“No filme possível sobre a morte de Kennedy faltam todos os outros ângulos visuais: o do próprio Kennedy, o de Jacqueline, o do assassino que disparava, o dos cúmplices, o dos outros presentes melhor colocados, o dos polícias da escolta, etc (…) O tempo do plano-sequência, entendido como elemento esquemático e primordial do cinema, ou seja: como um plano subjectivo infinito – é assim o presente. A filmagem em directo para a televisão é uma reprodução paradigmática de alguma coisa que está a acontecer”.
Pier Paolo Pasolini (*)
No Verão anterior ao atendado de Dallas, dois anos após a eleição e com a guerra do Vietname presente no quotidiano televisivo dos americanos, John Kennedy discursou apontando à paz, não uma “pax americana”, imposta pela força das armas, antes um espírito de reexame da relação com o mundo e com o inimigo para lá da cortina de ferro, afinal habitavam “todos o mesmo planeta”, a todos preocupava o “futuro dos filhos” e rematava: “todos somos mortais”. Este discurso fecha o pré-genérico de JFK (1991), onde se estabelece o contexto, no primeiro puzzle de imagens: Eisenhower, antecessor de Kennedy na Casa Branca, a alertar para o incremento de poder das instituições e empresas ligadas ao armamento; uma vitória tangencial de Kennedy sobre Nixon, o anterior vice-presidente; os primeiros discursos que já indiciavam a herança retórica que JFK deixaria na luta pelas liberdades dentro e fora da América; a guerra de bastidores da CIA contra o regime de Fidel Castro em Cuba, que desafiava os interesses dos EUA na América Latina e que determinou a desastrosa Invasão da Baía dos Porcos em Abril de 1961, acontecimento determinante nesta intriga, que teve uma espécie de sequela um ano depois, no simulacro do cerco a Cuba determinado pelo presidente, na sequência da alegada presença de mísseis russos a 150 quilómetros da costa norte-americana. Kennedy terá negociado com a cúpula russa, o que terá definido o fim do conflito, da investida americana e do regresso a casa dos navios russos. Como se fosse um artista de Hollywood, arrastado para a lista negra macarthista, Kennedy ficou com a fama de ser brando com os comunistas.
Depois deste prólogo, as primeiras imagens de JFK são do filme Zapruder, a pérola do “Cinema Directo”, que terá um papel determinante, na estética, na narrativa, na ideologia, ao longo das três horas do filme de Oliver Stone. Abraham Zapruder terá adquirido a câmara de 8mm nos primeiros dias daquele mês de Novembro, com a qual rodou um dos mais importantes planos-sequência do século XX: cerca de 26 segundos, um único plano, que se inicia com a entrada da caravana presidencial na Dealey Plaza e termina com a imagem do Lincoln do presidente a desaparecer sob um túnel, sendo que pelo meio testemunha os disparos sobre o corpo de Kennedy. De uma eficácia notável, então, como se fosse produzido por uma máquina mas, paradoxalmente, o registo acidental de um dos acontecimentos mais importantes da História norte-americana. O acto inaugural do “Cinema Directo” ocorrera três anos antes em Primary (1960), que registara as eleições primárias presidências do partido Democrata, no estado de Wisconsin, entre os senadores Hubert Humphrey e John Kennedy, que começara aqui um percurso que o levaria a extravasar o conclave dos políticos, para se tornar numa das principais figuras da paisagem dos media, do cinema e da publicidade. Com realização de Robert Drew, mas com créditos para Richard Leacock, Terrence McCartney, Albert Maysles, D.A. Pennebaker: os directores de fotografia e de som de Primary colocaram o espectador “dentro” dos acontecimentos, através de câmaras de 16mm, de equipamento de som e imagem leve e portátil, em sincronia com a realização do evento. O filme Zapruder conseguiu, então, a concretização dessa utopia, de registar algo verdadeiramente importante, sem prenúncio, sem o ter planeado.
Se o fantasma de Kennedy intensifica uma tragédia de dimensão shakespeariana, em que o sangue lava o sangue, as palavras e a retórica de Costner, que decreta a morte secreta do cerne do sonho americano, é como um pedaço de um discurso de Jimmy Stewart numa das fábulas idealistas de Frank Capra.
Estas primeiras imagens de JFK encaixam entre os planos do filme Zapruder outras imagens em movimento, de lugares em volta da Dealey Plaza, imagens novas como se fossem imagens de arquivo, que procuram evidenciar a hostilidade que esperava Kennedy em Dallas, uma cidade bem representativa da contestação sulista perante os movimentos integracionistas da população afro-americana, impulsionados pela administração presidencial. Se estas imagens evidenciam o contexto, também servem de premissa estética, do elogio da montagem, algo que o filme Zapruder dispensara. O que esta primeira montagem parece enunciar é que não existe fractura entre ficção e a realidade; na América, os arquivos e as narrativas coabitam, e o espectador ao longo do filme tenderá a abdicar da classificação das imagens em movimento, pois Oliver Stone tudo encenará, inclusivamente situações de que dispunha de imagens de arquivo, de directos para a televisão.
O filme Zapruder é, então, uma das personagens de JFK, algo de muito precioso, como uma matéria a que todos querem deitar a mão. É sob o rótulo da fabricação, que várias testemunhas se referem à Comissão Warren, o colectivo responsável pela investigação do assassinato de Kennedy. A comissão liderada pelo magistrado Earl Warren capturou o filme Zapruder e remontou-o, eliminou alguns planos com a justificação de que seriam demasiado violentos, mas o propósito terá sido o de fundamentar a impossibilidade de conspiração, para atribuir a responsabilidade ao lobo solitário, Lee Harvey Oswald, e para fundamentar, neste contexto, a teoria da bala mágica, um dos highlights dos densos 26 volumes do relatório. Atendendo a que filme de Abraham Zapruder permitia medir o hiato temporal entre o primeiro e o terceiro disparo (o fatal), sendo que uma das balas atingiu uma pessoa que estava bastante longe do Lincoln do presidente, e a última atingiu a cabeça de Kennedy, restava uma bala, a célebre bala mágica, que segundo a Comissão Warren provocou sete ferimentos em Kennedy e no governador Connally do Texas, incluindo ricochetes e ziguezagues vários. Um projéctil trapezista, trabalho de guionistas como o designou Walter Matthau, um senador em conversa com o protagonista de JFK, Jim Garrison, o procurador público de New Orleans, interpretado por Kevin Costner. Numa visita a Washington, em que Costner procura o colo da estátua de Lincoln e a sombra do obelisco de George Washington, referências da edificação da América, na antecâmara para aceder à conspiração do derrube de um bom rei, o espião Donald Sutherland dirá – the Warren Commission was fiction –, sendo que muita dessa ficção se fez pela da montagem do filme Zapruder.
Se uma imagem em que Abraham Zapruder surge numa plataforma elevada relativamente à rua, com a sua câmara de 8mm, confirma que JFK o pretende homenagear, o filme Zapruder serve para Stone como caução para que possa seguir o conceito de Pasolini, para procurar todos os planos em falta, para aceder à verdade. Mas este propósito idealista é problemático, pois pendura-se na superação de barreiras éticas de combinação de imagens de proveniências distintas, sem as delimitar nem as provir de qualquer sinalização. JFK incorre no risco de desvalorizar as imagens, de as desbaratar, devido ao ímpeto com que a montagem associa flashbacks, imagens cinzentas e imagens coloridas e bem iluminadas, como nas cenas em tribunal atravessadas por uma luz límpida, a procurar significar a réstia de intenção de devolver a verdade ao povo americano. Ao longo do filme, enquanto vemos o ensaio destas possibilidades de ficção e de combinação de planos, pensamos no território de David Lynch, nas suas criações poéticas e surrealistas, pois também aqui o adensar de elementos, a montagem sôfrega de um zapping infernal, levar-nos-á mais próximo de uma estrada perdida numa circular de Hollywood do que à tão ambicionada verdade.
Kevin Costner é o porta-voz de Stone. Durante a investigação afirma a necessidade de resgatar o filme Zapruder do cofre da Time Life, em Nova Iorque e depois, nas audiências do julgamento, Costner voltar-se-á para os elementos do júri e para a restante plateia: Vamos especular? O espectador percepciona Costner e os seus auxiliares como um grupo de argumentistas de uma série de televisão, numa circulação de ideias, o “e se” do guionismo e da dramaturgia. O protagonista usará o filme Zapruder em oposição à Comissão Warren, para comprovar que o atentado de Dallas foi afinal uma conspiração, que o mais plausível, numa aproximação à concepção de Pasolini, é que o Lincoln de Kennedy tenha caído num fogo cruzado em forma triangular, de campos e contra-campos de caçadores pacientes na cota da Dealey Plaza e de planos nas costas de snipers nas janelas dos edifícios circundantes. O filme Zapruder projectado e repetido na sala de audiência é como um vídeo do alinhamento da rede social TikTok, onde as imagens em movimento se reiteram até à saturação, se auto-devoram na adição do receptor, incapaz de suspender a torrente de imagens, que aqui cheiram a morte.
A ocorrência dos disparos sobre a caravana presidencial chega pela paisagem dos media. Costner e o seu séquito dirigem-se para um bar da baixa de Nova Orleães, onde receberão a notícia da morte de Kennedy nas imagens cinzentas, e em directo, de um televisor. As horas seguintes são passadas em frente à televisão: assiste-se à captura do suposto assassino, de Lee Harvey Oswald. Mas as imagens não são de arquivo, são de Stone, e a televisão que o espectador entende como uma emissão da realidade, revela-se afinal uma manipulação, uma intermediação que pode falsear ou encriptar o conteúdo da mensagem, um contexto de hiper-realidade, de assunção de poder dos media. Há uma notável semelhança entre Oswald e o actor Gary Oldman, em especial nas imagens a preto e branco, o que intensifica a sucessão de simulacros. Um dos personagens de JFK diz que Oswald sempre negou a autenticidade da fotografia em que ele posava com a carabina em frente à garagem: segundo o retratado, apenas o rosto era dele, o restante era uma montagem. Chamando a depor, Jean Braudillard cita o Eclesiastes: o simulacro não é o que oculta a verdade – é a verdade que oculta que não existe; o simulacro é verdadeiro. A simulação do acidente de James Dean em Crash (1995) de Cronenberg emparelha com as ficções de JFK e aquele meio-dia de Dallas de 22 de Novembro de 1963 surge como uma ressonância do 13 de Setembro de 1955 de The James Dean Story (1957) de Robert Altman, dois imortais no olimpo das paisagens ballardianas.
Dois dias depois do atentado de Dallas, Oswald, rodeado por dezenas de polícias e jornalistas, enquanto se preparava a sua transferência para a prisão, é assassinado em espaço público – e em directo na televisão (mais um acontecimento inaugurado pela paisagem dos media), por Jack Ruby, notado pelas ligações à máfia e a clubes nocturnos associados à prostituição. Mais uma vez, Stone prefere imagens novas do evento e mostrar-nos-á o percurso de Ruby, desde a entrada no quartel policial de Dallas. Apesar da clareza na identidade do assassino, como as suas motivações nunca foram aclaradas (viria a morrer na prisão quatro anos depois), estas imagens corroboram no seu conteúdo ficcional, nas possibilidades da conspiração, em que todos cometem acções de um plano gerado de forma administrativa (como a liquidação final dos judeus pela burocracia nazi), sem que ninguém conheça a big picture, o resultado final, mas em que todos são responsáveis. As cenas seguintes cruzam imagens de arquivo – as longas procissões do funeral de Kennedy e as reuniões do novo presidente Johnson com o embaixador do Vietname, com a mensagem de que é preciso continuar a guerra como se fosse parte de um alinhamento de um espectáculo em Las Vegas -, e imagens que ficcionam o inicio da investigação dos acontecimentos da Dealey Plaza, com interrogatórios e detenções, percorridas de histórias sem credibilidade e verosimilhança, uma entrada num labirinto que impossibilitará o acesso à verdade, como se a resolução fosse demasiado monstruosa: os americanos não a aguentariam, como vociferou o Nixon de Secret Honor (1984) de Altman. Nestas combinações de imagens há uma distribuição ostensiva de ecrãs, a insinuar a presença de narrativas, de ficções filtradas pelo médium, por uma mediação fraudulenta que coopera com a impossibilidade de solucionar o enigma, uma epopeia destinada apenas a essa paisagem de ecrãs.
A concepção de paisagem ditada por Ballard, conforme o notado em Empire of the Sun (Império do Sol, 1987) na diluição entre paisagem exterior e interior, em que os ecrãs são já a projecção dos nossos sonhos, surge num pesadelo de Costner, que acorda com a imagem de Jackie no Lincoln, um grito num borrão de uma representação que parece saída das gaiolas demenciais de Francis Bacon, como se aquela tragédia fosse uma fabricação do inconsciente, proposta pelo movimento surrealista. A morte de Robert, irmão de JFK, assassinado em Los Angeles na campanha para as presidenciais seguintes (em Junho de 1968), é mais um directo para a televisão, uma réplica do evento de Dallas. Algumas horas antes, Costner anunciara ao seu séquito que Robert nunca chegaria Presidente. Com a televisão a receber o acontecimento, Costner percepciona a emissão num comportamento contíguo e aproxima-se do ecrã, como se aquela desgraça fosse mais uma perturbação do sono. Esta solidão de Costner, defronte da máquina televisão, também assinala a postura passiva do espectador perante o aparelho, algo de definidor naquele médium, que nos anos 60 já era parte do mobiliário dos lares da América, que retinha muitas vezes as famílias entre um dia de trabalho e as horas de sono necessárias a retomar o quotidiano.
O guião do ano anterior ao acontecimento da Dealey Plaza assinala um conjunto de acções de Oswald: prática de tiro ao alvo, declarações de ódio a Kennedy, a compra de uma carabina numa loja do Texas, distribuição de propaganda pró Castro, participação em actividades obscuras da CIA, problemas conjugais que o levaram a passar os últimos meses a viver sozinho numa hospedaria. É como se Oswald estivesse a trabalhar um personagem credível, antes de subir ao palco de Dallas para interpretar um dos protagonistas de uma soap opera a ser difundida nas televisões de todos os norte-americanos: um atirador solitário que, do sexto piso do edifício de Depósito de Livros Escolares, acertou à terceira tentativa no crânio de John Kennedy. Nesse período, também parecem existir vários Oswalds, doppelgängers que replicam as suas acções no vasto território do Texas e do Luisiana, como uma sucessão de simulacros, de ensaios de um drama. Oswald acabaria detido, depois de se refugiar numa sala de cinema da cidade. E se espantou a rapidez com que a polícia o descobriu (como se tivessem acesso prévio ao guião), também vemos, neste pequeno capitulo, a realidade a imitar mais uma vez a ficção, um personagem sob influência da tradição de Hollywood: quantos outlaws dos noir dos anos quarenta vimos a abrigarem-se da cidade e da lei nas sombras da sala de cinema? A interpretação da vida de Oswald em oposição a Kennedy, estrela de Hollywood: JFK morreria jovem e ascenderia à galeria dos mitos, emparelhado a Dean e a Monroe; já Oswald saiu do anonimato durante 48 horas, até ao encontro fatal com Jack Ruby. A América nunca se furta a reclamar os seus mitos, todos participam, incluindo a máquina burocrática: em 1970, aquando da remodelação do Parkland Hospital, onde se declarou a morte de John Kennedy, o FBI desmontou e removeu toda a sala onde morreu o presidente e onde se realizou a autópsia, incluindo a mesa de operações e demais mobiliário, instrumentos, portas e ombreiras, tijolos das paredes e ladrilhos do pavimento.
No julgamento de Clay Shaw (Tommy Lee Jones), o promotor público Costner diz que os assassinatos (dos Kennedy e de Martin Luther King) foram executados por indivíduos que esconderam a culpa na loucura do acto: os americanos tornaram-se, assim, um bando de Hamlets, órfãos de um pai derrubado, com o trono ainda nas mãos dos assassinos (o livro On the Trail of the Assassins de Jim Garrison foi uma das influências do guião de JFK). Se o fantasma de Kennedy intensifica uma tragédia de dimensão shakespeariana, em que o sangue lava o sangue, as palavras e a retórica de Costner, que decreta a morte secreta do cerne do sonho americano, é como um pedaço de um discurso de Jimmy Stewart numa das fábulas idealistas de Frank Capra, agora replicado em Mr. Garrison, um homem do sul disposto a enfrentar Washington e o sistema. Costner termina a argumentação, apelando para que os americanos não esqueçam o golpe de estado e a liquidação de um bom rei, até que, por um instante, desvia o olhar na direcção da câmara, talvez uma derradeira tentativa de envolver e responsabilizar o espectador, mas também uma subtil aproximação a uma lógica televisiva do directo e do noticiário, a lembrar-nos que a televisão é um sucedâneo do cinema na linhagem da paisagem dos media. Stone também faz de JFK um encontro com o passado de Hollywood e os seus intérpretes, com a presença da dupla Jack Lemmon e Walther Mathau (dez filmes em conjunto) ou do secundário Ed Asner, mas também da Nova Hollywood representada por Sissy Spacek ou Donald Sutherland, actores de Terrence Malick, Brian De Palma, Alan J. Pakula ou Robert Altman.
No entanto, e apesar da riqueza extensa do elenco, há um dos secundários que se destaca: David Ferrie, interpretado por Joe Pesci. Envolvido pela investigação de Garrison na conspiração de Dallas, Ferrie era um personagem excêntrico, que associava uma aparência marcada por uma peruca ruiva e umas sobrancelhas fartas, a um comportamento bizarro e colérico. Joe Pesci é um dos actores mais subvalorizados do cinema americano dos últimos quarenta anos, empurrado para secundários ou obras menores, que só a filmografia de Martin Scorsese valorizou, com a participação em filmes fundamentais, sempre ao lado de Robert De Niro, espécie de homem de mão deste, mas que ficou, não raras vezes, como a impressão maís vívida da memória do espectador, de que são exemplos: Raging Bull (O Touro Enraivecido, 1980), Goodfellas (Tudo Bons Rapazes, 1990), Casino (1995) e The Irishman (O Irlandês, 2019). A escolha intencional de Stone capturou a fúria de Pesci, dos personagens italo-americanos construídos para Scorsese, naquele estilo físico e nervoso do actor, mas também replicou uma ideia de olhar histórico sobre a América do século XX do ponto de vista das franjas, no caso de Scorsese a violência e os códigos da máfia, uma ambição também seguida, então, por Stone, mas com epicentro nos anos sessenta, na órbita da guerra do Vietname, como atesta a trilogia que Stone dedicou ao conflito, mas também no peso da cultura popular com os The Doors (1991) e o inevitável Nixon (1995). No interrogatório a Garrison, Ferri será o único envolvido a declarar remorso do envolvimento na conspiração, e enquanto se move pelo quarto de um motel num frémito de cigarros meios fumados, ligará descrições de festas alimentadas a cocaína a um grande desencanto do passado: a sua única ambição foi servir a Deus, mas foi expulso do mosteiro, impedido de seguir a sua fé, devido a um pequeno detalhe, que sabemos ser a sua homossexualidade. Numa penada, Joe Pesci escapa ao boneco para o qual o personagem amalucado cairia certamente noutras mãos, expõe a natureza humana e as suas contradições e correlaciona a fé com uma História de violência.
A ida de Costner à televisão, além de evidenciar a ideia de uma sociedade espectáculo – com gargalhadas e aplausos encenados enquanto o procurador tentar discutir o assassinato de um presidente -, integra um plano que coloca o televisor ladeado por um ícone indefinido e uma bíblia, elemento simbólico que prevalece fundamental na concepção da América e da sua administração, sendo que aqui Stone quer sinalizar que os ecrãs problematizam essa relação: a violência e a religião como os dois grandes suportes da comunidade desde a sua expansão para Oeste, que talvez encontrem um terceiro vértice na ficção. As conspirações circulam por flashbacks onde se associam os personagens chave da intriga a práticas sexuais promíscuas e a bares obscuros, onde se elege uma espécie de irmandade corrupta. Num desses lugares, com o nome elucidativo de Masquerade Bar, alguém diz que “Kennedy anda a lamber o cú ao Khrushchev”, a fazer acordos com os russos, deveria acontecer “um acto divino” que o liquidasse. Pouco depois será Pesci a verbalizar em fúria: “eu mato-o, mesmo na Casa Branca, com uma facada no coração”. Mas o que o olhar do espectador valoriza é a forma anónima e espontânea como a ideia de acto divino é projectada: um molde saído do pote das bruxas que esperavam Macbeth, que resultará no derrube de um rei bondoso e justo. Este aparente paradoxo, o de um acto divino que se congemina num submundo sórdido, está também presente através do personagem de Kevin Bacon, que amplifica a dimensão moral, pois é um prostituto, homossexual e desafiador, que se dispõe a aclarar a conspiração, a apontar um caminho para a justiça. E, então, recordamos a primeira sequência de JFK: Rose Cheramie é lançada de um automóvel em movimento num ermo; numa cama de hospital, a prostituta fará de oráculo: detenham-nos, esta sexta-feira vão matar o presidente em Dallas.
(*) citado por Manuela Penafria no artigo “O Plano-sequência é a utopia. O paradigma do filme-Zapruder” (Universidade da Beira Interior, 2003)