenta-se como o último estádio neste auto-domínio sobre a sua matéria fílmica, sendo brusco e elusivo quando se esperaria que fosse espalhafatoso e lacrimejante, sendo contemplativo e “estético” (mas não demasiado) quando se esperaria, dentro do receituário dominante, que fosse directo e “transparente”. Não há assim tantos planos a destacar porque o filme está sempre no “entre planos”, numa atmosfera “desenhada” com régua e esquadro, entre a inquietação e o sensualismo – a extrema inquietação e o extremo sensualismo podem habitar apenas a nossa cabeça. No entanto, há esta sequência do cowboy bruto protagonizado por Benedict Cumberbatch, que se entrega à volúpia do corpo através de um objecto que convoca a fonte do seu desejo. É uma cena de masturbação eivada de volúpia (a natureza como grande testemunha), mas também assombrada por um sentimento desmesurado de desejo condenado à incompletude. The Power of the Dog é uma história de personagens incompletas que anseiam, desmesuradamente, por esse sentimento de completude. O filme é um pouco como elas. Por causa disso ou apesar disso, é uma cena realizada com sobriedade e de uma beleza comedida, longe do “cinema filmado” criticado por Daney/Biette e que, por esta altura, espero que continue a ser perfeitamente domado e ultrapassado por Campion.
Luís Mendonça