Un coup de dés jamais n’abolira le hasard.
Stéphane Mallarmé
Vigésimo primeiro filme de Éric Rohmer (então com setenta e cinco anos, mas sempre atento aos humores e aos amores das gerações mais jovens) e terceiro “episódio” da série Contes des quatre saisons (Contos das quatro estações, 1990-1998), Conte d’été (Conto de Verão, 1996) marca um regresso ao terreno e à atmosfera estivais a que Rohmer nos foi habituando e deliciando ao longo das décadas, desde La Collectionneuse (A Colecionadora, 1967), a Pauline à la plage (Pauline na praia, 1983), sem esquecer aquele que é para mim o seu filme mais belo e luminoso, Le Rayon vert (O raio verde, 1986).
Das três obras citadas, é talvez desta última que Conte d’été mais se aproxima: o protagonista do filme, Gaspard (Melvil Poupaud, naquele que é o seu primeiro papel principal, aos vinte anos, depois de participar em várias produções francesas de Raúl Ruiz) é uma versão masculina de Delphine (Marie Rivière) em Le Rayon vert, heroína introvertida e indecisa que deposita todas as suas esperanças na observação do fenómeno ótico outrora descrito por Jules Verne e que, segundo este autor, guiará quem o testemunha na busca pelo amor verdadeiro. Já o herói de Conte d’été, estudante de matemática e guitarrista nas horas vagas, coloca-se inteiramente nas mãos do destino ao decidir ir passar as férias de verão na costa da Bretanha, onde supostamente se encontra a rapariga por quem está apaixonado e que considera como sua namorada, mas de quem não tem notícias há várias semanas. Enquanto espera a bela Léna (Aurélia Nolin), Gaspard cruza-se com duas outras jovens que vêm complicar a equação dos seus sentimentos: a primeira a intrometer-se na sua solidão auto-infligida é a garçonnette Margot (Amanda Langlet, a Pauline de Pauline à la plage), estudante de etnologia e empregada de mesa, que o desafia para passeios pelas redondezas e para novas conquistas românticas, acabando por se tornar sua amiga e confidente; mais tarde, é junto da veraneante arrebatadora Solène (Gwenaëlle Simon) que Gaspard encontra uma musa para as suas composições musicais e, eventualmente, se perde em vãos jogos de sedução.
A estrutura narrativa de Conte d’été acompanha o quotidiano estival de Gaspard, de 17 de julho a 6 de agosto, como nos vão indicando os cartões de intertítulos. O passar do tempo é indolentemente pautado por banhos de sol e de mar, excursões às localidades vizinhas e encontros fortuitos pouco conclusivos, embalados de quando em vez por breves fragmentos da melodia original que Gaspard toca na sua guitarra. A primeira sequência do filme, que mostra a chegada do herói à estância balnear de Dinard e à casa de férias onde vai passar as semanas seguintes, oferece uma amostra dessa temporalidade difusa característica da estação do ano, que Tiago Ribeiro tão bem descreveu, não sem um toque de humor, na sua crónica “Verão é quando o Rohmer quiser”. Este início é tão mais surpreendente na medida em que abdica completamente do diálogo, introduzindo o protagonista num estado de mutismo no mínimo desconcertante para uma personagem rohmeriana. Mas ausência de diálogos não é sinónimo de silêncio, e a sequência, dilatada ao longo de sete minutos e quarenta segundos, acaba por assumir contornos de um verdadeiro mergulho sensorial, evocando ligeiramente a cacofonia ambiente de Jacques Tati nas Vacances de monsieur Hulot (As Férias do Sr. Hulot, 1953).
Trata-se de um dos raros filmes de Rohmer em que a intriga é centrada numa figura masculina [as outras exceções são Jean-Louis Trintignant em Ma nuit chez Maud (A minha noite em casa de Maud, 1969) e Jean-Claude Brialy em Le Genou de Claire (O Joelho de Claire, 1970)]. Alguns considerarão a personagem desempenhada por Melvil Poupaud como uma espécie de alter-ego rejuvenescido do próprio realizador, tanto nos gestos e atitudes físicas – uma certa magreza desengonçada, um charme de homem banal que se sonha artista/auteur, a típica pose de braços cruzados como um escudo protegendo o olhar observador –, como no modo como ambos encaram o acaso: a fórmula “Tudo é fortuito, exceto o acaso” que Rohmer aplica a muitos dos seus filmes repercute-se numa das declarações mais reveladoras da personalidade algo opaca do protagonista Gaspard em Conte d’été: “Não sou alguém que procura conquistar a todo o custo ou provocar o acaso. Por outro lado, gosto que seja o acaso a provocar-me”.
Ora, provocar o acaso é também prová-lo, sentir o seu gosto, testar a temperatura da água e deixar-se ir ao sabor da maré…
Para que o acaso possa provocar Rohmer, o cineasta tira partido da naturalidade com que o cinema lhe permite observar o real (graças ao trabalho com atores amadores, à opção pelo som direto, à fidelidade quase documental à geografia dos espaços em que decorre a ação, elementos nos quais se funda o seu estilo de mise en scène invisível e sóbria) e da artificialidade inerente a toda a criação artística (patente na dimensão literária dos filmes, meticulosamente escritos e preparados com os atores, no cultivar de diálogos prolixos e rebuscados e, em última instância, no recurso a mecanismos deus ex machina para resolver as intrigas narrativas). Por detrás desta confiança cega no acaso como força organizadora de um universo múltiplo e imprevisível, esconde-se a verdadeira faceta de demiurgo do cineasta: no fundo, Rohmer concebe o seu trabalho de escrita e de realização como uma forma de pôr ordem na desordem moral e sentimental das personagens, dando-lhes uma grande liberdade para discorrerem sobre os dilemas que os inquietam, sem no entanto se privar de intervir para precipitar a sua resolução, ou para complicar ainda mais as situações em que se encontram.
Para que o acaso possa provocar Gaspard, basta-lhe estar presente, no sítio certo à hora certa, esperar que as coisas aconteçam ou se resolvam por si mesmas e, de vez em quando, tentar a sua sorte com um gesto mais arrojado, desde que este não o comprometa demasiado. É assim que a melodia que ouvimos Gaspard compor no início do filme (composta pelo próprio Rohmer) se faz compasso das suas indecisões românticas, sem que nunca seja claro (para o espectador ou para o próprio herói) qual das raparigas é a sua musa: é a pensar em Léna que ele começa a escrever, a sua principal fonte de inspiração são as cantigas de marinheiros e o testemunho do pescador que encontra graças às pesquisas etnológicas de Margot (numa sequência documental incrustada no filme), mas é a Solène que ele oferece a canção, depois de a ouvir cantar pela primeira vez a letra, que descobrimos escrita na primeira pessoa e no feminino:
“Je suis une fille de corsaire, on m’appelle la Flibustière, j’aime le vent j’aime la houle, je fends la mer comme la foule, la foule, la foule…”
Mais tarde, a ilha de Ouessant, apesar de nunca alcançada, torna-se o centro nevrálgico da intriga romântica: em momentos distintos das férias, Gaspard prometeu a cada uma das raparigas que a visitariam juntos, mas é incapaz de escolher qual delas o acompanhará na viagem. A decisão é tanto mais difícil quanto Margot, Solène e Léna correspondem a três tipos de mulher distintos, que a realização de Rohmer define com uma precisão quase estruturalista, tornando evidente aos olhos do espectador aquilo que Gaspard leva demasiado tempo a perceber: nenhuma delas aceitará ser uma mera substituta das outras. Se Margot é a que mantém os pés mais assentes na terra, é na medida em que está em sintonia com os elementos da natureza; já Solène tem alma de sedutora e de sereia – um marinheiro em cada porto –, apesar de dizer que “por princípio” nunca dorme com um homem na primeira noite; por fim, Léna é a visão da mulher ideal, mas inatingível, que vai e vêm com as marés.
É nestes momentos que a realização de Rohmer se extrai à sua condição de invisibilidade e ousa intervir para tornar sensível (…) os movimentos do desejo não consumado ou as promessas silenciadas que emanam dos corpos.
No entanto, a questão, para Gaspard, não é tanto o facto de saber que ao escolher uma delas terá de abdicar das outras, mas sobretudo o receio de acabar ele próprio por não ser o escolhido (e esta nuance faz toda a diferença: Gaspard não é um Dom Juan, é simplesmente um jovem inseguro que procura a validação do outro para colmatar a sua falta de amor próprio). Mas talvez não chegue sequer a precisar de decidir… No fim de contas, será a sua paixão pela música – a única de que não duvida – que lhe permitirá esquivar-se à escolha.
E enquanto espera que o acaso intervenha, Gaspard deleita-se na auto-análise das suas indecisões. À semelhança da restante obra rohmeriana, os diálogos verbosos prevalecem sobre a economia da ação: na maioria dos casos, as personagens não cessam de divagar e de se desviarem do caminho traçado, sendo por via da palavra que são chamadas à razão ou que justificam os seus atos mais dúbios do ponto de vista moral; nesse sentido, o verbo é utilizado como uma arma, bem polida e manejada, no confronto com o outro e, sobretudo, consigo mesmos. Ainda assim, Rohmer sabe que há certas coisas que não podem ser definidas ou apreendidas através da palavra; sabe também que o discurso tem sempre um tempo de atraso em relação à realidade que pretende expressar. A relação ambígua, mas sempre ligeira, entre Margot e Gaspard é sintomática deste desfasamento entre o que é dito e o que é vivido: demasiado ocupados a discutir sobre os defeitos das suas personalidades, tentando formular de maneira eloquente os sentimentos instáveis que julgam nutrir por outrem, os dois jovens alimentam uma ilusão quanto à sua relação platónica e são incapazes de reconhecer a verdadeira natureza do desejo que cresce entre eles.
Conte d’été é talvez um dos filmes de Rohmer cuja estética mais se afasta da pintura (…), indo claramente ao encontro de uma iconografia mais popular: o postal de férias.
É nestes momentos que a realização de Rohmer se extrai à sua condição de invisibilidade e ousa intervir para tornar sensível, no interior de um plano ou no itinerário de dois olhares que se cruzam, os movimentos do desejo não consumado ou as promessas silenciadas que emanam dos corpos. E se o olhar do realizador recai maioritariamente sobre os corpos desnudados das jovens raparigas que se oferecem ao sol de verão e à contemplação de quem passa – depois do joelho de Claire e das costas de Chloé em L’Amour l’après-midi (O Amor às três da tarde, 1972), é a vez da perna de Margot em mini-saia –, penso que uma leitura atualizada da mise en scène rohmeriana convida a encarar esses corpos femininos menos como objetos-fétiche do que como espelhos do male gaze que sobre eles pesa.
Por fim, gostaria de acrescentar algumas impressões sobre a maneira como Rohmer aborda os espaços naturais em que decorre a ação, mais precisamente sobre o modo como a paisagem costeira da Bretanha se repercute sobre a estética do filme. Por um lado, tratando-se de um dos “Contos das quatro estações”, Rohmer mostra-se particularmente atento à natureza, aos seus ciclos e aos seus caprichos (ainda para mais tendo em conta o clima típico da região que, mesmo no verão, raramente cede às nuvens e aos ventos, cuja presença se faz sentir tanto na imagem como no som). Por outro lado, a “planitude” da Bretanha influencia a composição dos planos, impondo uma certa horizontalidade (um terço de céu por dois terços de terra e mar), que os corpos, quais marcos erguidos sobre a paisagem, vêm romper, sendo os seus rostos filmados acima da linha do horizonte.
Este respeito pela topografia leva por vezes o cineasta a relegar as personagens a um plano secundário, por exemplo, integrando-os à paisagem como um qualquer turista de passagem no momento da rodagem. Para além disso, Conte d’été é talvez um dos filmes de Rohmer cuja estética mais se afasta da pintura [referência assumida na série Comédies et Proverbes (Comédias e provérbios, 1981-1987)], indo claramente ao encontro de uma iconografia mais popular: o postal de férias. Não só são frequentes os planos que mostram vários locais historicamente turísticos (a praia de L’Écluse em Dinard, a vista sobre o forte de Saint-Malo, as villas à beira-mar em Saint-Lunaire), paisagens reproduzidas ad nauseam nas coleções de postais desde o inicio do século XX, como a própria paleta de cores mais deslavadas e o grão assumido da fotografia reiteram esse elo aos clichés de um tempo volvido. Não se trata aqui de rebaixar o cinema, afastando-o da pintura mais “nobre” para o aproximar do seu “parente pobre” que seria o postal turístico, nem de criticar a maneira como as imagens são “consumidas” pela cultura de massa na “era da sua reprodutibilidade técnica”, mas de reconhecer, seguindo os passos de Serge Daney para quem o postal constitui a “imagem absoluta”, que mesmo a imagem mais banal e mais “batida” pode conter os seus segredos e os seus laivos de poesia… e de acaso.
Conto de verão e os outros filmes da série Contos das quatro estações estão em exibição, em cópias digitais restauradas, entre 31 de março e 28 de abril, no cinema Media Nimas em Lisboa e no Teatro do Campo Alegre no Porto.