Disse-me uma vez o meu pai que os trinta são a pior década da vida. Nela, não nos reconhecemos nos adultos que desejamos (ou nos forçamos a) ser, nem podemos propriamente regressar à era de encanto e irresponsabilidade da adolescência. Um trintão típico não é mais um jovem (tratam-nos por senhor quando pedimos café), nem tão pouco um homem maduro (nos trabalhos temos de “aprender”, “esperar”, chuchando no dedo dos superiores – que o respeitinho é bonito – e nas relações amorosas, outrora tão despreocupadas, considerar a sucessão ou outros quesitos de permanência – o fantasma do casamento à espreita na geração das uniões de facto). Se isto tudo é verdade, o que torna os trinta a pior década da vida não é necessariamente estar-se entre a espada nostálgica do passado e a parede promissora de liberdade do futuro. Como todas as eras de transição, ao sentimento de entrega ao regime do “para sempre” soma-se a vontade pirómana de neutralizar o progresso e começar tudo do zero. Os trinta são a geração dos que jamais prometem, mas, por todo o lado, saboreiam a traição – a que foi e a que ainda não veio, mas seguramente há-de vir.
Com 30 anos, Ryûsuke Hamaguchi virava a lente para um conjunto de personagens pertencentes à sua geração em Passion (2008), filme final de graduação da Universidade de Belas Artes e Música de Tóquio, escola responsável por introduzir uma nova fornalha de realizadores japoneses numa indústria centenária que, até 2005, nunca precisara do didatismo académico para formar artistas. No entanto, Passion não é apenas um filme para agradar a professores ou “fazer-se à nota”, destinado depois a permanecer em folders esquecidos de um qualquer acervo universitário. Pelo contrário, é já um exercício extraordinariamente maduro, a despeito de alguns desequilíbrios formais, e não seria exagerado categorizá-lo cronologicamente como o filme mais essencial de Hamaguchi até Happy Hour (Happy Hour: Hora Feliz, 2015).
Agora que o cineasta parece estar nas bocas do mundo e é inclusive candidato ao Óscar com Drive My Car (2021), parece-nos mais relevante rebobinar treze anos e voltar a Passion: voltar, portanto, à crueza da idade das “jovens promessas” e omitir o luto do adulto galardoado. Aliás, é esse o fosso que separa uma obra da outra: a primeira expira incerteza mas raiva contida, raiva só equivalente ao terceiro acto detonador de Happy Hour, a segunda inspira consagração, serenidade estética e uma segurança quiçá demasiado programada. Faço, pois, a apologia da juventude falhada, ela que foi a única a comprometer-se em acertar como nenhuma outra sequer já tenta. Neste que também é o mais cassavetiano filme de Hamaguchi, a amizade e o amor discorridos em diálogos confrontacionais estão debaixo de fogo, cercados por uma idade crítica que procura desesperadamente a transparência das emoções, porque a transparência é aquilo que justamente escasseia naqueles que transmudam.
Um aparte: integrar a pior década do mundo em Portugal e no Japão será, certamente, diferente num e noutro país – muito embora a sua absoluta má qualificação não se altere. Se fosse filmado em Lisboa, Passion teria, dos três amigos – e como não pensar no trio masculino de Husbands (Maridos, 1970), filme-cabeceira de Hamaguchi? –, um a morar em casa dos pais, um solteiro boémio e um outro a viver em união de facto com alguém (e não um casado, um noivo e um celibatário como acaba por acontecer aqui). Seria, provavelmente, uma reflexão sobre a precariedade laboral e o vai-e-vem sentimental com um certo pessimismo dolce far niente. Em suma, seria um filme sobre os sobreviventes à constante estagnação social do nosso país bem como dos cínicos da geração de pais divorciados, os quais, contrariamente ao esperado, encaram o amor como prevalecendo tanto à ordem social que não há ordem que o salve ou conserve quando ele finda ou simplesmente enfraquece.
Neste que também é o mais cassavetiano filme de Hamaguchi, a amizade e o amor discorridos em diálogos confrontacionais estão debaixo de fogo, cercados por uma idade crítica que procura desesperadamente a transparência das emoções.
Ora, no Japão as especificidades culturais tornam os trinta numa idade ainda mais decisiva e problemática, especialmente quando certos requisitos não são satisfeitos. As quatro amigas de Happy Hour eram também trintonas e espelhavam, de entre muitas outras coisas, as pressões de uma sociedade que acreditava que uma mulher não casada com essa idade era desviante e problemática. Da mesma forma, o termo unicamente nipónico shakaijin, referente aos japoneses com trabalho a tempo inteiro, denuncia uma visão do mundo em tudo semelhante. Shakaijin, literalmente traduz-se por “membro da sociedade”, e opõe-se a gakusei (estudante) no sentido em que só o término da seishun (juventude – termo fetichizado ao extremo numa cultura que tanto a fantasia como encoraja a agridoce melancolia do seu abandono) com os seus estudos e hatsukoi (primeiros amores) dá lugar à plena entrada na sociedade, como o próprio significado do vocábulo indica. No Japão, só um shakaijin é realmente considerado um adulto e um cidadão de primeira linha: na sua maioria, são homens assalariados e casados, rodas na engrenagem social sem queixumes, contemplações ou subjectividades – porque deru kugi wa utareru (“todo o prego que sobressaí deve ser martelado”), relembrando o provérbio que só um japonês poderia proferir.
Uma das personagens de Passion diz a certa altura que não há nada de errado em ter trinta anos e que tudo fica melhor quando se chega a essa idade. A verdade é que Hamaguchi não subscreve o que escreve e pinta um retrato meio desolado, quase todo iluminado pela luz morna de uma sala, destes recém-shakaijin, optando por filmar longamente os encontros lúdicos e reuniões nocturnas em vez dos espaços estritamente domésticos e profissionais – o habitat mais evidente e aquele que proporcionaria uma leitura crítica mais escarrapachada. Quase tudo aqui se apresenta num regime de bastidores, nas confissões que uns e outros fazem das suas dores e amores – e, curiosamente, aqui o amor proibido ou não correspondido, a tal paixão do título, é o móbil desestabilizador de uma ordem social que crepita por todo o lado e se faz sentir nas pressões e ansiedades da instituição reguladora do casamento. Para os personagens de Passion, o sofrimento é o único certificado de existência e falar verdade a derradeira forma de absolvição do rebanho humano.
Ser honesto sem precedentes – como o jogo que Tomoya instaura com Takeshi e a sua paixão extra-conjugal, jogo inspirado nas fontes lendárias do México cuja água ingerida dizem não permitir esconder aquilo que se pensa – é simultânea suspensão e superação do mundo frio de aparências em que as próprias relações adultas se tornam. É revirar o shakaijin em gakusei ou converter os outros noutras formas inseparáveis de eu. Hamaguchi, porém, é lúcido o suficiente para desenhar o trilho destrutivo desse assalto do jogo de criança quando as acções se tornam irrevogáveis. Não há “coitos” na apanhada dos trinta e parece que não há como escapar à lei da causa e do efeito. Passion filma esse momento decisivo recorrendo à gramática cinematográfica – conjugando os diálogos e deixando-os escoar em dois planos-sequência marcantes, já perto do final.
É sabido que uma das características mais fascinantes na obra de Hamaguchi é o papel que ele consigna à duração, não dos planos em strictu sensu, mas das cenas em que eles se inserem. Por isso, em Happy Hour, blocos como o do workshop de Ukai podia durar mais de quarenta minutos e a leitura do conto da Senhora Nose podia prolongar-se por trinta, fintando as expectativas do espectador imerso ao despedaçar o seu entendimento mais frequente do tempo dramático. Em Passion, Hamaguchi, quiçá por ainda ser um estudante de cinema, decide explorar a magia reveladora do plano-sequência, todavia, o esforço e as intenções parecem vir do mesmo sítio. No contexto da sua filmografia à data deste texto, estes dois colossais momentos são ainda os planos que mais duram e destacam-se num filme que constantemente recorta a perspectiva, não se coibindo de fazer uso, na maior parte do seu tempo, do campo contracampo. Têm, por isso, alguma coisa de deliberadamente contraditório e experimental, como se Hamaguchi estivesse a sorver as suas potencialidades, nem que fosse para mais tarde abandoná-las e seguir por outros caminhos da durabilidade. Tive o cuidado de contabilizá-los: se o plano da fábrica só é cortado aos 11 minutos e 20 segundos, o plano do sofá, tão esmagador que só os créditos poderiam suceder-lhe, dura 8 minutos e 53 segundos.
E o que vemos neles? Duas danças de casal, coreografadas pelos afectos e pela fragilidade dos sentimentos em toda a sua nudez. Veja-se o posicionamento dos corpos, dois em cada plano. A separação inicial de ambos desembocará no toque e confirmará a utopia da comunicação: não somos, afinal, ilhas. No plano da fábrica, a confissão de amor momentaneamente retribuída prepara a sua própria impossibilidade – a despedida faz-se não por falta de identificação, mas por excesso dela. No plano do sofá, a lógica retorcida do noivo, antes insatisfeito com a falta de tensão da sua relação estável, é satisfeita quando ele se observa a ser o próprio agente da destruição. São dois planos escalpelizantes da maneira como os nossos corpos reagem à máxima honestidade das palavras dos outros, e como eles respondem por gestos quando são solicitados a participar dela. Ambos se complementam também na maneira como começam e acabam. Aquilo que abre o plano da fábrica é uma chaminé deitando fumo, ausente de personagens que subrepticiamente se adentram pelo enquadramento, e o que encerra o plano do sofá é o lugar vazio do par que antes o ocupara com as lágrimas do perdão. Estas estases discretas são centros privilegiados de atenção, imagens de singular beleza que transmitem a sabedoria da imobilidade: não te inquietes, filho, que a idade, como aliás tudo o resto, passa. Nelas, são derramadas as vivências tortuosas daqueles que se encontram na pior década da vida.