Talvez possa começar com uma anedota ilustrativa do grau de oblívio que envolveu os últimos meses de existência de uma das figuras maiores da literatura americana. Num dia de 1939, o produtor Walter Wanger mandou entrar no seu escritório o jovem argumentista Budd Schulberg e perguntou-lhe como é que ele se sentiria perante a possibilidade de ser auxiliado por F. Scott Fitzgerald na escrita do argumento de Winter Carnival (A Vida é uma Festa, 1939), que então o ocupava. A reação de Schulberg foi apenas esta: “Scott Fitzgerald não está morto?” Ao que Wanger respondeu: “Pelo contrário, está no escritório aqui ao lado a ler o seu guião.”
A colaboração que viria a resultar deste contacto, porém, não deu em nada; Fitzgerald foi despedido depois de converter uma viagem de trabalho numa monumental bebedeira. Esperava viver o suficiente para concluir The Last Tycoon, o seu romance baseado nas experiências mal-afortunadas em Hollywood, mas morreu de ataque cardíaco em dezembro de 1940, aos 44 anos, sem concretizar esse desejo – só uma entre as várias frustrações de um escritor que tentou fazer brilhar o seu talento dentro da máquina trituradora designada indústria do cinema americano. Para a história ficou um único crédito de argumento no filme Three Comrades (Três Camaradas, 1938), de Frank Borzage, a partir do romance homónimo de Erich Maria Remarque. E mesmo esse crédito, em vez de corresponder a uma autoria plena, abarca todo um cenário atribulado que mais parece o monólogo amargo de uma criança impertinente.
Recuemos. Quando Fitzgerald chegou a Hollywood em 1937, já tinha por duas vezes saboreado o ambiente dos estúdios. A primeira foi dez anos antes, depois da estreia de uma adaptação de The Great Gatsby, em que o convidaram a escrever um argumento original, com o título “Lipstick”, para a First National; ele fez-se acompanhar pela esposa Zelda e ambos deixaram a sua imagem de marca festiva em Los Angeles, mas o projeto foi cancelado. A segunda aconteceu em 1931, com o escritor numa situação financeira frágil (Zelda estava hospitalizada) de regresso à terra dos sonhos para adaptar um romance de outro autor, a convite da MGM. Desta feita, uma nova proeza com álcool à mistura numa festa em casa do dono dos estúdios, Irving Thalberg, valeu-lhe a demissão.
À terceira teria de ser de vez. Um amigo realizador conseguiu convencer a MGM a celebrar outro contrato, e Fitzgerald, caído no esquecimento e endividado, agarrou-se às grandes expectativas desta renovada oportunidade dentro de um meio que lhe seria virtualmente próximo. Chegou-lhe então, da parte do produtor Joseph L. Mankiewicz, a incumbência de escrever o argumento de Three Comrades, a história de três ex-soldados alemães (Robert Taylor, Franchot Tone, Robert Young) que, depois da Primeira Guerra Mundial, fortalecem os laços de amizade sob o signo de uma mulher tão trágica quanto doce (Margaret Sullavan) – ela casa com um deles, mas a doença que determina a imponderabilidade da sua presença fotogénica, entre o céu e a terra, levará a melhor.
Fitzgerald estava tão escandalizado com a subjugação do seu trabalho no processo de “diálogo” criativo, que é possível ouvir a crepitação da sua raiva numa carta (…)
Assim de um modo geral, segundo Matthew J. Bruccoli, um dos maiores especialistas em F. Scott Fitzgerald, o que fica evidente na análise do primeiro argumento apresentado pelo escritor a Mankiewicz tem muito que ver com o diálogo desafinado entre o seu próprio estilo literário e a linguagem do cinema: “O problema de Fitzgerald como argumentista era o facto de ser por natureza e treino um contador de histórias, habituado a fornecer ao leitor o tipo de informação que não pode ser dramatizada. Uma das razões pelas quais os romances de Fitzgerald falharam enquanto filmes é que a sua técnica era mais romanesca do que dramática.”
Escreve também Bruccoli que o que nesse argumento inicial pode ser visto como o “Fitzgerald touch”ocorre antes e depois do primeiro telefonema de um tímido Robert Taylor (Bobby) para Margaret Sullavan (Pat), em que a central telefónica teria como operadores um anjo e um sátiro:
A SWITCHBOARD—with a white winged angel sitting at it.
Angel (sweetly): One moment, please. I’ll connect you with heaven.
CUT TO:
THE PEARLY GATES
St. Peter, the caretaker, sitting beside another switchboard.
St. Peter (cackling): I think she’s in.
CUT TO:
BOBBY’S FACE—still ecstatic, changing to human embarrassment as Pat’s voice says:
Pat: Hello.
Bobby: Oh, hello. This is that man.
Pat: What man?
Bobby: That man you met the other night.
Pat: I’ve met lots of men, on lots of other nights.
Bobby: Well, I don’t know exactly how to describe myself.
Pat: Must you?
Bobby: I’m one of the men who beat you.
Pat: Really? You must have the wrong woman.
Bobby: In our car, I mean.
Pa: Oh-h-h. Of course, you’re the one who was so upset about the state of the nation.
Bobby: No. I was…
Pat: Then you must be the one who sang with Herr Breuer.
Bobby: No. I…
Pat: Was there another…? (she laughs and stops teasing) Of course I remember you.
Bobby: I wondered if you got home all right. Did you?
Pat: Let’s see, did I? Why yes, here I am.
Bobby: That’s fine. Well… goodbye.
Pat: Did you call up to say that?
Bobby: No, we… we just weren’t very busy.
Pat: Oh, a compliment. Oddly enough I won’t be busy next Tuesday evening.
Bobby: That is funny. Well, goodbye.
Pat: Till Tuesday evening.
Bobby: Till Tuesday evening. What?
The phone is dead. He wriggles the receiver, and we…
CUT TO:
A SATYR, WHO HAS REPLACED THE ANGEL AT THE SWITCHBOARD—pulling out the plug with a sardonic expression.
Entre a ternura e a agilidade, a conversa telefónica denota uma precisão formalmente acompanhada pelo ecrã dividido na diagonal. Sullavan sentada, confortável na jigajoga do seu teasing, Taylor de pé, provavelmente com as pernas bambas, apanhado no golpe sedoso da improvisação feminina. E embora todo este diálogo esteja no filme, nada da fantasia do anjo e do sátiro, que lhe serve de enquadramento, resistiu à primeira revisão do argumento. É apenas um exemplo dos cortes e ajustes que fizeram Fitzgerald sentir-se altamente subestimado, desde logo, pelo argumentista Edward E. Paramore Jr. – um daqueles nados e criados na escola de Hollywood –, com quem era suposto partilhar a escrita de cenas, mas que acabou por instalar o fantasma da reescrita. Fitzgerald estava tão escandalizado com a subjugação do seu trabalho no processo de “diálogo” criativo, que é possível ouvir a crepitação da sua raiva numa carta dirigida a Paramore: “Que haja uma dúzia de maneiras de tratar tudo, ou de selecionar o material, é um lugar-comum, mas fiz a minha exploração e as minhas escolhas de acordo com os meus cânones de gosto. A garantia que Joe [Mankiewicz] procurou consigo não foi para estragar a Fitzgerald quality do argumento. Ele não disse apenas para deixar as boas cenas em paz – ele quis dizer que a qualidade do argumento no seu conjunto lhe agradou (…). Se você foi chamado para este trabalho na condição de reescritor absoluto, então estou a ficar surdo.”
A altivez cândida com que o escritor se imaginava, de alguma maneira, protegido por Joseph Mankiewicz (repare-se como fala de si na terceira pessoa: “Fitzgerald quality”) esbarrou com a realidade das quatro ou cinco revisões a que foi submetido o argumento já co-assinado por Fitzgerald e Paramore. A última palavra seria do próprio Mankiewicz, que, embora não surja creditado, foi a exímia terceira voz do argumento final. É escusado tentar fazer a autópsia do que terá mais cunho do escritor ou do produtor, mas um dado é certo: Mankiewicz estava suficientemente investido de confiança para meter a mão na massa refinada de alguém com a estatura de Fitzgerald, que por essa altura já não era mais do que um símbolo do passado – a era do jazz – sem reverência do grande público. Décadas mais tarde, no entanto, o produtor confessou que este episódio permaneceu como uma mancha no seu currículo (“If I go down at all in literary history, in a footnote, it will be as the swine who rewrote F. Scott Fitzgerald”), mas foi um passo necessário. Margaret Sullavan conta-se entre os atores que se queixavam de não conseguir ler os “diálogos muito literários”.
Perante a desfeita, Fitzgerald escreveu ao futuro realizador e argumentista de All About Eve (Eva, 1950) uma derradeira epístola em jeito de diatribe que, não sendo prático reproduzir na íntegra, vale a pena citar o remate: “Oh, Joe, não podem os produtores alguma vez estar errados? Sou um bom escritor, juro. Achei que da sua parte ia ser justo. Joan Crawford pode agora muito bem desempenhar o papel, já que a coisa está tão grogue de sentimentalismo quanto The Bride Wore Red [A Noiva de Vermelho, 1936, Dorothy Arzner], mas a verdadeira emoção desapareceu.”
Isto é um homem a falar sozinho. E quão errado pode estar. Quão equivocado estava Fitzgerald na sua assunção de que Three Comrades, esse filme inefavelmente melancólico de Borzage, com uma Sullavan feita de matéria celeste, se pareceria com uma peça sentimental barata (e aqui, quão deslocada a referência ao filme de Arzner, que apenas do ponto de vista da lógica dos estúdios representou a “má” experiência da realizadora com a MGM, e acelerou a entrada de Crawford na lista das atrizes “box office poison”)… Não só a sua previsão de fracasso não se confirmou como Three Comrades preserva um tipo de tristeza, aquela da vida que escapa por entre os dedos, muito mais identificável na textura da obra do próprio autor americano, e já agora na sensibilidade borzageana, do que em qualquer filme de Joseph L. Mankiewicz. Quer dizer, talvez o plano final possa dialogar com o de The Ghost and Mrs. Muir (O Fantasma Apaixonado, 1947), mas isso já é outra conversa.
Sem procurar resolver totalmente o mistério do jogo de autoria em Three Comrades, percorri os diálogos do tal primeiro argumento apresentado por Fitzgerald e reencontrei aquela que seria a última linha de Pat/Sullavan no filme, entregue com a suavidade cálida de um corpo lírico que já não sente as tábuas do chão.
Lê-se:
“It’s all right. It’s hard to die, but I’m quite full of love, like a bee is full of honey when it comes back to the hive in the evening.”
No filme ficou:
“It’s right for me to die, darling. It isn’t hard. And I’m so full of love.”
Esta simples comparação entre o que estava e o que ficou na tela, pode não representar a essência da descortesia que fez Fitzgerald comportar-se como uma vítima, mas é fácil perceber onde está o dito excesso literário de que a atriz se queixava. Que mulher moribunda diria, antes do seu último suspiro, “…like a bee is full of honey when it comes back to the hive in the evening”?
É curioso também notar a inflexão “it’s hard to die”/“it isn’t hard”, que podemos pôr nestes termos: para Fitzgerald, morrer em Hollywood foi muito difícil, ninguém tinha o direito de lhe vir dizer que “it isn’t hard”.
Este texto foi publicado, em simultâneo, no À pala de Walsh e no Estado da Arte – Revista de Cultura, Artes e Ideias.