Consulte: Palatorium do dia 16 de Março
O mês de Março chega-nos com uma guerra em território europeu e uma nuvem de poeira que recobre Portugal com um manto alaranjado. Entre o cinema bélico e a ficção-científica marciana, o ambiente é, no mínimo, distópico. Não se podia adivinhar um conflito destes (ou pelo menos assim nos fizeram crer, que a paz era a nova ordem social do século XXI, pelo menos neste nosso velho continente), nem muito menos que o universo de Dune tomaria conta da realidade. De qualquer modo as estreias comercias continuam, imparáveis, e os filmes passam pelas salas como estrelas cadentes: ora estão, ora desaparecem.
Um desses casos, de um filme que tanto apareceu, como logo se esfumou, é A Night of Knowing Nothing (Noite Incerta, 2021), de Payal Kapadia, um belíssima primeira obra vinda da Índia. Outro caso, improvável, é a estreia, em sala, do “filme da Netflix”, The Power of the Dog (O Poder do Cão, 2021) de Jane Campion, agora que se prevê que arrecade todos os prémios da Academia. E por falar em Óscares, estreou também o anódino Belfast (2021), de Kenneth Branagh. Também nessa corrida, mas com outro enlevo, surgiu nas salas o último tomo da trilogia de Oslo, Verdens verste menneske (A Pior Pessoa do Mundo, 2021), de Joachim Trier, que recebeu duas entusiasmadas críticas: de Ana Cabral Martins e de Daniela Rôla. Fora destas contas, acaba de estrear The Batman (2022), de Matt Reeves – uma boa surpresa!
Seguem os comprimidos a outros filmes estreados nas últimas semanas: o novo de Ryûsuke Hamaguchi visto pelo desiludido Ricardo Gross; um filme sobre a “intimidade” de Vladimir Putin, agora disponível na Filmin Portugal; outro vindo também da Rússia, Kitoboy (Kitoboy – O Salto do Baleeiro, 2020): e o novo filme do australiano Phillip Noyce – estes últimos vistos e analisados por João Araújo. Ao que se juntam, agora, um olhar clássico sobre o novo filme do iraniano Asghar Farhadi, pela pena de Daniela Rôla; um ponto de vista gastrópode sobre o regresso de Adrian Lyne ao cinema e a insuficiência da fotogenia dos corpos do novo filme do húngaro Ildikó Enyedi. Bom proveito!
Muito maior do que a vontade de escrever sobre este filme raso, foi o desejo de partilhar um still do mesmo. Das duas horas e quarenta e nove minutos que dura A História da Minha Mulher, retiramos três ou quatro planos bem bonitos de situações íntimas de um par que nunca chega a convencer-nos que o seja, no que talvez resida o motivo da sua dissolução no final. Mesmo especulando, e não existem limites para fazê-lo que os da paciência e da imaginação, pedia-se muito mais a este pastelão cultural que parece ter-nos chegado do século passado. A história, que adapta uma obra do austro-húngaro Milán Füst (1888–1967), parte de um capricho: por imposição fisiológica, condição de anos e anos em alto mar e no meio de homens, o capitão de marinha mercante Jacob Störr (Gijs Naber) decide-se a desposar a primeira mulher que lhe entrar pelo café onde a sua intenção se verbaliza. Sorte a dele que quem entra é a Seydoux, Léa (Lizzy, de seu nome aqui), e a relação dos dois, tirando algumas sequências amorosas que vivem mais da sugestão e da fotogenia de ambos, nunca evoluiu além do ponto-morto de uma dramaturgia esquálida.
Estamos em território de um faz-de-conta circa 1920, que nunca se constitui enquanto filme sólido. Ficamos com muito pouco da personagem dele, e dela ficaremos com quase nada. E se era para nos deixarem com algo da ordem dos arquétipos, era preciso mais do que uma produção endinheirada e o calibre estético dos protagonistas. Ildikó Enyedi filma um guião recheado de diálogos pueris, situações que não colam, secundários ali postos com cuspe, uma noção de montagem que roça o arbitrário, e o filme avança porque sim em direcção a coisa nenhuma. Os comentários que têm sido apontados ao seu carácter misógino são totalmente infundados. Para o não serem, era preciso que o filme nos ferisse, e nada do que nele acontece gera o menor incómodo. É um objecto francamente anónimo e exangue, que ganha algum rubor naquelas três ou quatro situações que vivem essencialmente do saber não estragar a fotogenia dos corpos dos actores. É muito pouco para um filme tão longo.
Ricardo Gross, 24 de Março
Não deixa de ser curioso que o parente mais próximo deste Ghahreman, de Asghar Farhadi, um filme em que a intensidade dramática e a gravidade da narrativa deixam tão pouco espaço para o riso, seja, afinal, uma comédia: nada menos que o inolvidável Hail the Conquering Hero (Herói de Mentira, 1944), de Preston Sturges. E vale também a pena reflectir neste facto: que os meios de promoção e preservação de um regime político não sejam muito diferentes quando comparamos o actual regime iraniano e a democracia americana na recta final da Segunda Guerra Mundial.
Rahim (Amir Jadidi) começa por tornar-se “herói” malgré lui, sendo enredado num sem-fim de homenagens e apoios entusiasmados, que vão servindo os seus autores, desde os directores do estabelecimento prisional, passando pela associação de beneficência que promove uma recolha de fundos para obstar ao seu regresso à prisão, até às autoridades municipais que prometem a Rahim o tão necessitado emprego que lhe torne possível pagar o resto da dívida. Ora, será aqui que irá acontecer o grão na engrenagem, fazendo com que, pela acção de um funcionário extremamente zeloso, as pequenas mentiras aparentemente inofensivas comecem a fazer virar o destino de Rahim. E a verdade nada pode contra elas. A ponto de conduzirem Rahim a uma busca impossível da prova que possa salvar a sua história e a sua vida. É uma busca que parece tão assombrada pela fatalidade quanto a busca de Henry Fonda em The Wrong Man (O Falso Culpado, 1956). E aqueles que enalteciam o feito de Rahim, são agora os primeiros a atacá-lo, quando essa atitude passa a melhor servir os seus interesses. Apenas o credor impiedoso, no seu pragmatismo, permanece coerente. É ele quem, desde cedo, afirma “não há nada de heróico em fazer o seu dever”.
Daniela Rôla, 22 de Março
Adrian Lyne filma aqui aquele que será um dos mais implausíveis casais da história do cinema, e tal como Stanley Kubrick o havia feito em Eyes Wide Shut (De Olhos Bem Fechados, 1999), recorreu a dois actores que formavam um par na vida real. As semelhanças entre os filmes vão para além disso (a questão da infidelidade, do ciúme, dos fantasmas do homem relativamente à sexualidade feminina), mas a obra final de Kubrick é um portento cinematográfico, e este regresso de Lyne ao fim de vinte anos sem dirigir um filme, é uma proposta descabelada que guarda a curiosidade de parecer um objecto esquizofrénico, como se as fixações anteriores de Lyne e o seu “male gaze” tivessem sido possuídas pelo sarcasmo provocador do Lars von Trier de The House That Jack Built (2018): repare-se como comunicam entre si as figuras lacónicas de “all american boy” em deriva psicopata, do Matt Dillon de então, e agora de Ben Affleck.
Deep Water joga bastante o jogo das aparências e do “com a verdade me enganas”, e serve-se de uma conversa de café com um psicanalista secundaríssimo à narrativa, para especular sobre a esquizofrenia da mulher, que acumula amantes com uma ligeireza de insecto, e acerca da psicopatia do marido, que apresenta uma passividade de molusco (e ele cuida de uma estufa de caracóis onde parece investir mais afecto do que o que reserva para os humanos) que vai inchando de ciúme até explodir num impulso homicida. Mas aquilo que constitui verdadeiramente o foco do interesse do novo filme de Adrian Lyne passa pelo olhar viscoso que deita à bela Ana de Armas. É como que uma cópula constante entre realizador e actriz, que se reinicia invariavelmente aos pés da mesma, e que vai trepando pelas pernas acima e enfiando os corninhos e o resto do seu corpo mole pelos decotes e pelas rachas dos vestidos. Adrian Lyne já se encontra na casa dos oitenta e por mim toda esta sua concupiscência é para ser celebrada.
Ricardo Gross, 22 de Março
O cinema veio superar a ópera no sentido da obra de arte total; e total porque tem a capacidade de articular todas as outras. Mas artes diferentes têm convenções distintas, e a vida não sendo necessariamente artística (cada um sabe de si) não escapa à regra da coerência. Aquilo que em minha opinião contribuiu para o carácter artificial do novo Hamaguchi tem a ver com a entrada do teatro na vida das personagens e do próprio filme. Quando vemos personagens que agem e que debitam diálogos propriamente literários como se estivessem no palco, estando fora dele (recordo-me do relato do jovem actor no carro; e da expiação de culpas do encenador e da sua motorista junto dos escombros da casa de família desta), esse efeito de artificialidade (que para alguns pode ser visto como poético) choca com a sensação de naturalismo que também existe no filme.
Doraibu mai kâ força as convenções do teatro para a vida contemporânea, e o resultado é falso e demasiado elaborado. O filme que evolui segundo uma condução pausada e até mesmo contemplativa carrega demasiado pathos (o par protagonista tem mortes trágicas dentro de si e acaba revelando a que ponto isso os faz sentirem-se culpados). O efeito de espelho entre a narrativa de Doraibu mai kâ e a peça Tio Vânia de Anton Tchéckhov, que é encenada em várias línguas asiáticas incluindo a gestual, parece um dispositivo calibrado para fornecer ainda mais caução cultural e ecuménica a este projecto (Hiroshima, meus amores). Dir-se-ia que Ryûsuke Hamaguchi tem demasiada consciência daquilo que constitui no filme a sua aparência de seriedade e relevância sociocultural, e do prestígio que recolherá no seio do público de cinema sofisticado que se deixa embalar por esta bolha de lugares-comuns do amor e da dor, e lhe responde com os maiores elogios. Ao teatro o que é do teatro; e à vida o que é da vida. Ao cinema a capacidade de transcender o modo de autocelebração (seja no interior de um carro ou fora deste).
Ricardo Gross, 16 de Março
Vitaly Mansky tinha-nos deixado um dos melhores filmes das edições anteriores com Under The Sun (Debaixo do Sol, 2015), um documentário sobre o regime norte-coreano, mas também sobre o poder da encenação e da ilusão do audiovisual como meio de apresentar uma imagem fabricada. Nesse filme, Mansky era levado a visitar vários eventos representativos de um próspero estilo de vida norte-coreano, ocasiões que eram orquestradas como uma operação de relações públicas para convencer o resto do mundo – Mansky desfazia a propaganda mostrando-nos imagens dos bastidores, do que acontecia quando os “actores” pensavam que a câmara estava desligada. No caso de Putin’s Witnesses, o realizador é mesmo um dos principais “actores”, já que acompanhou de perto, no seu trabalho para a televisão russa, a transição do poder na Rússia na mudança de século e a ascensão de Vladimir Putin, e esteve mesmo envolvido no processo de construção da figura de Putin, e até da sua humanização perante a opinião pública. Este é por isso também um filme de expiação, ou, pelo menos, de questionamento do seu papel enquanto documentarista. Não surpreende então que as primeiras imagens sejam de Mansky com a sua família em casa numa véspera de ano novo, incrédulos com o espectáculo político que se desenrolava na televisão: Boris Iéltsin anuncia que irá afastar-se para ceder o poder a Putin e este prepara-se para entrar em directo na televisão a poucos minutos da meia-noite. Tudo preparado ao pormenor para ter o maior impacto. Mansky tenta não só perceber o seu papel no meio disso, mas também desmontar o que fica por mostrar nestas encenações políticas: o lado cínico e calculista desta construção.
O filme recorre a um arquivo enorme de imagens registadas por Mansky nessa altura em que acompanhava de perto as figuras mais importantes da política russa, uma colecção historicamente valiosa e que é até desarmante pelo nível de proximidade que lhe era permitido: assistimos a um jantar familiar na casa de Iéltsin, observamos Gorbatchov a confraternizar com velhos amigos e estamos presentes numa sala de hotel onde Putin acompanha, com a sua equipa de campanha, os primeiros resultados eleitorais, uma equipa de aliados que serão depois afastados e perseguidos mais tarde como Mansky ilustra numa das melhores sequências do filme. Vemos uma visita de Putin a uma antiga professora, uma photo-op aqui desmontada como em Under the Sun, com a exibição dos preparativos à volta desta ocasião e de que Mansky faz parte – na verdade, esta visita acabou por ser incluída num documentário para a televisão, como uma peça humanizadora de Putin. Putin’s Witnesses coloca todos em julgamento – não haja dúvidas que não é só o próprio Mansky, como os aliados de Putin que são depois afastados e perseguidos, como os que o colocaram no poder, mesmo como o próprio espectador, cuja distância equivale a apatia cúmplice. No entanto, falta claridade ao filme e Mansky parece perdido nas encruzilhadas que encontra. Porém, o que é mais desconcertante em relação ao filme é o facto de este nunca conseguir chegar perto de Putin, à medida que caminha para um confronto entre os dois: por um lado, Mansky procura nas imagens ou algo que não tenha visto da primeira vez ou alguma réstia de humanidade em Putin mas não há nada; por outro, apenas a necessidade de Putin ter a última palavra e tentar convencer o outro que a razão é sua. É como naquela cena na sede de campanha em 2000: já estão todos ali lado a lado e ao mesmo tempo já estão todos perseguidos e afastados, numa dupla existência – é apenas o princípio e está já lá tudo, pronto a entrar em ebulição.
João Araújo, 16 de Março (nota: texto originalmente publicado em Dezembro de 2018, por ocasião da exibição do filme no festival Porto/Post/Doc.)
Kitoboy começa com uma longa sequência de preparação para um gag visual, com uma mudança de perspectiva que altera por completo o rumo do filme, mas que compensa pelo resultado imediato, e que nos prepara para o contraste entre dois mundos distantes que o filme vai explorar. O cenário principal é uma pequena comunidade na região remota do lado russo do Estreito de Bering, onde vive Leshka, um rapaz de 15 anos que juntamente com os outros homens da aldeia se dedica à pesca de baleias. A proximidade com a fronteira americana faz parte do quotidiano mas é ao mesmo tempo uma passagem impossível, símbolo da enorme distância entre as duas sociedades. Esse afastamento é agora atenuado de forma virtual, com o acesso à internet, e Leshka acaba por criar uma ideia ingénua e romantizada do ocidente através das imagens que encontra, apaixonando-se por uma cam girl, com quem julga criar uma relação. Yuryev filma a inocência de Leshka e o retiro deste para um mundo de fantasia perante a sua realidade austera e fria, quase como uma inevitabilidade, uma contaminação perante a promessa de uma outra existência (mas tão inacessível como a passagem para o outro lado do estreito). Não sendo o conceito mais original, tem alguns momentos interessantes, particularmente pelo retrato da aldeia e do seu modo de vida, e por um acto final surpreendente.
João Araújo, 16 de Março
O novo filme de Phillip Noyce, realizador australiano que conta com algumas obras interessantes [The Quiet American (O Americano Tranquilo, 2002) e Rabbit-Proof Fence (A Vedação, 2002)], prova que essas continuam a ser excepções num mar de filmes tarefeiros. Se a premissa pode ser interessante – uma mãe que durante uma corrida matinal recebe uma chamada com o alerta de que está a acontecer um tiroteio na escola de um dos filhos – e a escolha de acompanhar a história em tempo real poderia ser cativante, a execução deixa muito a desejar, e é sobretudo previsível e visualmente desprovido de imaginação (uma ideia: poderia ser um óptimo podcast, antes de ser um filme). As limitações que a personagem principal enfrenta – a mãe enquanto tenta deslocar-se para a escola apenas pode usar o telemóvel para reagir aos acontecimentos – colocam o filme próximo de outras obras que exploraram e experimentaram, de forma mais ou menos interessante, as possibilidades da limitação de meios (e a falta de tempo) como um desafio a ultrapassar, tal como em Searching (Pesquisa Obsessiva, 2018), Locke (2013), Phone Booth (Cabine Telefónica, 2002) Buried (Enterrado, 2010)e até The Guilty (O Culpado, 2021) – mas essas comparações apenas confirmam a desilusão de The Desperate Hour, por muito que Naomi Watts tente salvar o filme.
João Araújo, 16 de Março