Era como Poseidon, fazendo crescer algo em nós sempre que nos “devastava” com as suas majestosas tempestades de cultura e um amor à arte que só ele sabia interpretar e gestualizar. Fica tudo mais calmo – placidez incolor – sem aquelas refrescantes e luminosas “correntes de ar”. Jorge Silva Melo (1948-2022), homem tempestuoso, de uma cultura sem fim, era generoso como poucos, tocou e ajudou a alimentar “o bichinho” em todos aqueles que tiveram a sorte de privar com ele, mas também fez isso em todos aqueles que leram os seus textos. O bichinho da cinefilia, eminentemente clássica, foi o que mais cresceu e engordou nas nossas sucessivas leituras e releituras dos seus textos; naqueles sempre prontos a atacar o seu Século Passado, obra que ficará para sempre guardada na prateleira onde estão os melhores livros de consulta sobre a arte de ver e sentir.
Chegámos a falar com ele sobre a hipótese de escrever uma crónica, proposta que foi recebida com um entusiasmo que nos comoveu muito. Esse encontro foi como essa “corrente de ar” que referimos atrás: Jorge Silva Melo era um entusiasta, um erudito à antiga e, também, é preciso sublinhar, um grande comunicador. Saíamos sempre mais apaixonados por qualquer coisa depois de contactarmos com ele. A pessoa parte, fica o exemplo, tal como as sensações e as palavras que não desvanecerão no papel. É tempo de reunir algumas passagens através de quem o conheceu de perto e/ou leu apaixonadamente – e se constipou, sem remédio, com as correntes de ar, dando força e motivações várias ao vírus da arte e da cultura.
Amar o trabalho dos outros, escritores, encenadores, actores e realizadores, não era sinal de fraqueza neste Deus tempestuoso. Foi isso que nos lembrou a programadora da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, Maria João Madeira, que preparava – e prepara – a retoma de um programa de homenagem a Jorge Silva Melo. Do grupo de pessoas próximas ou sensíveis à escrita sobre filmes de Silva Melo, a Maria João é quem fala mais “de dentro”, no coração de uma maravilhosa e tempestuosa prosa crítica. Veja-se como um clássico incomparável de Howard Hawks dava luta, como amar pode ser uma coisa complexa, como amar deve ser uma coisa complexa. Maria João partilhou a seguinte passagem de um texto de Silva Melo sobre Rio Bravo (1959):
Se há filmes que me fizeram mal?
Este. Rio Bravo. Mal em tudo: na vida, nos amores, na profissão, quando penso em fazer filmes, quando me ponho a escrever uma história, quando vou ao cinema, naquelas horas plenas (e ainda tão raras!) em que posso filmar. Ou trabalhar. Ah, não o tivesse eu visto. Nunca visto.
Howard Hawks, catálogo coordenado por João Bénard da Costa, Cinemateca Portuguesa, 1990./ «Howard Hawks: Rio Bravo Do Mais Fundo eu Te Chamo», in Século Passado, Edições Cotovia, 2007.
A Maria João Madeira explicou-nos da seguinte forma esta escolha: “O dia em que viu Rio Bravo – conta tudo no texto a que deu várias vidas – nunca mais o deixou sem Dean Martin a cantar de cabeça enfiada no chapéu de cowboy. Dos olhos ao coração. Era só um dos – para aí cem? – filmes da vida dele, pô-lo em cartas brancas com e sem receita. (se tivesse de escolher um, havia de ser este.) E escreveu um dos seus – muito mais de cem – textos ‘de cinema’, à flor da pele e da inteligência. É uma grande declaração de amor a um filme, vai ao fundo do filme e de quem assim o vê. ‘Se há filmes que me fizeram mal? Este.” “Ah, não o tivesse eu visto. Nunca visto.’ Pode dizer-se mais profundamente?” Contextualiza também o momento em que Silva Melo escreveu estas palavras: “Jorge Silva Melo filmou mais raramente do que em 1990 teria imaginado e já tão raras chamava a tais horas plenas. Escreveu o texto sobre Rio Bravo para um catálogo Howard Hawks, depois do Passagem ou a Meio Caminho (1980), depois do Ninguém Duas Vezes (1984), depois do Agosto (1988), antes do Coitado do Jorge (1992) e do António, um Rapaz de Lisboa (2002). E antes de todos os outros, os muito pessoais retratos de amigos e de si mesmo (neste século XXI): filmando raramente a ficção que o chamava, os actores, textos com textos, pintura, música, dança, tempos simultâneos dentro deles, achou na série de filmes de artistas um lugar para pintar a realidade do minuto do mundo que passa (dizia Merleau-Ponty, muito por ele citado e re-citado). E assim foi bailando nos filmes, feridos de vida.”
Continuamos no texto belíssimo sobre o clássico de Hawks. Desta feita, a passagem (outra) é escolhida pelo walshiano João Lameira, que esteve presente no memorável encontro com Silva Melo no jardim das Amoreiras, para uma primeira abordagem a propósito da sua série de crónicas À pala de Walsh, que, infelizmente, acabou por não se concretizar. Como leitor de quase tudo o que Silva Melo escreveu e tendo assistido a muitas peças que encenou, o João acedeu ao nosso convite e contribuiu com a seguinte passagem:
Mas há esta cena aqui. E viesse Mephisto e se calhar eu cedia-lhe não à procura da juventude ou da Gretchen de tranças (que ideia!) mas só para saber viver assim. Está lá Dean Martin e torce-se de dores por falta de álcool. Vai sair – quer beber. (Beber para esquecer, beber para beber, beber para chamar a Lei, beber para se humilhar…) O momento é tenso. E Wayne sabe que Martin se perderá se beber.
Anda daí dar uma volta.
À noite?
Travelling e travelling. Martin num passeio, Wayne noutro. Noite de silêncio. Uma daquelas bolas de ramos vindas do deserto e do departamento de adereços liga o campo e o contra-campo antes de emigrar para o western-spaghetti e se tornar num produto regional de Almeria. Silêncio, noite, ruídos ao longe, um batente que range, Wayne que pára, Martin que atravessa a rua e depois o burro que surge atrás de Wayne.
Anda daí dar uma volta
Ainda no outro dia me disseram isso e não era por eu ir beber mas porque era noite e a vida se complicara, e o dia fora turvo e a esperança estava longe.
Este ideal (tão burro! tão estupidamente católico!): saber do outro, estar disponível para o outro, saber encontrar não tanto a palavra certa, mas o gesto. E se for preciso ir noite fora de um lado para o outro do passeio inventando uma missão (ver onde é que estão os maus, dactilografar um texto de promoção, fazer telefonemas chatos, colar fotografias, meter unhas, dar ordens duras e, se for preciso, ameaçar partir a cara!). Estar disponível.
(Estar intolerantemente disponível.)
Howard Hawks, catálogo coordenado por João Bénard da Costa, Cinemateca Portuguesa, 1990.
João Lameira recorta esta passagem para ancorar nela um momento difícil da sua vida em que as palavras de Silva Melo fertilizaram (pois, Poseidon também é o Deus da fertilidade) o sentimento de amizade, fizeram-no descobrir a possibilidade de se dar uma volta, de se dar a volta à tristeza. Nas suas palavras: “Há uns anos (já lá vão uns quantos), num momento de tristeza, o belíssimo e apaixonadíssimo texto de Jorge Silva Melo sobre Rio Bravo (1959), um dos seus (e meus) filmes preferidos, consolou-me, apaziguou-me. Fez-me sentir menos sozinho. Não é que achasse que aquele ‘Anda daí dar uma volta’ fosse dirigido a mim, não seria propriamente isso, embora aquelas palavras sobre disponibilidade e amizade, ou seja, o amor, escritas mais de uma década antes de eu as ler, tenham surtido o efeito de um convite para ‘fazer telefonemas chatos’ ou ‘colar fotografias’.”
José Oliveira, realizador, professor e programador no Lucky Star – Cineclube de Braga, também foi “salvo” pelo convite de Jorge Silva Melo. Conta como esse “Anda daí dar uma volta” no “magnifico texto sobre o Rio Bravo para um catálogo da Cinemateca Portuguesa” habitava o espírito do nosso homenageado, em quem, como apregoou um dia Conde de Buffon, “o estilo é o próprio homem”: “Muitos anos depois, na apresentação do seu filme Passagem ou a Meio Caminho, igualmente na Cinemateca, respondeu a um crítico que se desfazia em elogios que se o John Wayne visse esse seu filme lamechas lhe daria um soco, e que seria bem dado.” Quando o José e o antigo walshiano João Palhares gravara uma extraordinária apresentação em vídeo do inadjectivável Some Came Running (Deus Sabe Quanto Amei, 1958), de Vincente Minnelli, pelo Jorge, tiveram oportunidade de conhecer “um Wayne mais delicado e com a graça dos deuses.(…) [L]ogo percebemos que a nossa projectada divindade era um tipo porreiro, daqueles que costumávamos encontrar em tascas e bares noturnos nas perdidas deambulações ao deus-dará desses anos… um tipo completamente disponível, humilde e com a candura e graça divina, também não estávamos muito enganados…”
O amor aos clássicos está por todo o lado e “contagiou” todos aqueles que se deixaram invadir pela tempestade de generosidade e erudição que Jorge Silva Melo trazia na fala, no gesto, no “toma lá, dá cá” das suas inesquecíveis interacções. A walshiana Carlota Gonçalves recorda o seu amor por outro grande clássico vibrante e multicolorido: “Seguindo a linha ‘felizes do princípio ao fim’, em Singin’ in the Rain (Serenata à Chuva, 1952), eis a resposta de Jorge Silva Melo à alegria que afirmava ser obrigatória, às cores vivas que elegia, aos filmes a abarrotar de cor, ao Godard colorido, e a todo o outro cinema muito à italiana. O fulgurante musical brilha tanto quanto se espelha nele Jorge Silva Melo, que sabia imensa coisa e dizia tudo sem esforço, no seu olhar de cena, de mise en scène, de cinema, arregalado às palavras, imagens, músicas, aos gestos, a ‘tudo’; uma voz tão transmissora. / Dançando à chuva, Hollywood renascia nos corpos a technicolor, no filme que está dentro do filme, com tudo a puxar para fora para um diálogo aberto, como gostava Jorge Silva Melo. Uma psicologia a ser devorada pelo movimento. / O nosso flâneur, o tal que se passearia como um gato, nostálgico, arguto, enérgico, com uma visão meio irónica sobre o futuro. Jorge Silva Melo não sabia dançar e gostava de ter aprendido. Agora ficamos nós nostálgicos sem ele. Vamos lá então, a um palco, um filme, uma música, a uma ‘Ode à Alegria’ do Beethoven (escolha do Jorge), à dança e muita cor! O aplauso é longo para o Jorge Silva Melo!”
Continuamos a aplaudir o Jorge que não dançava, mas que nos fazia dançar por dentro, ao sabor do vento, das cores, das múltiplas intensidades das imagens e do mundo representado em palco. “The world is a stage, the stage is a world”, citando a amada obra-prima de Minnelli, The Band Wagon (Roda da Fortuna, 1953). E para continuar em casa – nessa casa de vendavais apaixonados –, permanecemos na viagem pelo amor ao cinema clássico americano, em tudo o que ele tem de espectacular, que é o mesmo que dizer, em tudo o que ele tem de sexual. A walshiana Inês N. Lourenço recortou a seguinte passagem que ilustra essa mesma pulsão dionisíaca pela potência dos efeitos, a partir do popularíssimo filme de Joshua Logan, com Kim Novak e William Holden, Picnic (Piquenique, 1955).
Picnic, convencionalmente belo, requintadamente primário, comovidamente grosseiro, talvez até americanamente simplista, tem – terá sempre – esta magnífica evidência: aquilo que se filma é o desejo das personagens. E a sua beleza é essa: a de o desejo das personagens se confundir com o desejo profundo porque intenso e superficial de espectáculo de quem, sempre adolescente como sempre se é quando nos sentamos num cinema, olha e também deseja.
E se, há muitos anos, suponho que corei, deve ter sido por isso – por perceber que o desejo do espectáculo é também o desejo sexual.
Folha de Sala do ciclo de cinema “Actor/Actor”, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, in Século Passado, Edições Cotovia, 2007.
O verdadeiro prazer do cinema clássico americano popular encontra-se, como no cinema de vanguarda, à superfície. Toda a profundidade está na pele – esse que é o maior órgão do corpo, aquele que se deixa persuadir, se deixa tocar, se deixa afagar e contagiar pelo prazer inebriante da paixão. A tela de cinema feita pele do corpo; o cinema feito estímulo; as imagens-desejo, os diálogos-cócegas, os sons-excitação. Lourenço reafirma-o quando explica que “uma das coisas que mais aprecio nos escritos de Jorge Silva Melo é a pureza das emoções de espectador envoltas num consciente gosto desinibido. Ele pesca com a sensualidade da memória o que uma cinefilia topo de gama descartaria. Eu que tenho um fraquinho pelo charme da menoridade nos filmes, sinto aí uma forte correspondência com a voz dele no papel: tabágica, sábia e apaixonada. Dá para encostar o ouvido à página.”
E é pelo ouvido que somos conquistados. Há, apesar de tudo, uma forma de sedução – de engate! – na escrita e a leitura faz despertar, nas nossas cabeças, os sons das palavras, as entoações e a textura da voz. Tudo em correspondência directa, diálogo unívoco, encontro solitário e romântico, entre os olhos e a página do livro ou do jornal. Foi a uma página de jornal, mais concretamente do Público, de 1995, que o programador e distribuidor da Medeia Filmes e Leopardo Filmes, António Costa, foi buscar a seguinte passagem que nos agarra pelo sentido da audição.
Hulot chega a casa, um velho prédio de St-Maur, em Créteil. E, ao abrir uma janela, um pássaro põe-se a cantar: um reflexo de luz, que o seu movimento provoca, bate numa gaiola no outro lado do prédio. Claro que Hulot vai deixar a portada aberta – para que o pássaro cante.
É assim o cinema de Jacques Tati: a linha recta do reflexo do sol, o ângulo necessário, o movimento imprescindível para que “o mundo cante”, apenas a constatação de que, entre dois pontos, há uma recta possível, só uma. E, como neste plano, o próprio processo da mise-en-scène está à vista, descarnado, cru e, assim mesmo, misterioso e doce.
“Jacques Tati: O Meu Tio. O melhor ponto de vista sobre a matéria”, Público, 24 de Fevereiro de 1995 / in Século Passado, Edições Cotovia, 2007.
Como tantos outros recortes desta coleção, também este texto sobre Mon oncle (O Meu Tio, 1958) seria republicado em Século Passado, que Costa define como “quase uma bíblia para mim”, só equiparável “aos escritos do João Bénard da Costa, a que volto recorrentemente.” Mas regressando às sonoridades de um homem dos palcos e das letras, o contributo de Costa é também como exibidor, isto é, aquele que várias vezes convidou Jorge Silva Melo a fazer apresentações de filmes que lhe sabia caros. Disse-nos que “Quando escrevia e quando falava sobre os filmes (e o Jorge ia muitas vezes às salas de cinema fazê-lo), era como se o reflexo de luz que vinha das imagens do écran estimulasse nele uma espécie de ‘canto’, que era simultaneamente misterioso e doce, descarnado e cru, que nos fascinava e nos punha a pensar.” A escrita como fala, a fala como canto e o canto como cinema das emoções.
Por sua vez, o walshiano Nuno Gonçalves canta, por fim, os palcos onde Jorge Silva Melo interpretou a – e se ofereceu à – vida, bem como ensaiou, fulgurante e sem dançar propriamente, a sua morte (dançando propriamente a metáfora da vida?).
Ensaiar é também aprender a morrer: e morrer também é deixar a vida.
Deixar a Vida, Edições Cotovia, 2015.
Gonçalves “tropeçou” neste pequeno livro, editado pela (lamentavelmente já extinta) Cotovia. Descreve-o como um “livro de actores, onde cabe o cinema e o teatro, o palco e o plateau. Portanto, a vida.” Acrescenta: “A frase que pontua o final do texto Deixar a Vida encheu-me as medidas. Uma vida que se deixa contaminar pela própria ideia de fim, o fim que deixa para trás uma partilha incomensurável dos que partem para os que ficam. / São esses gestos de partilha que guardo do J. S. Melo. O ver a Arrábida pela primeira vez através dos seus olhos em Agosto, o chegar a Philippe Garrel como quem mergulha num romance (sim, os seus textos tinham tanto de cinemáticos como de romances, pela grandeza das aventuras e o amor lá depositado), o ouvir o Quarteto de Heiner Müller conduzido pelas suas mãos, os livrinhos de teatro, a conversa em torno de Álvaro Lapa no S. Luiz (num banquete desmedido com Bragança de Miranda), a sessão comentada sobre Jean Renoir no Monumental. Mas o gesto maior de todos que fica é o respeito partilhado entre amigos, ‘ali vai o Jorge Silva Melo’, como quem sabe que estávamos perante uma presença maior. / Ensaiar é também aprender a morrer. Mas ainda não acabámos, Jorge. A vida è tutta un’altra cosa.”