Descobri Sans Lendemain (Piedosa Mentira, 1939) dentro de outro filme. Não foi a primeira e não será, com toda a certeza, a última vez que a existência de um filme é desencadeada por elementos deste presentes noutro. Faz parte do encantamento (ou será obsessão?) da cinefilia ver The Harder They Fall (A Queda de um Corpo, 1956) por causa de um cartaz em À bout de souffle (O Acossado, 1960), ou encontrar In a Lonely Place (Matar ou Não Matar, 1950) e Bell Book and Candle (Sortilégio de Amor, 1958) a serem transmitidos na televisão em Single White Female (Jovem Procura Companheira, 1992). Tenho para mim que a verdadeira descoberta do cinema é estar aberto a este cadeado interminável de referências, apreciações e homenagens. Afinal, tudo advém quase sempre de tudo o resto.
Quando percebi que Sans Lendemain era um dos cartazes promocionais afixados à entrada do Cine Alcazar, em The Sheltering Sky (Um Chá no Deserto, 1990), de Bernardo Bertolucci, as finas linhas que formam as sobrancelhas e me enquadraram a cara quando olho para cima, como quem tem medo de olhar para baixo, envolta numa aguarela azul-céu, desviaram-me para uma tristeza estoica; o peso da dor feminina. Em retrospectiva, a simples presença do cartaz no início do filme, aquando do desembarque de Port, Kit e Tunner em Orão, Argélia, funciona enquanto premonição para a travessia pelas areias do Sahara, da qual Kit regressaria uma outra pessoa. De certa forma, encontra-se aí uma versão libertadora da enjaulada Evelyne (Edwige Feuillère) em Sans Lendemain. Se há coisa que esta obra esquecida de Max Ophüls delineia é a intensidade com que o presente é sentido por aqueles que por essa mesma razão, deixam de nele conseguir viver.
Mas comecemos pelo início. Tal como o título indica, Sans Lendemain debruça-se sobre o “sem-amanhã”, um espaço emocional onde o tempo tanto não se manifesta como o faz de rompante, arrastando consigo a sombra da tragédia que protagoniza a certeza não de um fim exactamente, mas da impossibilidade de um início (no mundo do filme e fora deste). Em Setembro de 1939, as tropas alemãs invadiriam a Polónia, dando assim início à Segunda Grande Guerra. Este seria também, e por isso, o penúltimo filme do nascido-alemão Max Ophüls em França antes do seu exílio, que o levaria aos EUA e de volta a França , para a segunda fase da sua carreira, onde floresce enquanto auteur. A fase que o mundo continua a celebrar e que vê no bater contagiante da paixão que é La Ronde (A Ronda, 1950) a sua eclosão.
Enquanto isso, dentro da Paris invernosa de Sans Lendemain, tudo começou há muito tempo, noutro país. E, como um comboio sem travões que é a vida de uma mulher no final da década de 1930, Evelyne, mãe solteira e viúva de um criminoso suicida, vê-se mergulhada na espessura dos infortúnios do presente, tentando sobreviver a este puramente para sustentar o seu filho. Quando a conhecemos, o seu passado bate-lhe à porta. A câmara de Ophüls ainda não deslizava com tanta graciosidade técnica por dentro dos mundos interiores das suas heroínas, mas já as fitava o suficiente para as seguir.
A atmosfera fílmica é frágil e a poesia decorativa, com que é filmada, faz inchar a noção do tempo presente – medido nas agulhas dos batimentos cardíacos em vez de em horas, minutos ou segundos –, que vemos crescer em saturação.
E é assim mesmo que Evelyne, a caminho de mais uma noite de trabalho no clube nocturno La Sirene, em Montmartre, se depara com Georges (George Rigaud), um médico de visita, vindo do Canadá, e o grande amor da sua vida. Ele vê-a de relance, graças ao reflexo da luz dos candeeiros nocturnos na sua cara e corre até a alcançar e a puxar até ele. Tinham passado dez anos desde a última vez que se tinham visto e a reacção agridoce de Evelyne assim que o vê – a felicidade, claro, mas também o constrangimento com o presente de que tem vergonha – sugere a narrativa relativamente convencional que se segue e que a verá presa a uma corda sufocante de mentiras, num esforço hercúleo de forjar uma fantasia.
Georges só conhece a antiga Evelyne, uma mulher de distinção que cresceu na alta sociedade. Quando o convite para jantar surge, Evelyne agarra-se a essa mesma mulher, não só por receio de que Georges a rejeite, mas também porque vê naquela oportunidade um momento de se rever. E procura o seu confidente e amigo Henri (Paul Azais), com quem trabalha, para a ajudar a arrendar uma luxuosa casa, onde afirmou viver, só por três dias, até o médico regressar. Mas para ensaiar esta vida de riqueza e abundância, que há muito perdeu, precisa rapidamente de muito dinheiro. Não é de todo um caso de vida ou de morte. Mas um ao invés dela, estripando-a.
O que é muito curioso em Sans Lendemain é aquilo que não tenho como tactear ou analisar de alguma forma. Um aroma cobre o filme, esquentando-o quase, e fazendo-o perdurar. Se em formato objectivo, seria guardado e conservado pelo simples facto de que contém a textura de um pesadelo sonhado, agarrado a um temperado e delicado melodrama noir que ainda contém muita da estrutura do Expressionismo Alemão, e onde o romantismo é desconexo. Nunca o desejaria de outra forma. Assim, naturalmente, quando pensado no contexto da obra de Ophüls, a sua dialéctica funciona enquanto um rascunho exclusivo para o esqueleto que cinéfilos e teóricos de cinema viriam a definir enquanto ophülsiens.
Neste pequeno grande filme, pobremente visto e mal-amado pelos críticos da altura, já se denotam de forma clara os alicerces desse corpo feroz de trabalho que fala sobre a sociedade em questão com a leveza que tanto esconde a escória desta como sabe que essa é a única forma de realmente a criticar.
Todos os filmes de Ophüls, e este não é diferente, escondem-se atrás de uma majestosa fachada de almas femininas e abundantes que procuram e desejam liberdade, e que se regozijam no vigor das coisas sentidas. Muito como Kenji Mizoguchi no Japão, as mulheres deixam-se olhar para que a opressão que as corrói se torne aparente no seu exterior. E Sans Lendemain é uma primeira tentativa para esse discurso mais amplo e complexo sobre um mundo profundamente chauvinista. Os vários vincos de insegurança, que impedem, por vezes, ou atrasam um sentimento narrativo aqui, em nada condenam o que é uma obra mais feminista do que ousaria saber-se na altura e que vê nas mulheres um oceano infinito de mistério e angústia.
Evelyne é também, de muitas formas, uma figura do submundo de Jacques Rivette, no sentido em que debate os limites da ilusão; a vida enquanto teatro e o teatro que se encontra na vida e se revê no cinema. E tudo em referência à mobilidade de classes sociais, puramente interessada no materialismo físico destas percepções. Ao contrário do que a tradução para o título português do filme parece dizer [Piedosa Mentira], Evelyne não mente só. Evelyne precisa de dinheiro e pede-o ao maior criminoso no submundo da prostituição parisiense, ligando-se a este por um tempo interminável, e por sinal, desligando-se da possibilidade de um futuro para sempre. Tudo o que ela tem na verdade são três dias de ilusão, onde o tempo pode parar. Tudo o resto ela já perdeu.
Um filme de cenários de cartão, das sombras e becos recônditos do Expressionismo Alemão. E usa a brisa que é o olho-mente da vida nocturna parisiense como base.
Resignado às trevas a que Evelyne se entrega, este delicado filme de apenas 82 minutos separa-se entre os flashbacks – os célebres lentos fade in e fade out entre fotogramas de Ophüls –, que vão preenchendo as fendas narrativas lentamente e com preceito, e o controlo absoluto e profusamente económico do contar da história. Cada gesto, cada movimento e cada corte são indispensáveis. A montagem não podia ser mais simplificada e por isso mesmo mais pensada do que a sentimos. No entanto, a atmosfera fílmica para a qual nos conduz é frágil e a poesia decorativa, com que é filmada, faz inchar a noção do tempo presente – medido nas agulhas dos batimentos cardíacos em vez de em horas, minutos ou segundos –, que vemos crescer em saturação. Como se na passagem das sequências estivesse um aumento de uma avalanche da mentira, onde a verdade é depois alcançada de uma vez só.
O Ophüls pré-guerra não lhe pode dar o alento que ela precisava e merecia. Nem tão pouco consegue fortalecer o filme para que em nenhum momento vejamos uma saída – “Não poderia ela simplesmente dizer-lhe a verdade?”. Em vez disso, oferece-nos a sintaxe do seu sacrifício para com o filho, que acaba por salvar, pedindo a Georges que o leve consigo para o Canadá enquanto a esperam, mas especialmente com a própria ideia de amor e de uma vida construída à volta dele.
E essa sintaxe encontra-se impregnada por aquele aroma de que falava antes e que, ao contrário das maiores produções do realizador, conduzidas com mais maturidade, tem a textura da memória difícil de precisar, igual à frustração daqueles que tentam agarrar o nevoeiro mais cerrado. No píncaro do remoinho de mudança que já se fazia sentir – elementos da equipa do filme tinham vindo exilados da Alemanha Nazi –, aquele que viria a ser um dos realizadores com mais influência na história do cinema, graças em parte à sua proeza estilística e a uma câmara subjectiva inconfundível, constrói em Sans Lendemain um filme de cenários de cartão, das sombras e becos recônditos do Expressionismo Alemão. E usa, como base, a brisa que é o olho-mente da vida nocturna parisiense.
Essa noção é completada quando no seu livro Souvenirs o próprio Max Ophüls exalta que o filme “nasceu das minhas impressões, sensações e episódios parisienses vividos durante muitas noites, em lugares e entre personagens cuja simples menção choca o bom burguês. Impressões, atmosferas (se podemos colocar este termo no plural) que, em todos os países do mundo, a censura suprimiu.” E acrescenta que a obra se encontra “(…) no universo dos chulos e das raparigas, esse universo onde repousam tantos soldados desconhecidos do amor que formam o centro vergonhoso da moral burguesa.”
Tímido, em parte porque censurado, o filme que ainda assim se embrulha nas habituais cortinas, rendas e mais tarde cobre a cabeça de Evelyne com véus, não é ostentoso com os seus movimentos de câmara – as habituais tracking shots, sempre tão elaboradas e a agitação das sequências filmadas com o auxílio de uma grua e dolly – porque aqui, mais uma vez, a vida é teatro, e na vida de Evelyne Ophüls injecta uma serenidade mortífera quando sentida por cima de tanta aflição, de tanto desejo de ser quem não se pode mais ser.
Volto-me para os “soldados desconhecidos do amor” que Ophüls refere no seu caderno de memórias, aqueles sobre quem ninguém fala amavelmente… os que vivem para lá deles mesmos, e questiono-me se o filme não será, na essência, o que nunca aconteceu.
O final previsível, mas dos mais tocantes de que tenho memória, voltando aos objectos tocados por aqueles que somem assim que atravessam o nevoeiro literal de Paris, estende os sempre presentes laivos de impotência no olhar, por vezes gélido e conciso, e outras perdido em saudade de Edwige Feuillère até ao infinito. Este não é o filme que os espectadores acabam necessariamente a amar, porque é apenas um início. É por isso perfeita a sua sugestão nos primeiros minutos de The Sheltering Sky. (É de notar que no regresso de Kit a Orão é Remorques (1939-41), de Jean Grémillon, que ocupa o lugar. Porque depois da travessia, estamos de volta ao navio e ao mar.) É deste que se corta o tecido para o acto principal, aquele de que todos falam, e que neste caso vê em Lola Montès (Lola Montes, 1955) o seu futuro, o culminar daquilo que Ophüls copiou e refez, aperfeiçoando. Neste seu primeiro filme a cores e o último antes de morrer, também lá se encontra uma mulher enjaulada, “caída”, uma figura de atracção num circo, presa ao mesmo teatro irrespirável de Evelyne, onde é moeda de troca para todos que a vêm ver e que, a 25 cêntimos por pergunta podem visitar o seu passado.
Na verdade, nenhuma outra double bill ilustra melhor a obra de Ophüls em ponto rebuçado que esta. Mas se este segundo é um deleite para os olhos com as suas cores saturadas e a exacerbação generalizada de tudo de que faz uso para encher o ecrã, o primeiro permanece o motor assimétrico que se revê uma e outra vez num enternecimento natural, livre de embelezamentos, que tão bem enquadra a efemeridade do amor na tragédia dos seus detalhes. Isso, e eu continuo a preferir os inícios. Ainda não estão manchados de expectativas ou subtextos. Permanecem crus. É aqui que a neve cai como uma chuva de penas fora da janela do albergue para enquadrar a noite intermitente de Georges com a sua “Babs”. Antes de partir para mais uma noite de trabalho, Evelyne dá banho ao filho numa pequena banheira como Helen Faraday em Blonde Venus (A Vénus Loira, 1932). E Henri deixa claro que até a lua iria buscar para Evelyne, se chegasse a isso.
Resta então saber o que é truque de magia ou não. Com Ophüls é difícil saber o que é representação. “Mas acham que estão no cinema?”, pergunta a uma determinada altura o gerente do clube nocturno, quando vê Henri e Evelyne a conversar. Estão sim, mesmo no epicentro dele. Para o melhor e o pior. Afinal era nesse mesmo lugar que Evelyne estava com Georges quando foi empurrada outra vez para a escuridão. Volto-me para os “soldados desconhecidos do amor” que Ophüls refere no seu caderno de memórias, aqueles sobre quem ninguém fala amavelmente… os que vivem para lá deles mesmos, e questiono-me se o filme não será, na essência, o que nunca aconteceu. Uma manifestação do inconsciente perdido na ânsia de uma alternativa. Talvez. De qualquer forma, Ophüls faz o urgente e honra os sacrifícios destes em todo o seu esplendor.