Se Hou Hsiao-hsien e Edward Yang permanecem os nomes do Novo Cinema Taiwanês mais célebres internacionalmente, os trabalhos de outros colegas da sua “geração” também merecem atenção. Depois de termos escrito sobre um filme de Wang Tung, revisitamos agora Chang Yi. Autor daquele que é considerado um raríssimo sucesso de bilheteira do Cinema Novo, Chang abandonaria o cinema logo nos anos 80. Wo zheyang guole yisheng (Kuei-Mei, a Woman, 1985) é porventura o seu filme mais conhecido, o que não diz propriamente muito quando permanece uma obra largamente desconhecida.

Em 1985, Hou Hsiao-hsien realizou Tongnian wangshi (A Time to Live and a Time to Die), um monumento à experiência de uma família de “continentais” (os chineses da China continental que vieram para Taiwan com a relocalização do governo Nacionalista de Chiang Kai-shek no final dos anos 1940 após a derrota na Guerra Civil Chinesa), inspirado na sua própria família. No mesmo ano, Chang Yi realizou um outro épico sobre uma família “continental”, Wo zheyang guole yisheng (literalmente “Eu passei uma vida assim”), que revisita as mudanças económicas e sociais (mas não tanto políticas) da sociedade taiwanesa nas décadas pós-Guerra Civil através da experiência de uma mulher.
O que vemos aqui restitui a dimensão da iniciativa e do sacrifício individuais que sustentaram esse “milagre [económico de Taiwan]”, sobretudo os mais invisíveis: os das mulheres.
Kuei-Mei (Yang Hui-Shan, também conhecida como Loretta Yang), a protagonista, é uma “continental” sozinha em Taiwan que fora separada do namorado pela guerra. Encontramo-la pela primeira vez na cozinha, no piso de baixo, e é o seu percurso de dolorosa “ascensão” que veremos nas cerca de duas horas seguintes.
O filme começa com um encontro entre pessoas que haviam vindo da China durante a Guerra Civil, no qual Kuei-Mei é apresentada ao Sr. Hou (Lee Li-Chun), um outro deslocado com três filhos pequenos, em jeito de matchmaking. De uns breves momentos de serena aproximação, seguem-se os dissabores matrimoniais. O marido de Kuei-Mei revela-se um viciado em jogo que a rouba enquanto Kuei-Mei se vê a braços com o sustento de uma família numerosa, a que se vem juntar os seus dois gémeos. Perante o desemprego e vícios do marido e com credores à porta, Kuei-Mei decide agarrar a oportunidade de emigrar para o Japão para trabalhar como criada de uma família rica e “ser paga em dólares”, sendo a salvação da família toda. Como apenas é autorizada a levar consigo dois dos cinco filhos, a família fica dividida, com as restantes crianças crescendo em Taiwan durante anos de separação. Embora o marido a acompanhe no Japão, é Kuei-Mei a grande lutadora pelo melhoramento das suas condições, é ela que tem de tomar as decisões mais penosas, é ela que não desiste.
O filme detalha as várias fases da sua vida, todas elas com uma componente de tristeza e perseverança: desde a experiência migratória (que inclui também um período de trabalho indocumentado), a separação da família, o sonho de um restaurante próprio, o interregno como operária têxtil quando deixa temporariamente o marido adúltero, a gravidez adolescente da filha, e a sua doença. Através de Kuei-Mei e das vicissitudes da sua família, o espectador acompanha uma experiência que as transcende, e procura retratar toda uma sociedade, acompanhando períodos de mudança rumo ao “milagre económico” taiwanês. O que vemos aqui restitui a dimensão da iniciativa e do sacrifício individuais que sustentaram esse “milagre”, sobretudo os mais invisíveis: os das mulheres. O título em inglês do filme é, aliás, um interessante exercício de contradição: Kuei-Mei é apenas a woman (uma mulher), uma entre tantas outras, mas é também Kuei-Mei, mulher individual com nome e vida próprias.
Kuei-Mei está presente na maioria das cenas do filme e o espectador vê todas as outras personagens em função das suas relações com ela. É através da sua perspectiva que acompanhamos a transformação de Taiwan (algo também reforçado pela narração), mas essa perspectiva não é individualista, embora seja o seu percurso pessoal a que assistimos. Como se o realizador e a autora da obra literária em que se baseia quisessem dar a ver a luta individual de uma mulher cuja preocupação é quase sempre com o colectivo familiar. Kuei-Mei não é anulada nesse colectivo e o filme retrata-a como determinante para ele, mostrando o seu percurso não como uma submissão a diferentes formas de opressão, mas como o seu constante desafio a estas. Há também outras mulheres no filme que, fica patente, sofrem pressões mais ou menos semelhantes, incluindo a sua filha. Dramas individuais que se cruzam no drama colectivo.
Usar mulheres como metáfora para um país não é incomum no cinema e na literatura asiáticos e o próprio Novo Cinema Taiwanês tem a sua quota-parte de memoráveis figuras femininas [incluindo Youma caizi (Ah Fei, 1983), de Wan Jen, com o qual Wo zheyang guole yisheng foi comparado]. Tal como outras obras do Novo Cinema, trata-se de uma obra com uma base literária de autoria feminina, adaptando uma short story da escritora e professora Hsiao Sa. Curiosamente, Chang Yi, casado com Hsiao Sa quando o filme foi produzido, envolveu-se com a actriz principal, Yang Hui-Shan, num affair cujo escândalo levou a que tanto o realizador como a actriz decidissem deixar o cinema após mais dois filmes que se seguiram a este. Yang notabilizou-se, entretanto, por ter revitalizado uma tradição chinesa de trabalhos em vidro, liuli, num estúdio que fundou com Chang, Liuli Gongfang, sendo hoje uma artista muito aclamada. Chang Yi só se reaproximaria do cinema nos anos 2000 fundando uma produtora de animação (com quem Edward Yang estava a planear trabalhar quando faleceu).
Se o fait divers da sua relação amorosa se tornou indissociável do futuro de Chang e Yang, um outro é considerado a razão improvável do sucesso deste filme. Segundo o especialista em cinema taiwanês James Udden, a atenção mediática durante a produção em torno do suposto aumento de peso de Yang – que era uma enorme estrela na altura – para o papel criou grande curiosidade e o público acorreu aos cinemas para ver o resultado. Apesar desta motivação muito pouco artística, o filme acabou por ser também um sucesso de crítica. Nomeado em 1985 para vários Golden Horse Awards, os mais importantes prémios de cinema de Taiwan, venceu nas categorias de melhor filme, realizador, actriz e argumento adaptado. Contudo, não teve reconhecimento internacional à época, o que explicará porque continua relativamente obscuro.
O filme de Chang Yi tem longos planos contemplativos, mas nunca enfadonhos, e cenas nocturnas belíssimas, bem como um interessante uso de música e som. Pese embora a centralidade dos humanos, é também uma obra onde os espaços (de limitação, mas também de possibilidade) têm grande importância. Os vários cenários domésticos e laborais (ou ambos) em que desenrolam as várias cenas do filme são eles mesmos prova das complexas transformações de Taiwan, nas quais se entrecruzam dimensões pessoais, locais e internacionais. Estas últimas são perceptíveis por deixas subtis, incluindo referências a experiências migratórias e de circulação de produtos.
Os períodos ora de crise ora de oportunidade, ora somente de mudança, são sugeridos por pequenos apontamentos que quase podem passar despercebidos: as crescentes oportunidades educativas, a ansiedade em torno de uma eventual ruptura diplomática com os Estados Unidos, a experiência de potencial mas também de discriminação dos imigrantes no Japão, a memória e os traumas da guerra na China (o marido de Kuei-Mei é de Nanjing, a antiga capital republicana onde as forças invasoras japonesas perpetraram um horrível massacre em 1937), as mudanças na moda, penteados e gastronomia, as transformações económicas (a fábrica, os restaurantes, a especulação imobiliária), e as ligações à China continental (por exemplo, décadas depois da sua vinda para Taiwan, Kuei-Mei tem notícias do seu namorado de juventude).
Wo zheyang guole yisheng é um pedaço de história do Cinema Novo Taiwanês que é ele próprio uma reflexão sobre décadas de história de Taiwan e as suas anónimas – mas aqui centrais – obreiras.