working girl noun
informal
a young woman who has a job
Há pouco cinema americano mais incendiário do que aquele feito em Nova Iorque no bolso das décadas de 1970 e 1980, um dos períodos mais sombrios da cidade, e talvez por isso o mais iluminado criativamente, em retrospectiva. Lizzie Borden é um dos nomes associados a um activismo, um encadeamento de luz, que responde a uma cidade pré-gentrificação onde o conflito não deixa espaço para o debate. Pensar na sua obra-prima mainstream Working Girls (As Profissionais do Sonho, 1986), vencedor do Prémio Especial do Júri no Festival de Cinema de Sundance em 1987, é primeiro colocá-la no contexto dos seus outros filmes underground, nomeadamente os dois que lhe precederam, Regrouping (1976) e Born in Flames (Nascidas em Chamas, 1983), os primeiros eletrochoques direccionados a um manifesto maior da realizadora, onde as dinâmicas sociais que até hoje ainda tilintam o colectivo feminino são esmiuçadas. Nestas mean streets e perante o colidir das guerras sexuais no final dos anos 80, Working Girls não só completa a trilogia feminista, como a exactifica de forma mecânica, olhando para o ritualismo do dia-a-dia. E fá-lo partindo da semiótica do cinéma vérité para investigar a realidade do real, um desafio de captar em cinema. Noutras palavras, depurando uma verdade que não se podia reduzir a nenhum tipo de planificação, porque acontece dentro do filme, no roçar de sequências. Em Working Girls, vemos isso mesmo a acontecer, ainda que dentro de uma narrativa que se despe em três actos.
Dito isto, numa linha de pensamento que traz para primeiro plano a desigualdade atroz no Ocidente e pelo mundo fora, o assim chamado “problema das mulheres”, a que a própria Borden se refere quando fala com a revista feminista Another Gaze, em 2016, o seu ímpeto começa por ser o de lhe dar um corpo. No processo de o fazer, homenageia sem querer o honesto retrato de Dorothy Arzner da vida de duas irmãs num mundo hostil durante a Grande Depressão em Working Girls (1931), dando o mesmo nome ao seu filme. A metáfora está lá para ser desmistificada. Uma working girl é, na mais simples das formas, uma rapariga que trabalha. Ao injectar imparcialidade no seu modo filmar o trabalho sexual enquanto este é realizado, o filme vira-se de pernas para o ar. Há uma humanização palpável, que combate o uso de imagens directas e pornográficas. A força de dar visão ao invisível é fulminante. Há uma tentativa muito clara aqui de construir terreno que nunca tinha ali estado antes e revela o que nunca tinha entrado pelos olhos dos espectadores: a verdade do que foi durante tantos anos construído apenas pela imaginação e empurrado para a decadência através do peso do policiamento e do estigma social. Esta é, afinal, uma profissão que se resume a uma prestação de serviços assalariada.
Começando pelo início, Working Girls é, antes de mais, a história de um dia passado na vida de Molly (Louise Smith), uma fotógrafa lésbica educada na prestigiada universidade de Yale que trabalha em regime part-time para Lucy (Ellen McElduff), a assim chamada de madame, dona de um bordel que explora as suas empregadas, rebolando os esforços destas em meias-verdades e ameaças passivo-agressivas. A parceira de Molly e a filha de ambas não sabem que em vez de estar a fotografar um casamento até tarde, Molly está fechada num apartamento em Manhattan com outras raparigas e que, entre momentos de espera e o estender e recolher de lençóis em cima de camas, está a fazer um turno duplo enquanto trabalhadora do sexo. Na intimidade serena que caracteriza as manhãs da sua família, deparamo-nos com um pólo extremo quando vemos esta a oferecer-se aos ritmos e ansiedades de horas passadas num espaço tão impessoal como um bordel, ainda que as cores das paredes, a decoração e a própria iluminação usada verta para o familiar, uma dimensão até relativamente doméstica. Borden está interessada na frieza fumegante da materialidade do trabalho sexual, os procedimentos que antecedem e procedem os minutos de sexo com cada cliente, onde é a velocidade e a repetição que mostram o trabalho a ser realizado. Por um lado, o vestuário usado, os contraceptivos, a higiene, mas também, e mais importante até, a economia da transacção do que é uma profissão de atendimento ao cliente: os custos, os lucros e os benefícios adicionais. Ou seja, aproxima-se dos gestos para depois extrair os procedimentos que catalogam a relação sexo-dinheiro, nunca colocando completamente de lado o papel que liga actividade a identidade. Aqui, as mulheres acabam magnificadas. O olhar é antropológico, mas sobretudo económico, referente ao tempo gasto (dinheiro ganho?) do trabalhador.
Num alinhamento de acções e tempo entre clientes, o filme de Lizzie Borden retira as camadas da ilusão, uma a uma, até nos oferecer uma simulação do passar do dia, sentido enquanto real. A autenticidade evidenciada é a mesma à qual todos nos agarramos profissionalmente; uma mentira só nossa. Pensando com mais ênfase no cinema da performance que é o trabalho sexual, as raparigas passam o tempo à espera que o telefone ou a campainha toquem, em preparação para mais um acto de fingimento do prazer humano. Lá pelo meio, o tempo vai deslizando pelos dedos, e os espaços livres são ocupados com conversas e preocupações, refeições rápidas, idas à loja de conveniência e observações que colidem entre empregado e empregador. É mais do que natural perguntarmo-nos a uma determinada altura porque é que aquelas mulheres escolheram fazer o trabalho, tendo em conta a sua tão vulnerável natureza – elas também o perguntam entre si no filme -, mas o que se tem que reter aqui é que até os momentos de maior genuinidade não despem a artificialidade a que o trabalhador se tem que agarrar.
Em contraste directo com o documentário reaccionário canadiano, Not a Love Story: A Film About Pornography (1981), de Bonnie Sherr Klein, que tinha evidenciado a pornografia em formato e conteúdo, e assim nulificado o acontecer da labuta, Borden despe o grafismo daquilo que é visto enquanto erótico e averigua o significado do erotismo. Ao contrário do que é dito, Borden não deserotiza a profissão aqui. Há sexo nos rituais invisíveis, no despir e vestir de roupa, há sexo nas preferências por clientes e nas relações temporárias, curativas, criadas com eles. Ela sabia-o, melhor que ninguém, por ter sido, ela mesma, uma working girl para conseguir financiar Born In Flames, de que é na invisibilidade dos detalhes que levam à realização do serviço onde a profissão se encontra, e não num estacionar desta no acto sexual apenas, como o mundo o vê.
O naturalismo que o filme provoca encontra-se algures entre o detalhismo etnográfico e o esquematizar da orquestração do real, de onde germina o próprio compreender da verdade a que temos acesso, definindo então o que nenhum documentário conseguiria sequer introduzir. A acompanhá-lo está a própria infiltração de Borden com o filme na indústria do cinema naquele momento.
Voltando ao corpo de trabalho de Lizzie Borden, que anda de mão dada com a representação das mulheres marginalizadas pela sociedade, seja pela sua etnia, orientação sexual ou ocupação profissional, esta dá a conhecer primeiro a mulher que se despe, de fora para dentro, e depois a arquitectura do local laboral onde esta se despe, que funciona mais amplamente enquanto uma alegoria para um aprisionamento que em nada diz respeito ao trabalho sexual, especificamente. Ou seja, a arquitectura construída pela câmara, mas também a arquitectura emocional do espaço por onde a câmara pode navegar. A abordagem de Borden é uma de observação aproximada, mas indirecta. O olhar é inteiramente feminino. “A Judy [directora de fotografia, Judy Irola] e eu falámos muito sobre como filmar a nudez feminina para que nunca olhássemos por entre as pernas de uma mulher. Nós nunca olhamos para uma mulher por um ângulo através do qual ela não se conseguiria olhar. A ideia de nudez era conseguida através do female gaze (…)”, reforça Borden no comentário do filme que acompanha a versão restaurada pela Criterion Collection. A interioridade atingida no local de trabalho para a qual nos deixa estar presente é preciosa. Um diafragma difícil de colocar. Um preservativo com esperma enrolado num guardanapo de papel. Sangue menstrual que escorre pelo lavatório da casa de banho. As garrafas de listerine na despensa. Ou até Molly a tomar um banho, em vez de um duche, ao final do dia. Mas em nenhum outro momento ou de outra forma é quebrado o protocolo profissional que estas mulheres têm com aquele lugar. Não há uma dimensão à frente ou atrás do palco. Tudo o que vemos enquanto naquele espaço é criação limpa e arrumada, sob o total controlo das verdadeiras mulheres que se encontram dentro das roupas que vestem, predefinidas enquanto máscaras.
No decorrer do filme, há um enlevamento da vulnerabilidade de momentos de intenso pesar, como o da chegada da madame e de uma working girl veterana que redirecciona a atenção de Molly para ela mesma. Mas dentro daquelas paredes, há uma textura que é táctil e intransigente. Não há lugar para a ambivalência: o caminho que é feito da porta às escadas é a primeira paragem; a bebida oferecida ao cliente; o sofá onde se sentarão antes de subirem ao primeiro andar; à saída, a pequena kitchenette, à direita, antes da porta. Tudo serve um propósito. Não parece haver janelas ou provas do mundo exterior, o que desmaia um acompanhar das horas passadas ali dentro. Este estado de ser recto e separado por secções de forma tão linear amplifica a verdade do real e ilustra na essência um vácuo de miserabilidade capitalista.
Tendo tudo isto em consideração, bate dentro do coração de Working Girls um estudo que fala mais do estado das mulheres no trabalho do que da profissão a ser examinada aqui, extraído dos vários buracos de respiração do filme e confirmado no seu terceiro acto. As mulheres apresentadas são complexas e indefiníveis, ainda que estejam presas aos estereótipos físicos no qual se encosta o trabalho sexual. Os homens, sentados naqueles sofás, são arestas. O argumento revela uma construção ensaísta, espelhando a arquitectura do apartamento: a labuta localizada, física e impossível de conter, claustrofóbica e apagadora. O naturalismo que o filme provoca encontra-se algures entre o detalhismo etnográfico e o esquematizar da orquestração do real, de onde germina o próprio compreender da verdade a que temos acesso, definindo então o que nenhum documentário conseguiria sequer introduzir. A acompanhá-lo está a própria infiltração de Borden com o filme na indústria do cinema naquele momento. Assim sendo, a abstração do mundo da “prostituta” é substituído por aquele do trabalhador feminino, que vende serviços diariamente por dinheiro.
Na verdade, este podia ser um filme sobre qualquer outra profissão na indústria de atendimento ao cliente. Se existe um antagonista aqui não são os homens, mas a madame que suga os seus empregados. No final, tudo é tempo desperdiçado e dinheiro perdido. “Vale a pena?” é uma pergunta que também pode ser feita a uma mulher em 2022 que trabalha a recibos verdes num escritório. “(…) o que é pior? Quarenta horas por semana num trabalho de escritório enfadonho, ou oito horas num bordel? Depende daquilo que aguentas. Algumas pessoas não conseguem lidar com isso, mas será arrendar o teu corpo por oito horas assim tão pior que arrendar a tua mente por 40 horas a trabalhar, digamos, na Kinko’s [escritórios da FedEx]?”, aponta Borden com muita perspicácia numa entrevista para a revista Cinema Scope. ‘Um acto de solidariedade’ é como a activista So Mayer destilou o filme num ensaio para a Criterion e é assim que também o continuo a sentir. No rescaldo dos altos e baixos do dia de Molly, uma fotógrafa que olha e retrata aqueles que por ela passam, a sua noite de quinta-feira radiografa as horas corridas até ali e mede o pulso à humanidade, no qual tenta discernir um zunido de empatia.