É mais fácil de longe imaginar
o que seria ter-te aqui presente
do que seria ter-te e não saber
com que forma de corpo receber-te.
António Franco Alexandre, em Poemas
Fazendo parte da nova vaga de cineastas americanos que emergiu do apogeu da televisão no pós-guerra, Robert Mulligan nunca terá conseguido que a sua longa carreira confirmasse inteiramente a promessa contida na aclamação inicial de que foi alvo. Formado na escola da televisão (à semelhança de Sidney Pollack, Arthur Penn, Sam Peckimpah), partilhando com outros da sua geração (como Sidney Lumet, Martin Ritt, John Frankenheimer) o propósito de manter um equilíbrio difícil entre exigências comerciais e obras pessoais empenhadas, que a crítica nem sempre destacou, não haveria como regatear-lhe o reconhecimento devido à sua sensibilidade particular no tratamento das relações humanas, quando o sucesso popular o bafejou, como aconteceu com o filme Summer of ’42 (Verão 42, 1971).
O argumento deste filme foi escrito por Herman Raucher que, durante sete anos, acumulou recusas, umas quarenta e nove ao que consta, até que em 1969, pela mão do realizador Robert Mulligan, a Warner Bros. aceitou produzir o filme com um orçamento de 1 milhão de dólares. As expectativas de êxito eram tão baixas que, antecipando mesmo um fracasso comercial, os direitos de autor de Herman Raucher não foram pagos à cabeça, mas através de um contrato de participação nas receitas futuras. Filmado em 1970, o filme é lançado no ano seguinte, realizando uma extraordinária receita de bilheteira de 30 milhões de dólares. Tudo fora das previsões e expectativas, razão pela qual Herman Raucher tinha sido instado a escrever, em poucos meses, uma novelização do argumento que pudesse ser lançada antes da estreia, como forma de promoção suplementar do filme, o que para muitos fez passar este por uma adaptação da novela. O livro tornou-se um best-seller que, entre 1971 e 1974, contou com 23 reimpressões.
O fundo profundamente autobiográfico de Summer of ‘42 tem na sua origem a relação de amizade entre Herman Raucher e Oscar Seltzer que, para além da escola primária em Brooklyn, passavam as férias juntos, com as respectivas famílias, na ilha de Nantucket (Massachusetts), onde os eventos da vida real ocorreram, durante as férias de Verão em 1942, quando o jovem Herman Raucher tinha 14 anos. É durante essas férias que Raucher conhece Dorothy, uma mulher recém-casada, cujo marido mobilizado para a guerra acabara de partir para a Europa, sendo que o breve relacionamento que manteve com ela o marca indelevelmente.
Em duas entrevistas, Herman Raucher, publicista de formação que trabalhava como cartoonista e autor de banda desenhada, fez questão, no entanto, de precisar o motivo deste seu empreendimento literário: «Escrevi [Summer of ‘42] com Oscy sempre bem presente porque ele foi morto no dia em que eu fiz 24 anos – 13 de abril de 1952 – e nunca esqueci isso». Sobre este acontecimento, que ocorre dez anos depois das férias em Nantucket, acrescenta: «O meu amigo Oscy estava na Guerra da Coreia, era médico e foi morto quando prestava auxílio a um ferido». Tinham mantido sempre um contacto próximo, mas «a última vez que o vi foi quando ele foi convocado – antes de mim. Ele veio despedir-se». E conclui: «a partir de então, nunca mais celebrei a data do meu aniversário»[i].
Ao contrário da novela que, em homenagem ao amigo, enfatiza a relação entre Hermie (Herman Raucher, o narrador) e Oscy (Oscar Seltzer), o filme dá um maior relevo ao envolvimento de Hermie com Dorothy [Jennifer O’Neill]. É com estas palavras que a novela começa: «Sempre tinha desejado regressar, para ver a ilha outra vez». Já no fecho do filme, pela voz do narrador, ao sumariar os eventos que marcaram as férias de cada um dos membros do “terrível trio” de amigos [que, para além de Hermie (Gary Grimes) e Oscy (Jerry Houser), inclui Benjie (Oliver Conant), um rapaz um pouco mais novo que deixa de se ver na última parte do filme], ficamos a saber que, ele próprio, «Hermie se perdeu para sempre»[ii].
Se bem que o narrador tenha acrescentado que foi de «uma forma especial» que essa perda ocorreu, fica por avaliar, contudo, se o facto de Dorothy, com a notícia da morte do marido na frente de batalha, ter abandonado apressadamente a ilha, não constitui o outro lado, o reverso, do luto que, de outro modo, como sempre acontece nesta idade, se enliça com a morte da infância, a que o primeiro amor traz uma percepção mais aguda do risco incorrido. Na carta que lhe deixou, Dorothy escrevera: «Não vou tentar explicar o que aconteceu ontem à noite porque sei que, com o tempo, encontrarás uma maneira adequada para o lembrares». Ao desejar ver a ilha outra vez, para Hermie, na luta contra a irreversibilidade, as contas ainda não estavam feitas.
Robert Mulligan, perante o facto de muitos dos seus filmes lidarem com os altos e baixos emocionais experimentados por crianças e adolescentes ao enfrentarem circunstâncias traumáticas, faz notar o seguinte: «Recorre-se habitualmente a um cliché dizendo que se trata de um “filme de passagem para idade adulta”, designação que eu rejeito. Eu penso que se trata da “entrada na vida”. Eu senti, quando voltei a pensar nisso, que eu não sabia verdadeiramente o que era a vida até ao momento em que, na minha adolescência, me dei conta de que mais cedo ou mais tarde eu tinha de sair pela porta da frente. Nesse momento, o pai e a mãe não estão lá para servir de protecção. As coisas tornam-se excitantes e aterradoras ao mesmo tempo»[iii].
Assim, no filme, cada despedida constitui o prenúncio de uma outra, cada partida antecipa o luto pela morte de uma idade que ― à falta de outros ritos de passagem destinados a ajudar a enfrentar a morte da infância, num momento determinante como é o da preparação para a primeira experiência amorosa ― já não pode evitar a ruptura que conduza à autonomia e, ao mesmo tempo, se debate não só com as metamorfoses do corpo, mas sobretudo com as pulsões da sexualidade.
Se houvesse que manifestar preferência por uma forma escrita para voltar ao passado juvenil, quem retivesse alguma menção de Robert Walser não deixaria de considerar a possibilidade de a mesma ser atribuída à redacção, nomeadamente, se tivesse tido a oportunidade de ler As Redacções de Fritz Kocher. Será, porventura, necessário vencer a perplexidade já que o seu autor, que desde logo esclarece que «é como escritor que me imagino sempre que escrevo redacções», deixa para as últimas páginas o enunciado das exigentes condições do seu exercício, a saber: «Escrever é uma questão de entusiasmo em silêncio. Quem não consegue ficar sentado sem se mexer, quem pelo contrário se lança sempre a um trabalho ruidosamente e atribuindo-se grande importância, nunca conseguirá escrever bem e com vivacidade»[iv].
A faculdade que os rapazes demonstram de, nessas redacções, poderem «falar de maneira muito sábia e muito tola quase ao mesmo tempo» não deixaria de ser uma observação ajustada ao quadro que, em Verão 42, é posto diante dos nossos olhos. Mais difícil seria explicar a razão por que é preciso ficar «tantas vezes sentado horas e horas, debruçado sobre uma palavra que tem de fazer o longo caminho da cabeça até ao papel»[v].
Ainda assim, tivesse a redacção por tema “a casa”, e Hermie, regressado à ilha das férias em que «viram cinco filmes e tiverem de suportar nove dias inteiros de chuva», passados os anos necessários, não enjeitaria, à falta de outro diário, usar o verso da carta deixada por Dorothy para então aí anotar:
«Era como um sonho, como um jogo apenas, como um quadro. O rapaz pousou a cabeça nos cotovelos e ficou absorto a contemplar o quadro. De repente levantou-se e foi-se embora. Muito bem, é lá com ele. Depois chegou a chuva e apagou o quadro»[vi].
É na penúltima cena do filme, a cena à noite em casa de Dorothy, que Robert Mulligan e o director de fotografia Robert Surtees elevam ao máximo as suas capacidades dramatúrgicas e de composição plástica (demonstrando ao mesmo tempo como a experiência televisiva de Mulligan produzia aqui os melhores frutos): uma longa cena de mais de 16 minutos, inteiramente nas mãos do “homem-da-câmara”, numa exercício de mobilidade capaz tanto de acompanhar os mais delicados movimentos interiores das personagens como de ir à procura de objectos (gira-discos, telegrama, cinzeiro, flores do papel de parede, mãos, sombras) que se interpõem entre o seu olhar e a nossa visão, tudo meticulosamente convocado para este comovente rito de passagem, em que ao anúncio da tragédia que o telegrama revela, se junta uma insuspeitada prova da realidade para Hermie que, querendo romper com a infância, mostra com maior pungência também quanto é pequeno ainda para lidar com a morte assim de caras. E com o amor.
Hermie não foi «poupado a todas as tragédias sem sentido», apesar dos votos que Dorothy fizera. Regressado à ilha, «se a magia do lugar persistia», à chegada, ao «tomar o caminho para voltar a casa», na hora da partida, a mais difícil prova fora verificar como já ninguém se lembrava dele ali, a não ser um pássaro que assinalara a sua visita «deixando no pára-brisas do seu automóvel uma grande massa de excrementos que começava a secar», conclui a novela.
Recorrendo a Walser, poder-se-ia continuar assim:
«Na verdade, desse assunto aparentemente desinteressante», escreve Walser sobre as cinzas, «pode-se observar, por assim dizer, indo um pouco mais fundo, coisas que não são de pouco interesse. Isto, por exemplo, é que se soprarmos nas cinzas não há absolutamente nada nelas que ofereça resistência a não voar num instante. A própria cinza representa a humildade, o insignificante, a ausência de valor. E o que é ainda mais belo: ela mesma está impregnada da convicção de que não vale nada. Pode alguém ser mais inconsistente, mais fraco, mais inepto do que as cinzas? É realmente difícil. Pode alguém ser mais complacente e mais paciente do que as cinzas? Claro que não. A cinza é desprovida de carácter, e da madeira de qualquer espécie está ainda mais longe do que o desânimo da euforia. Onde há cinzas, a bem dizer, não há nada. Põe-se o pé nas cinzas e mal se percebe que se pisou alguma coisa»[vii].
Ou, terminar assim:
«As nuvens são aquilo de que mais gosto. São tão sociáveis como amigos bons e silenciosos. Com elas o céu torna-se logo mais movimentado – mais humano»[viii].
[i] «Herman Raucher Interview (extended), by Louis Hillary Park», TCPalm, maio de 2002, https://web.archive.org/web/20051123143738/http://web.tcpalm.com/specialreports/summerof42/raucher.html; «Herman Raucher (2016), Interview by Preston Fassel», CineDump, 13 de setembro de 2016, http://www.cinedump.com/interviews/2016/9/13/hermanraucher.
[ii] Herman Raucher, Summer of ’42, [1971] (New York: Diversion Books, 2015).
[iii] Brian Baxter, «Robert Mulligan», The Guardian, 23 de dezembro de 2008, https://www.theguardian.com/film/2008/dec/23/obituary-robert-mulligan.
[iv] Robert Walser, As Redacções de Fritz Kocher, trad. Isabel Castro da Silva, [1904] (Lisboa: Bazarov, 2021).
[v] W.G. Sebald, Il passeggiatore solitario: in ricordo de Robert Walser, trad. Ada Vigliani, Prima edizione digitale (Milano: Adelphi Edizioni, 2015), 18.
[vi] Walser, As Redacções de Fritz Kocher, 99.
[vii] Sebald, Il passeggiatore solitario: in ricordo de Robert Walser, 17.
[viii] Carl Seelig, Caminhadas com Robert Walser, trad. Bernardo Ferro (Lisboa: BCF Editores, 2019), 68.