Mas o conflito do filme (…) transcende em muito a disposição cénica, como transcende o mistério desses corpos e almas simultaneamente opacos e transparentes. E manifesta-se na contaminação que tudo e todos sofrem de um outro olhar (o olhar do realizador) que os desvenda e os desventra.
João Bénard da Costa, in Folha de Sala de Benilde ou a Virgem Mãe (1975), de Manoel de Oliveira
Há uma expressão – uma espécie de aforismo – de que gosto muito e que costuma ser atribuída ao crítico de cinema norte-americano Andrew Sarris, que reza assim: “o cinema é um espelho e uma janela”. Talvez apócrifa, ou talvez corrompida no seu sentido original, esta frase tem-me acompanhado desde há vários anos e, volta e meia, recordo-me dela quando num filme encontro um conjunto de soluções que nela ressoam. Um dos últimos exemplos havia sido o plano final de The Immigrant (A Imigrante, 2013): um tratado, em forma de travelling à frente, que literalizava numa só imagem esse dizer de Sarris em toda a sua dimensão alegórica (o futuro e o passado a correrem paralelamente, para a trás e para diante, para o exterior e para o interior, para a luz e para o escuro, em duas metades coincidentes de um mesmo ecrã sobre-enquadrado numa janela e num espelho).
Não se pode dizer, exatamente, que Matt Reeves seja o novo James Gray (nem o novo Carpenter, nem a nova Bigelow, nem sequer o novo Fincher – mas já lá iremos), o certo é que há em The Batman (2022) toda uma construção em torno dessa antinomia janela-espelho, numa abordagem que deve muito à de Gray (e de Carpenter, de Bigelow ou de Fincher), a saber, o encontro desempoeirado entre o predomínio da ação e o recurso a dispositivos visuais de cariz eminentemente estrutural. Isto porque o filme se apresenta como um longo arco que liga concetualmente o seu primeiro e último planos: duas formas estéticas e éticas de se subjetivar o olhar (já que todo o filme se desenvolve em torno de olhares subjetivos e da dúvida ontológica que estes produzem).
O primeiro plano de The Batman é, sem surpresa, uma subjetiva que nos dá a ver, através de uns binóculos calibrados e de uma respiração ofegante, uma janela (!) onde uma família-modelo se reúne no dia de Halloween. Aqui, naturalmente, Reeves cita, com alguma subtileza, esse célebre plano virtuoso que abria Halloween (Regresso do Mal, 1978). Como Carpenter, Reeves pretende instalar uma dúvida: a quem pertence este olhar que o filme nos dá a ver? Esse plano corta para o interior da casa que observávamos através da janela. O pai que víamos antes com a esposa o filho mascarado fala ao telefone e caminha para lá e para cá. O enquadramento é fixo e no centro deste está um televisor que nos explica que ele é um político que está a perder nas sondagens. Reeves dá-nos o contracampo (de 180º) quando o homem estanca em frente ao ecrã. Assim que a conversa retoma e as notícias deixam de lhe prender a atenção, ele volta a passear pela divisão, só que ao mover-se revela-nos que nas suas costas (isto é, no exato local de onde o víamos antes da mudança de plano) está uma figura encapuçada (a mesma que olhava?). Ou seja, aquele que era um plano fixo aparentemente banal de um homem que deambulava por um quarto, revela-se como uma terrífica subjetiva de um assassino que observa, impávido e sereno, a sua incauta vítima (já sem os tropos típicos da subjetiva, a câmara à mão, às máscaras oculares ou o som de respiração).
A dúvida que o realizador instala no espetador deixa de ser “a quem pertence o olhar deste plano subjetivo?” e passa a ser algo bem mais perturbador, “será que cada um destes planos é, afinal, uma subjetiva do assassino?”
A dúvida que Reeves instala no espetador deixa então de ser “a quem pertence o olhar deste plano subjetivo?” e passa a ser algo bem mais perturbador: “será que cada um destes planos é, afinal, uma subjetiva do assassino?” Esta dúvida, que impregna a realização como um vírus, acrescenta uma carga de tensão às situações mais banais; torna o mal presente em cada momento, como se a própria linguagem fílmica estivesse já contaminada. Estratégia esta que João Bénard da Costa primeiro identificou no cinema de Manoel de Oliveira em O Passado e o Presente (1972), atribuindo-lhe (ao uso do plano subjetivo) a sua verdadeira dimensão moderna. Sendo que para Oliveira esses olhares aparentemente sem sujeito remetiam, ora para a presença de Deus (ou do realizador), ora como manifestação do desejo (corporizado enquanto ponto de vista). Para Reeves, o plano subjetivo acentua o mal-estar da vigilância e impõe-nos uma presença sem rosto mas toda ela física, demente e cruel.
É curioso perceber que esta conceptualização da mal sem rosto é, afinal, uma transposição formal daquilo que caracteriza o filme de super-heróis, as máscaras (aqui elevadas a uma dimensão quase programática, já que nem Pattinson quase aparece, o Riddler é – literalmente – uma incógnita até ao fim, e Colin Farrell está, simplesmente, irreconhecível enquanto Penguin; ele é a sua própria máscara). O que sobrevém, portanto, de todas estas figuras, são os olhos e, como tal, os olhares. É aqui (nos jogos de quem-é-quem) que o filme se aproxima do cinema de David Fincher, nomeadamente de Zodiac (2007), ao qual lança várias piscadelas de olho, mas também a Seven (7 Pecados Mortais, 1995) e o seu mais notório herdeiro, Saw (Enigma Mortal, 2004).
Como se isto já não bastasse, Reeves acrescenta uma solução tecnológica à narrativa que vem complexificar (e complicar), mais ainda, esta problemática da origem dos pontos de vista. Surge então uma lente de contato que transmite, para um ecrã, o olhar de quem a usa. A estratégia não é nova e remete-me para aquela que é, segundo me parece (e Reeves certamente concordará), uma das obras-primas do cinema dos anos 1990, Strange Days (Estranhos Prazeres, 1995), de Kathryn Bigelow. Aí, trocavam-se e vendiam-se experiências de morte “gravadas” na primeira pessoa. Aqui, trata-se mais de um gimmick visual para melhor relacionar duas personagens que comunicam à distância. Só que daí produz-se um extraordinário plano em que a Catwoman se olha ao espelho para confrontar, “olhos nos olhos”, o Batman, que acede ao seu olhar através do referido equipamento. Subitamente, fui lançado para as elegantíssimas subjetivas em frente ao espelho em Dr. Jekyll and Mr. Hyde (O Médico e o Monstro, 1931), de Rouben Mamoulian, ou para esse objeto cinematográfico não identificado que é Lady in the Lake (A Dama do Lago, 1947), de Robert Montgomery, inteiramente construído em planos subjetivos [daria uma curiosa double bill com Cloverfield (2008), o “primeiro” filme de Reeves].
O que interessa, a este respeito, é que os planos subjetivos que abriam o filme, cuja origem era difusa e assustadora, passam aqui a ser uma forma de comunicação direta entre duas personagens (quando se inclui o elemento do espelho). Catwoman tem que se olhar para poder lançar a sua mirada além do espelho, para o ecrã onde sabe que Batman a observa. Aí – paradoxo dos paradoxos – o plano subjetivo ao fechar-se sobre si mesmo (ao ver-se ao espelho) “alteriza-se”, escapando – em movimento centrífugo – do umbiguismo que o caracteriza. Como se só fosse possível chegar ao outro depois de nos olharmos profundamente. Ou, inversamente, como se só fosse possível vermo-nos profundamente através do olhar que os outros lançam sobre si.
E tudo isto culmina no plano final. Batman a cavalo numa mota encaminha-se para o nascer do sol, o enquadramento é um plano médio contrapicado que nos mostra o seu rosto mascarado ao vento. Eis senão quando Batman desce o olhar e encara diretamente a câmara. A surpresa é grande (o filme nunca havia procurado quebrar a quarta parede), mas logo há um corte que nos dá o contracampo: o espelho (!) retrovisor onde se vê a Catwoman a desaparecer no horizonte urbano. Afinal, aquele olhar para a câmara era um olhar para o espelho, ou seja, a câmara havia assumido uma subjetiva do próprio espelho. Esse olhar para a câmara é simultaneamente um olhar para diante, para o espetador presente na sala, e um olhar para trás, para o passado que se calcifica (a relação que podia ter sido e não foi). É, portanto, um olhar através do ecrã do cinema e um olhar retrospetivo, que reflete a mágoa da personagem. É uma janela e um espelho, para a personagem, e uma janela e um espelho para nós, espetadores, que nos redescobrimos no olhar dele (sobre si e sobre nós). Se antes, diegeticamente, o espelho com o plano subjetivo permitam um encontro entre os amantes, agora esse mesmo espelho e essa mesma subjetiva selam o fim desse romance enquanto enlaçam o espectador como terceiro elemento desse triângulo de olhares cruzados.
Se isto são apenas pormenores de uma empresa bem mais ampla (e genericamente com muito menos interesse), certo é que se encontram, em The Batman, momentos de uma destreza formal que impressionam o mais cético dos céticos. É, indubitavelmente, um filme de super-heróis e tem uma série de excessos típicos do género. Em particular, perde-se (como é típico) numa rede de personagens que começa por parecer uma teia de um thriller político mas que logo cai na novela da tarde (todas as personagens são órfãs e têm daddy issues). E não é uma extraordinária sequência de perseguição automóvel [ao nível da de We Own The Night (Nós Controlamos a Noite, 2007), de James Gray] que salva o filme dessas obrigações contratuais. Ainda assim, Matt Reeves é dos melhores (senão mesmo o melhor) dos tarefeiros da Hollywood contemporânea e talvez – quem sabe… – se venha a libertar destas obras alimentícias (que tem realizado com a máxima correção e inteligência) e faça o grande filme que ainda lhe falta fazer.