Um dos elementos mais fascinantes do western é que ele é um género que não apenas dá o cenário visual, natural, cinemático para as suas assombrações, como funciona como espelho – distorcido, por vezes, até na sua clareza – de toda a mitologia histórica, cultural, económica e política da nação americana. Os seus sistemas de ódio e separação, a acção como motor do crescimento, a ideia de comunidade e heroísmo, o peso da família, o domínio do espaço, são apenas alguns entre vários exemplos dessa história de poeira, armas e sangue. Tornou-se lugar comum falar da passagem do western clássico ao moderno (adulto, seria outra equívoca palavra) em função dos parâmetros da visão do que era visto como ameaça (primeiro um fora e depois um dentro/fora), desdobrada na psique do cowboy que aos poucos interiorizava a raiva, a culpa, a dúvida.
Nos últimos anos, para lá da revisitação nostálgica de género, sempre houve a tentação de actualizar o western no sentido de nos continuar a fazer perceber não a sua “novidade”, mas a forma como esse espelho da América sobre si é potencialmente infinito. Neste sentido, o trabalho de uma autora como Kelly Reichardt tem sido extremamente relevante, por exemplo, ao explorar em Meek’s Cutoff (O Atalho, 2010) a dimensão teatral que o espaço inóspito do western convoca [mas não víamos isso mesmo, de uma certa forma, em Stagecoach (Cavalgada Heróica, 1939), de Ford?]; ou, mais recentemente, a potencialidade da extração e de uma lógica da competição capitalista em First Cow (First Cow – A Primeira Vaca da América, 2019)
Deste desdobramento faz naturalmente parte a desconstrução do mito do herói másculo e invencível, e a entrada progressiva num espaço interior da masculinidade mais à tona. Talvez isso seja a grande diferença entre John Wayne e os filmes de Clint Eastwood a partir dos anos 90. Uma revelação mais evidente de uma ideia de sensibilidade, de expressão mais desempoeirada, ainda que sempre contida, da emoção. Mas, a par disso, um filme como Brokeback Mountain (O Segredo de Brokeback Mountain, 2005) de Ang Lee, veio literalizar a homossexualidade no interior de um universo composto sobretudo por homens, latente numa ideia de “amizade” e de “homoerotismo” velado, que muitos realizadores da história do western foram, sagazmente, filmando.
Jane Campion, ao adaptar o romance de John Savage que dá título ao filme The Power of the Dog (O Poder do Cão, 2021) – e que, já agora, inspirou Annie Proulx, autora do conto que dá origem ao filme de Ang Lee -, vem prolongar esta exploração da desconstrução da noção de masculinidade no western. E num duplo sentido. Em primeiro lugar, procurando desfazer a associação apressada entre a sensibilidade e a fraqueza. O filho de Rose, Peter Gordon (Kodi Smit-McPhee), revela em certos momentos uma ideia de delicadeza (não apenas pelas flores de papel que faz, mas também pela relação com Rose, a sua mãe, ou a forma como parece não encaixar no estereótipo do cowboy abrutalhado), mas que, não é, de todo incompatível com a sua força interior, frieza e astúcia.
Power of the dog, mais do que opor o mestre e o submisso (o poder de God e do Dog), o que faz é revelar a sua complementaridade.
Mas Campion vai além disso, e, neste sentido, The Power of the Dog (O Poder do Cão, 2021) é um filme prospectivo. O filme dá-nos esta passagem de testemunho entre duas formas de conceber a masculinidade. Talvez por isso, entre o símbolo de uma – a sela de Bronco Henry como objecto fetiche da personagem de Phil (Benedict Cumberbatch) – e o símbolo de outra – as referidas flores de papel – Campion filme a ligação entre ambas – a corda que Phil faz para dar a Peter, que os une e que deixa pensar a sucessão nessa forma de olhar o herói masculino. Quiçá ainda uma outra maneira de olhar para a mitologia do western. Phil e Peter, um sucede ao outro, não naturalmente, mas por meio de “combate” e de “sobrevivência”.
Mas talvez a oposição dos dois modelos, entre Peter e Phil – e isso é que é genial, pois o clássico contém o moderno e viceversa, até certa medida – seja apenas aquilo que todos não vêem na montanha ascética e que por isso pensam que não está lá. Power of the Dog, mais do que opor o mestre e o submisso (o poder de God e do Dog), o que faz é revelar a sua complementaridade. Phil tem algo de Peter e o contrário também é verdade. Algo que se mostra, por exemplo, na simbologia do gosto pela manufactura (a corda, a flor), na frieza sobre os animais (a castração a sangue frio, a morte do coelho) e claro na ligação corporal, carnal, a Bronco Harry (a nudez das fotografias, o episódio em que dormiram para absorver o calor um do outro). Algo que se consuma nessa belíssima cena em que Peter e Phil partilham um cigarro ou no momento em que a ligação do toque é também o que dará a morte, nessa cena em que Peter diz que quer ser como Phil e Campion filma os dois circularmente, fechando-os um no outro, numa reversibilidade plástica e poética.
Mas se esta é uma leitura simbólica e subliminar, há também neste filme algo de verdadeiramente misterioso e indizível. As personagens parecem habitadas por uma maldição qualquer de natureza existencial. As personagens mortas são o mito e a tragédia dos vivos. Vivos, ou antes assombrados. Um filho que viu um pai enforcado. Um homem que centra a sua vida no amor face a um amigo, mestre, modelo, morto. Um outro homem, o outro irmão (Jesse Simmons), tão apagado que não se sabe, nunca, se está triste ou contente. Só intuímos emoção nesse cena que parece uma pintura de Magritte, em que tenta dançar com a sua recém esposa numa planície e verte duas solitárias lágrimas dizendo o quão bom é não estar sozinho.
E, finalmente, os olhos angustiados de Rose (Kirsten Dunst) que, a dada altura, passam a rimar com a “clausura do casamento” e o fim do seu trabalho como dona de um restaurante. É, talvez, a música, nos acordes certos da viola, nas melodias repetidas e interrompidas do piano de Rose e nos acordes dissonantes da segunda metade do filme, aquilo que permite perceber como todas estas personagens vagueiam e chocam entre si. Música que nos convida a habitar o mistério do que as move e co-move. Não vemos os traços evidentes no mosaico. E, porque não vemos, pensamos que não estão lá. Porque não ver, por vezes, é o princípio da crença. De uma outra visão.
The Power of the Dog (2021) está agora em exibição comercial nas salas portuguesas, depois de ter sido disponibilizado em Dezembro do ano passado na plataforma Netflix.