Azor (Azor – Nem Uma Palavra, 2021) não será o primeiro filme que toma como encargo ir indagar de uma génese do mal na década de oitenta. É um traço que identificamos noutros filmes, tais como o recente The Nest (O Ninho, 2020) ou mesmo Donnie Darko (2001). Em Azor situamo-nos no mundo da alta finança, aterrando numa cidade de Buenos Aires onde o clima político é instável. Yvan De Wiel (Fabrizio Rongione), um suíço que trabalha na banca privada, encontra-se na Argentina para visitar alguns clientes depois da estranha e repentina ausência do sócio que habitualmente deles se ocupava, René Keys. É um nome muitas vezes repetido, alguém cujo papel de banqueiro se confundia frequentemente com o papel de amigo (algo mais, talvez?), ou talvez um “infame manipulador”, uma personagem cuja personalidade tentamos construir a partir de uma séria de dados desarticulados. A descrição que Yvan faz do apartamento de Keys parece ser a descrição da sua personalidade – um labirinto, com muitas portas. Yvan está a empreender a primeira visita pessoal a estes clientes, reproduzindo a “tournée du chameau” que outrora fizera, o termo do jargão financeiro que define este percurso iniciático. É um tempo muito particular para a Argentina, anos marcados por uma forte crise inflacionista que acabaria por provocar a fuga de capitais do país.

Acompanhamos Yvan nas visitas aos seus clientes, visitamos as propriedades de várias famílias pertencentes à crème de la crème da sociedade argentina. As primeiras figuras que conhecemos apresentam todos os traços característicos de old money, parecem ocupar espaços perdidos no tempo – um pouco como a família de Il giardino dei Finzi-Contini (O Jardim Onde Vivemos, 1970) – pertencendo a uma época em que a sua classe, as suas raízes, a sua educação é demonstrada pela facilidade com que se expressam em francês, que funciona neste meio como língua franca, pelo colégio que frequentaram, pelos locais da Europa que conhecem quase como sua casa. Parece que estamos perante membros de uma aristocracia que morreu definitivamente com a II Guerra Mundial. Apesar de esta ser a primeira visita de Yvan e Inès (Stéphanie Cléau) à Argentina, eles comportam-se com a desenvoltura e familiaridade próprias de quem se encontra junto a velhos conhecidos. Sentimos que eles se encontram num reduto protegido, apesar de toda a tensão que os rodeia e que se adensa, desde logo nos minutos iniciais, quando aguardam dentro do carro, contemplando várias pessoas que vão sendo revistadas por militares, o motorista tentando acalmá-los, dizendo que não há nada a recear.
O banqueiro que se afigurava, perante todos, como o homem honesto, de bom carácter, é justamente aquele que se encontra mais preparado para jogar o jogo mais sujo (…)
É todo um mundo que parece saído de uma fotografia de Slim Aarons, relembrando aquilo que Macaulay Connor dizia a dado momento de Philadelphia Story (Casamento Escandaloso, 1940) – “The prettiest sight in this fine pretty world is the privileged class enjoying its privileges”. Há um pudor em falar objectivamente sobre coisas não-sublimes, coisas feias da vida real – o dinheiro, a política, a violência. Mesmo o desaparecimento de uma filha que escapou a esta bolha é referido de forma quase enigmática, oferecendo mais lacunas do que factos. E a grande dama do teatro radiofónico que cumprimenta Yvan na festa tem o seu passado referido num breve sussurro – “era uma grande fortuna que se perdeu…”.
A presença de Inès, exímia no modo como se movimenta neste mundo, verdadeira mentora de Yvan, é por isso determinante. O seu papel de facilitadora começa, desde logo, no facto de ser prima do embaixador da Suíça em Buenos Aires, alguém que conhece profundamente o “quem é quem” nas esferas de poder. É também Inès quem com Yvan partilha um léxico próprio, um patois que apenas eles conhecem e que usam para se movimentar no domínio da alta finança. Este é, aliás, um filme feito de presenças femininas fortíssimas, mulheres de diversas gerações que, adivinhamos, outrora terão brilhado na alta sociedade argentina, dotadas de um porte que deixa notar beleza desvanecida, uma certa elegância intemporal. Mulheres que parecem morar no tema A Lady of a Certain Age, dos The Divine Comedy. E a figura de Inès é especialmente marcante, pois ela é um falso intérprete secundário. Como ela própria afirma, ela e Yvan constituem um só, e esse um só é Yvan. A Yvan é a face visível, mas muito do que há em Yvan é Inès.

Se há muito a descortinar em todos aqueles silêncios e insinuações, a verdade é que somos concomitantemente inundados de palavras, nomes que correspondem a personagens que não se materializam (Bijou, Keys) e nomes que conhecemos amplamente antes de estarem associados a um rosto. E conhecemos rostos que carregam um outro nome (a irmã de Magdalena, Alicia, que com ela tem uma parecença assinalável, provocando a confusão em Inès), bem como rostos que não passam de uma composição de imagens, sem que alguma vez ganhem vida própria (Leopolda, a filha de Padel-Camon). O próprio banco de Yvan toma a designação de uma junção improvável de nomes – Banco “Keys Lamar De Wiel”.

É possível sentir a urgência na acção de Yvan, a fidelidade destes clientes parece ser algo de volátil, especialmente num momento em que a banca comercial começa a invadir os terrenos dos bancos privados, todos a viverem num mundo de especulação e dinheiro rápido. O nome de Keys, aquele a quem todos os clientes pareciam ser tão fiéis, vai surgindo nas conversas amiúde, por entre outros murmúrios quanto a um momento estranho, um perigo que paira no ar, mas que todos se recusam a concretizar. Se Keys parece ser a chave – trocadilho intencional – para um mistério mais pressentido do que real, esse mistério é algo que se vai desintegrando. O final de Azor é tão lacónico, tão pragmático, tão despido de mistério quanto uma lista de supermercado.
A diferença está na forma como se fala de dinheiro, sem subterfúgios, sem alusões vagas (há uma rudeza que se foi acentuando e que era já notória no discurso de Farrell). O dinheiro é real, a linguagem é objectiva. E é justamente neste momento que temos uma revelação final quanto ao (verdadeiro?) carácter de Yvan, algo que resultava já de uma curiosa observação feita anteriormente por Farrell, que fica surpreendido quando Yvan revela as suas origens. Na verdade, apesar de ser também um membro da elite, pertencendo a uma terceira geração de banqueiros, Yvan nunca pareceu propriamente à vontade na sua relação com os clientes com “berço”. Muito do seu trabalho carecia das orientações da mulher, ela sim plenamente preparada para se mover neste mundo, desde a sugestão do tipo de roupa mais apropriado (um refinamento absoluto no modo de “atacar” uma reunião que se adivinhava difícil) até ao tom a adoptar na abordagem aos clientes (a Yvan parece faltar o golpe de asa necessário ao sucesso num meio tão impiedoso quanto o da banca).
Tudo se altera neste encontro final, num ambiente feito de selva, calor, armas, mas em que Yvan parece sentir-se à vontade, revelando o seu rosto um enorme sorriso no final das negociações, algo que nunca vimos em qualquer dos anteriores encontros, que pareciam tão-só ir alimentando um rol de frustrações. Tudo se passa com uma simplicidade desarmante, a mesma simplicidade que lhe havia sido recomendada em preparação para o encontro no Círculo de Armas, o exclusivo clube onde conhece o Monsenhor Tatoski. Apetece concluir que, afinal, é neste meio que ele se movimenta com à-vontade, não junto dos senhores de smoking que bebericam champagne. Por outro lado, este parece ser o sorriso da emancipação (também uma conquista de autonomia face à sua mentora), a conclusão do seu ritual iniciático, finalmente preparado para jogar na liga dos grandes. O banqueiro que se afigurava, perante todos, como o homem honesto, de bom carácter, é justamente aquele que se encontra mais preparado para jogar o jogo mais sujo, aquele de que até Keys havia fugido (assim se especula, pelo menos). Se, tal como referíamos mais acima, o francês foi outrora a língua franca de uma certa sociedade, a língua franca do século XXI tem um outro nome e é uma língua de silêncio. Chama-se “dinheiro”.